ANDRÉ BRUN – A MALTA DAS TRINCHEIRAS, MIGALHAS DA GRANDE GUERRA, 1917-18.

No livro A Malta das Trincheiras, André Brun refere uma série de episódios sobre a sua dura experiência na I Guerra Mundial, na frente da Flandres, incorporado no C.E.P. – Corpo Expedicionário Português. Há dias, a 9 de Abril, passou mais um aniversário, o 95º, da batalha de La Lys, um terrível desastre para as forças portuguesas, que tem sido muitas vezes ocultado ou mitificado. Será oportuno transcrevermos aqui algumas das impressões que André Brun nos deixou, escritas em Biarritz, em 1918. Logo na introdução, num trecho que julgamos particularmente significativo,  ele conta-nos: 
1881 - 1926
1881 – 1926

Sobreveio o mês de Março, cujos dias cruéis não poderá olvidar a minha brigada encurralada sem justificação táctica na situação mais dolorosa de quantas até então tínhamos conhecido. Seguiram-se os primeiros dias de Abril, que fizeram sangrar dolorosamente o meu coração de soldado, e chegou esse dia nove, cuja história documentada um dia há de surgir, para que às portas da História, por onde certos querem entrar vestidos de audácia e descalços de escrúpulos, as centenas de mortos, que descansam amortalhados de rancor em ignotos pontos da Flandres, e os milhares de prisioneiros, cuja tristeza a Alemanha ainda retém em vagos campos da Germânia, se juntem e lhes vedem a passagem, bradando: “Aqui não entras”.

Então, eu que escrevera para um álbum meia dúzia de linhas, que podiam parecer dum humorismo fácil, vi quanto as múltiplas angústias do meu espírito, acumuladas nos primeiros oito meses de trincheiras, me tinham levado a ser profeta em terra alheia.

A guerra, a verdadeira guerra, aquela de que poucos tinham a noção exacta, “viera causar muito incómodo”. Mas é cedo para que tudo o que se passou então e tudo o que se lhe seguiu seja dado a público. Continuamos em guerra, os boches ainda estão ali em frente, e como dizem os clássicos avisos franceses: Les oreilles ennemies nous écoutent. Não é este um livro “ad probandum”. Esse virá a seu tempo. Devo-o aos meus soldados e a mim próprio. O presente volume  “ad narrandum” é apenas uma documentação pitoresca, um relato do que eu vi com os que a terra há de comer, olhos da minha cara e mortos da minha pátria.

Talvez porque as tendências naturais do meu espírito me não concedam facilmente aquela faculdade que um personagem de Eça se atribuía  de “saborear o grandioso”; talvez porque as circunstâncias e os homens mais do que elas não habilitaram o Corpo Expedicionário Português a escrever, por enquanto, aquele canto de epopeia que os patriotas esperavam e os retóricos prometiam, este livro é um livro de crónicas, direi mesmo um livro de anedotas.

*

*              *

Longe de mim a ideia de amesquinhar o esforço dos primeiros combatentes em França; mas, durante muito tempo, a permanência numa guerra de trincheiras, em sectores relativamente calmos de que certa nervosidade destrambelhada vinda do alto pretendia fazer sem método sectores de verdadeiro combate, não permitiu que se pusessem à prova senão a capacidade de adaptação que distingue a nossa raça, sempre através dos séculos a abandonada de alguém, e aquelas qualidades passivas de resignação que a História reconhece ao soldado português. Dos dias terríveis de Abril até aos do alvorecer de Agosto, em que me separei da frente portuguesa, só o esforço individual de certos manteve a continuidade do esforço anterior, reduzida ainda ao trabalho obscuro da malta das trincheiras.

Acompanhei de perto essa arraia-miúda  para a não amar e não a estimar. Foi com ela que ganhei os meus primeiros galões bem ganhos. Sei o que ela vale, o que ela fez e o que ela podia ter feito no instante próprio, se os chefes combatentes, verificando que ao começo as suas funções tácticas eram, pela natureza especial da guerra que se estava fazendo, reduzidas à versão e reprodução de ordens anteriores, e portanto redutíveis a proporções para as quais chegava e sobejava a mentalidade de um sargento-ajudante munido de um xapirógrafo, tivessem melhor atentado na importância das suas funções humanas e cuidado com maior carinho e mais inteligente desvelo do moral  de tropas já de si ignorantes e propensas à estagnação de espírito e fatalismo atávico e, para mais, atiradas para longe da terra onde tinham as razões lógicas do seu ser.

Nota – o texto acima é da edição Livraria Civilização Editora, colecção Cem Anos de Literatura Portuguesa, de 1983, salvo erro. Apresentamos os nossos cumprimentos à editora, e a todos que trabalharam nesta edição. Destaque para o notável prefácio de António Lopes Ribeiro.

4 Comments

  1. Paulo Mario Beserra de Araujo, obrigado pela questão que põe. Não conheço o significado exacto do termo, e julgo mesmo que não existe nos dicionários. Penso que se trata de um termo derrisório introduzido para designar material de escrita ou desenho, termo esse a condizer com a maneira pouco lisonjeira como o autor se refere às orientações dos chefes militares das nossas tropas que estiveram na Flandres na Primeira Guerra Mundial.

Leave a Reply to Das CulturasCancel reply