SAÍDA DO EURO – A RESPOSTA DE DOMENICO MARIO NUTI – II

Formulação da pergunta e tradução da resposta de Domenico Mario Nuti por Júlio Marques Mota

Domenico Mario Nuti
Domenico Mario Nuti

A austeridade pode matar-nos

Domenico Mario Nuti

Julho de 2013

(continuação)

A maré está a virar

A proposição “da consolidação orçamental expansionista” foi imediatamente sujeita a muitas críticas e foi sendo gradualmente desacreditada quer nas suas bases teóricas quer através de estudos empíricos.

Já em Novembro de 2008, o Director-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn, tomou a iniciativa de se aplicar um considerável estímulo orçamental global na ordem de 2% do PIB mundial. Numa entrevista publicada em IMF Survey Online, em 29 de Dezembro de 2008, Olivier Blanchard — então economista-chefe do FMI — e Carlo Cottarelli, chefe do Departamento de Assuntos Fiscais do FMI, chamavam a atenção para a recapitalização dos bancos (demorada) e para a ineficácia da expansão monetária (ineficaz a baixas taxas de juros) e defendiam então um forte estímulo orçamental: “Em tempos normais, o FMI, de facto, recomendaria a muitos países que reduzissem o seu défice orçamental e a sua dívida pública. Mas estes não são tempos normais e a dimensão dos riscos é hoje muito diferente… Se não há aplicação de estímulos orçamentais, então a procura pode continuar a cair. E com isso, podemos passar a ver alguns dos ciclos viciosos que vimos outrora, no passado: a armadilha da deflação e da liquidez, as expectativas a tornarem-se cada vez mais pessimistas e, por conseguinte, a gerar-se uma recessão profunda que se agrava cada vez mais. Se, em vez disso, um estímulo orçamental for aplicado, e se se mostrar que foi desnecessário, o risco é o de a economia recuperar muito rapidamente. Certamente, esse risco é bem mais fácil de controlar do que o risco de aprofundamento de uma recessão”. O FMI aumentou o volume dos seus empréstimos, aumentou os seus recursos próprios e atenuou um pouco a sua própria condicionalidade, mas o seu compromisso foi de muito curta duração e foi afinal intermitente. O BCE, sob a direcção de Jean-Claude Trichet, desde muito cedo que passou a defender uma estratégia de saída rápida da crise que passasse pela expansão monetária e os estímulos orçamentais. Em Outubro de 2010, o capítulo 3 do World Economic Outlook, FMI, analisa “os efeitos da consolidação orçamental — subida dos impostos e cortes nas despesas públicas — sobre a actividade económica”. Os seus autores chegam à conclusão de que a consolidação orçamental normalmente reduz a produção e o PIB e gera desemprego a curto prazo, especialmente se a consolidação ocorrer simultaneamente em muitos países e se a política monetária não estiver em condições de a compensar, de a neutralizar nos seus efeitos negativos. Só no longo prazo é que os cortes na taxa de juro podem, acompanhados por uma queda no valor da divisa nacional e por um aumento das exportações líquidas, geralmente “amaciar” mas não compensar o impacto contraccionista.

Baker (2010) critica Alesina e outros (1995, 2006) por utilizarem défices ciclicamente ajustados enquanto a política de ajustamento dos défices leva a que os próprios ajustamentos se façam de uma maneira keynesiana. Ele também critica Broadbent e Daly (2010) pelo facto de os casos conhecidos de consolidação orçamental expansionista terem ocorrido em situações de muito pequenas variações do hiato do produto relativamente às grandes variações que ocorrem na crise actual.

O Fiscal Monitor do FMI, de Setembro de 2011, alertou para o facto de “uma consolidação demasiado rápida durante 2012 poder agravar os riscos de recessão”: “mais endurecimento nas políticas de austeridade durante uma crise poderia agravar em vez de aliviar as tensões do mercado através do seu impacto negativo sobre o crescimento”.

Em 2012, Carlo Cottarelli salientou a atitude “esquizofrénica” dos investidores em matéria de consolidação orçamental: o seu entusiasmo inicial é a seguir substituído pelo medo de uma consequente recessão, de tal modo que os governos são “condenados se a fizerem e condenados se não a fizerem”.

O World Economic Outlook do FMI (de Outubro de 2012) contém uma caixa extensa com um texto assinado pelo seu economista-chefe, Olivier Blanchard, e por Daniel Leigh, onde estes dois economistas argumentam que os multiplicadores orçamentais foram subestimados nas previsões do FMI e nos documentos sobre as políticas, publicados pela OCDE e pela Comissão Europeia. Estudos económicos recentes do FMI sugerem que os multiplicadores orçamentais estão situados na faixa de 0,9 a 1,7, em vez de estarem de acordo com a hipótese seguida até aí em torno de 0,5. Por outras palavras, o custo da consolidação orçamental tem sido grosseiramente subestimado. Em Janeiro de 2013, Blanchard e Leigh apresentaram um documento de trabalho mais desenvolvido sobre os seus argumentos na American Economic Association Annual Conference. No entanto, de acordo com os mesmos autores, “é necessária ainda mais investigação”.

