VAMOS DEBATER O ACORDO ORTOGRÁFICO? – O ALEIJÃO – por Pedro Mexia*

Este artigo foi publicado em 25-05-2013 no Expresso / Actual e é aqui transcrito com expressa autorização do autor.

  Volto ao assunto, porque o assunto continua. Deu-se até o caso de os defensores da coisa andarem por aí mais mudos do que as consoantes a que chamam, toscamente, mudas. E depois de o Brasil ter suspendido o “acordo” ortográfico para avaliação, muita gente começou a perceber que não há inevitabilidades, nem combates perdidos à partida, apesar das traições dos académicos e da cobardia de certos políticos deste Governo, que se diziam antiacordistas quando estavam na oposição.

 Pessoas que achavam que “tanto faz” ou que era muito barulho por nada, começam a dar ouvidos a Eduardo Lourenço e a António Lobo Antunes; a Vasco Graça Moura e a José Gil; a Pacheco Pereira e a Miguel Esteves Cardoso; até a Ricardo Araújo Pereira e João Pereira Coutinho, que devem estar de acordo em poucos assuntos. E talvez essas pessoas tenham lido as seguintes notícias: a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa não aplicou o “acordo”; a Associação Portuguesa de Linguística criticou-o; o PEN Clube recusou-o; a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros distanciou-se dele; a Sociedade Portuguesa de Autores e a Associação Portuguesa de Escritores não o aceitam.

 Foi-se tornando claro como água que o “acordo” ortográfico não é um acto cultural. É um acto político, como reconheceu aliás o autor moral da iniquidade, Malaca Casteleiro, em declarações a este jornal: “Isto não é uma questão linguística, é uma questão política, uma questão muito importante do ponto de vista da política de língua no âmbito da lusofonia. Esquece-se muitas vezes que, para haver lusofonia, tem de haver medidas concretas e alcance prático e esta é uma delas”. E que tal “medidas concretas e de alcance prático” como uma CPLP relevante, um Instituto Camões activo, apoios às traduções e aos leitorados, bibliotecas bem equipadas? Era mais útil, menos megalómano, menos nocivo.

 Também caiu a tese, assacada em bloco aos antiacordistas, de que o “acordo” é uma “cedência ao Brasil”. Porque entretanto multiplicaram-se as reacções hostis além-Atlântico. O dramaturgo Ariano Suassuna, por exemplo, preferiu sair dos manuais escolares a ver os seus textos republicados em “acordês”. E o grande Millôr Fernandes, antes de morrer, teve ainda tempo para declarar em bom português: “O acordo ortográfico é uma merda”. Um reputado especialista em Camilo Pessanha, Paulo Franchetti, da Universidade Estadual de Campinas, declarou: “O acordo ortográfico é um aleijão. Linguisticamente malfeito, politicamente mal pensado, socialmente mal justificado e finalmente mal implementado. Foi conduzido, aqui no Brasil, de modo palaciano; a universidade não foi consultada, nem teve participação nos debates (se é que houve debates além dos que talvez ocorram durante o chá da tarde na Academia Brasileira de Letras), e o Governo apressadamente impôs como lei (…). O resultado foi uma norma cheia de buracos e defeitos, de eficácia duvidosa”. Não vale a pena tentar apresentar os antiacordistas como “antibrasileiros”, porque há bem mais brasileiros antiacordistas.

 Infelizmente, muitos portugueses pregam o aleijão como se fosse um unguento. O actual Presidente da República disse um dia que o português de Portugal se arriscava a tornar-se uma espécie de latim, como se uma variante falada por dez milhões de indivíduos equivalesse a uma língua morta. Já a grotesca “Nota Explicativa” ao “acordo” explica que os portugueses estão “teimosamente” apegados à sua grafia, dando-nos reguadas de mestre-escola pela nossa impertinência cultural. Para acabar com tal desfaçatez, uns quantos sábios da Academia das Ciências de Lisboa impuseram aos luso-falantes a sua aberrante legislação, quando nos países onde existem Academias realmente prestigiadas vigoram recomendações não-vinculativas, dicionários excelentes, consensos transcontinentais. Mas os políticos e os académicos não se contentam com uma língua que muda espontânea, inevitável, e constantemente; querem mudanças por decreto, como déspotas iluminados que são.

 Fizeram o “acordo” ignorando os pareceres técnicos divergentes e a opinião de agentes qualificados da língua. E agora assustam-se com o levantamento cívico. Perceberam que fracassaram, que nem todos nos calamos, que estivemos atentos às consequências. O “acordo” quis unificar a língua e multiplicou duplas grafias, facultatividades, cláusulas de excepção, opting outs. Quis simplificar o ensino e cortou as palavras da sua raiz etimológica, da sua família, dificultando uma compreensão de conjunto. Quis ser um acordo “lusófono” e pouco mais é do que um contrato luso-brasileiro, do qual os brasileiros duvidam. E agora ainda passámos pela humilhação de ter o oficioso “Jornal de Angola” a lembrar-nos que o “étimo latino” ajuda a compreender o percurso de uma palavra.

 Este acordo não serve, não presta, é preciso denunciá-lo ou, no mínimo, revê-lo em profundidade. É preciso acabar com aberrações como a recessiva “receção” e o tauromáquico “espetador” e a lasciva “arquiteta”. E com a fantasia de que as consoantes que abrem as vogais são “mudas”. E com a ideia de que a escrita é uma transcrição da fonética. Introduzam o xis, o ípsilon e o zê, escrevam Janeiro e Inverno com minúscula, mas deixem em paz a língua portuguesa.

