A CANETA MÁGICA – UM CASO BEM SUCEDIDO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – por Carlos Loures

Foi num dia 24 de Junho, como hoje, mas de há quase nove séculos que, em 1128, um sarilho chamado Portugal teve início. E começou logo com aquilo que no anedotário nacional é classificado como um caso de violência doméstica – «um filho batendo na mãe», que é como em historietas e canções brejeiras se simplifica o episódio histórico de São Mamede, episódio que os historiadores mais tradicionais e nacionalistas empolaram, mas que uma historigrafia mais contida e científica reduz às proporções de escaramuça ou mesmo de torneio medieval.

As diversas fontes não são totalmente convergentes na classificação do acto que marca o princípio da independência autoproclamada de um novo estado – porém todas confirmam a vitória do nosso Afonso I. A corrente historiográfica mais tradicional e nacionalista, apresenta o facto como coisa natural. Na fonte mais próxima, na quase coeva Chronica Gothorum (Anais de D. Afonso Henriques, Rei dos Portugueses), refere-se que “pessoas indignas e de nação estrangeira, pretendiam com o consentimento da rainha D. Teresa, apropriar-se do reino português” e afastar seu filho do governo. E o cónego que redigiu esta crónica, dirá «reino português» porque D. Teresa desde 1121 que se intitulava rainha. Esta versão dos acontecimentos, data de finais do século XII. O envolvimento emocional de D. Teresa com o conde galego Fernão Peres de Traba, terá sido um dos detonadores da revolta de alguns barões portucalenses. Outras fontes, nomeadamente as de perpectiva galega, interpretam a independência com o uma reação da nobreza bracarense contra a lucense e, concretamente, contra a política do arcebispo Gelmírez. Alfonso Castelão, por exemplo, defendeu esta tese.

No entanto. o medievalista José Mattoso não coloca a questão em termos de antinomia galaico-portuguesa, explicando a independência portuguesa pelo carácter mais aberto da região bracarense, voltada para o oceano e para o Sul islamizado, relativamente à lucense, mais ligada à Europa e com ambições hegemónicas relativamente a Castela e Leão. Não esqueçamos que Afonso Raimundes, filho de D. Urraca e primo direito de Afonso Henriques, reinou, como Afonso VII, em Castela e Leão e se proclamou imperador de toda a Hispânia (Imperator totius Hispaniae). Digamos que a Galiza bracarense se voltou para um futuro incerto, para a Reconquista do Sul e para a incógnita dos mares, enquanto a Galiza lucense, ligada à Europa pelo cordão umbelical do Caminho de Santiago, apostou na hipótese de assumir a hegemonia peninsular.

Talvez que motivos desta natureza  tenham determinado que Portugal se tenha separado e iniciado uma deriva que, de sarilho em sarilho, nos trouxe até aos dias de hoje conservando, mais que não seja formalmente, a independência que em 1128 nasceu na batalha de São Mamede,  que 15 anos depois Afonso VII reconheceria pelo Tratado de Zamora e que, em 5 de Outubro de 1179, o papa Alexandre III  reconheceria pela bula Manifestis Probatum. De notar que a independência de facto existia desde 1139, quando o papa Inocêncio II aceitou Portugal como reino independente e tributário da Santa Sé, beneficiando da protecção pontifícia.   

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