4 Comments

  1. Vou-me alegrando com a convergência de argumentos entre os que se opõem ao AO, sem terem discutido o tema pessoalmente, o que significa que é o próprio “aleijão” que suscita reparos e críticas idênticas ou muito similares, das mais diversas pessoas, que têm em comum o apreço pela língua pátria e o seu uso, cultivado mas não elitista.
    Estive a reler o que escrevi aqui no blogue, há algum tempo, e nada tenho de significativo, para já, a acrescentar.
    Não resisto, no entanto, a abordar mais um exemplo “mediático”, que corrobora a minha opção por desdobrar a sigla AO em “Aborto Ortofágico”.
    Há escassos dias, uma jornalista da TVI, relatando o caso de um jovem que fugira de casa e habitava um tugúrio malsão, referia que o local se encontrava repleto de “dejêtos”: procuro transmitir, através da grafia, o modo exacto como a palavra foi pronunciada.
    Isto significa que, tal como eu previa (e adiantava que já se estava a verificar), a senhora terá deparado com a palavra escrita segundo o AO e:
    a) sendo jovem e com poucas leituras, da primeira vez que a viu memorizou a sua pronúncia como “parece ser” a correcta, na ausência de qualquer indicação gráfica que a esclareça, passando a usar essa pronúncia, sem lhe ocorrer, sequer, que pudesse estar errada;
    b) conhecendo a palavra, mas não a utilizando com frequência (sendo igualmente raro o contacto com a boa literatura), esqueceu a pronúncia que tinha aprendido e, revendo-a, grafada segundo o AO, passou a pronunciá-la incorrectamente;
    c) contagiada pelas dúvidas geradas pelo AO (narrava, no meu artigo, como alguns profissionais de rádio, de razoável cultura, se deixaram enredar num debate “inter pares”, sobre o modo de pronunciar a grafia “espetador” – não prevista no AO, mas arrastada pelas “normas gerais” nele estabelecidas e logo estilhaçadas em “excepções” -, que lhes aparecia num jornal de “prestígio cultural”, como era o caso do “Jornal de Letras”), passou a pronunciar erradamente uma palavra que, antes do famigerado AO, nunca lhe levantara dúvidas, já que, sempre que a lia, lá estava a tal “inútil” consoante muda, para lhas dissipar.
    Esta é a realidade da população lusófona, uma realidade que os “sábios” do Aborto mandaram às urtigas, em favor de uma construção fictícia sobre a escassa informação que lhes chegaria, da vastidão dos campos em redor (de que um profundo fosso os separa), quando assomavam às ameias da altíssima “torre de erudição” (estéril) que habitam. Uma realidade que se estende por diversas caracterizações, da ignorância absoluta à insegurança que se insinua numa cultura, até, razoavelmente vasta, mas não particularmente preocupada com (ou atenta a) estas particularidades.
    Estimo que os “dejêtos” sejam do agrado dos esvoaçantes entusiastas do AO…

  2. Caesar non supra grammaticos (César não está acima dos gramáticos) é uma locução latina cuja origem Suetónio – Caius Suetonius Tranquillus, biógrafo do império, nos explica – o imperador Tibério (42 a.C. – 37 d.C.) foi repreendido pelo filólogo Marcus Pomponius Marcellus, dado que num discurso empregou uma palavra que não era latina. Houve quem interviesse dizendo que a palavra, pelo facto de ter sido dita pelo imperador, passava a ser latina. Foi então que Pomponius respondeu que César não está acima dos gramáticos. Num sentido lato, pode dizer-se que a política não deve estar acima dos filólogos. Porque cada vez mais se acentua o carácter político do Acordo Ortográfico, pois só os políticos (alguns, pelo menos) parecem estar de acordo quanto às vantagens do Acordo. Do ponto de vista estritamente filológico não se vislumbra uma. Nem vantagens nem argumentos credíveis. No lado dos que contestam as bases do diploma, vão aparecendo depoimentos valiosos, como é o caso deste, de Pedro Mexia. Por isso, no meu artigo de há dois anos, ” O Acordo Ortográfico é um tigre de papel”, declarava não tencionar aplicar as regras do novo Acordo Ortográfico. Atitude que, decorridos este tempo, mantenho. Aliás, neste período de tempo a minha convicção de que a adopção deste Acordo, me parece medida de uma total inutilidade, vai-se convertendo numa certeza ao ver – as grandes diferenças entre o português europeu e o brasileiro não são de natureza ortográfica – a sintaxe é diferente nas duas normas e continuará a sê-lo e o campo semântico de muitos vocábulos também . E essa diferença não será o Acordo que a resolverá. Os idiomas são organismos vivos – nascem, os seus vocábulos vão sofrendo uma ampliação semântica e subdividem-se noutras palavras, crescem e transformam-se. O AO é uma espécie de manipulação genética, feita ao arrepio das leis da Ciência – foi assim que nasceu o monstro de Frankenstein.

  3. Quem, como PPorto, começa por querer confundir o “acto político” que constitui a publicação de qualquer texto legal, incluindo a de Acordos Ortográficos – que, com mais ou menos rigor, emanam de pressupostos puramente linguísticos -, com a aplicação da expressão “acto político” a todo o processo de elaboração deste Aborto Ortofágico, que, desde início, é apresentado como correspondendo a um feixe (assaz intrincado) de intenções de cariz geopolítico, revela, à partida, que não visa esclarecer coisa nenhuma: o que desvaloriza a credibilidade das suas intervenções.
    “Peccato!”

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