Mas mais investigação já estava disponível no próprio FMI. Guajardo, Leigh e Pescatori (2011) investigaram “os efeitos de curto prazo da consolidação orçamental sobre a actividade económica nas economias da OCDE”. “Nós examinamos o registo histórico, incluindo documentos com os discursos de apresentação do orçamento e os documentos do FMI, para identificar alterações na política orçamental motivadas por um desejo de reduzir o défice orçamental e não de responder às condições económicas em perspectiva. Usando este novo conjunto de dados, as nossas estimativas sugerem que a consolidação orçamental tem efeitos de contracção sobre a procura interna privada e sobre o PIB. Em contraste, as estimativas baseadas em medidas convencionais da orientação da política orçamental utilizadas na literatura sustentam a hipótese de contracções orçamentais expansionistas, mas parecem estar enviesadas e exageram os efeitos expansionistas”.

E Batini-Callegari-Melina (2012) i) desacreditam a necessidade de reduzir as despesas públicas de natureza social, especialmente em tempos de recessão, uma vez que os multiplicadores podem ser até dez vezes maiores que os multiplicadores orçamentais; ii) encontram valores absolutos para os multiplicadores na ordem de 2,5, em vez do intervalo 0,9-1,7 como no World Economic Outlook do FMI (2012); iii) observam que a consolidação agressiva é muito mais cara em termos de PIB do que a consolidação gradual. Em Maio de 2013, Jeffrey Frankel criticou vários artigos publicados por Alesina e outros co-autores (Giavazzi, Ardagna e Favero), onde todos alegavam que a consolidação orçamental não é contraccionista em recessão. As objecções de Frankel são baseadas num trabalho recente de Perroti, originalmente co-autor de Alesina, onde critica a metodologia utilizada no tratamento dos dados e sublinha que algumas das consolidações orçamentais utilizadas por Alesina et al. foram anunciadas pelos governos, mas nunca implementadas. Assim, Frankel conclui que Alesina “não tem estado a receber o seu verdadeiro quinhão no abuso” (Eurointelligence.com, 22 de Maio de 2013).

Ao mesmo tempo, Alesina e Giavazzi amaciaram muito consideravelmente a sua posição original. Em Maio de 2013, de facto, recomendaram ao Governo italiano que ultrapassasse o limite do défice de 3% durante dois anos — porque “aqueles 3% não devem ser vistos como um tabu” — oferecendo a Comissão Europeia imediatamente em troca a redução dos impostos sobre os rendimentos do trabalho e um planeamento gradual e permanente de cortes nas despesas públicas nos três anos seguintes. A Comissão Europeia não daria por concluído o Procedimento por Défice Excessivo da Itália no final de Maio, mas estaria disposta a aprovar um tal plano e a acompanhar a sua concretização. Ao mesmo tempo, dever-se-ia continuar com o crédito às famílias e às empresas no respeito da condicionalidade para a recapitalização dos bancos e de acordo com as regras do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE).

O não-existente limite de 90%

A noção de Reinhart e Rogoff sobre o limite crítico de 90% do rácio da dívida pública/PIB foi imediatamente criticada por Irons e Bivens (2010), que argumentaram que o nexo de causalidade pode ser o inverso do indicado por Reinhert e Rogoff. Estes autores partem de rácios da dívida pública/PIB para daí deduzirem que estes ao serem muito altos geram baixas taxas de crescimento enquanto Irons e Bivens (2010) argumentam que um crescimento económico mais lento pode levar a rácios de dívida pública/PIB mais elevados. Além disso, “não há nenhuma razão convincente para acreditar… que a dívida bruta de cerca de 90% conduzirá necessariamente a um mais lento crescimento económico. Na verdade, a maior ameaça para o crescimento económico é a inacção política que é alimentada pelo medo de se criar uma situação de défice”.

A machadada final sobre o dogma de Reinhart e Rogoff quanto ao rácio da dívida pública/PIB de 90% veio de Herndon, Ash e Pollin (2013), que replicaram a análise feita por Reinhart e Rogoff de 2010 usando os dados originais. Para além de um erro de codificação, que terá dado origem apenas a uma pequena contribuição para as suas conclusões, Reinhart e Rogoff selectivamente excluíram dados disponíveis para várias nações Aliadas — Canadá, Nova Zelândia e Austrália — que emergiram da Segunda Guerra Mundial com rácios da dívida pública/PIB elevados mas que ainda assim tiveram um crescimento económico sólido. E as estatísticas foram todas elas ponderadas de igual modo, independentemente do número de observações por país com rácios acima dos 90% e da taxa de crescimento obtida [estranho que assim sejam ponderadas  e sobretudo com economistas com este renome] . Herndon et al. (2013) concluíram que “…quando devidamente calculada, a taxa média de crescimento do PIB real para países sujeitos a um rácio da dívida pública/PIB superior a 90% é realmente de 2,2%, não de 0,1% como foi publicado por Reinhart e Rogoff”. “A taxa média de crescimento do PIB quando o rácio da dívida pública/PIB é superior a 90% não é dramaticamente diferente de situações em que o rácio da dívida pública/PIB é mais baixo”. Reinhart e Rogoff (2013) admitiram alguns dos seus erros e omissões, mas argumentaram que nada disto leva a alterar a sua conclusão final sobre a austeridade: o endividamento excessivo deprime o crescimento. Mas dois estudos subsequentes reclamam que, ao contrário, o crescimento lento é que parece estar a provocar um rácio da dívida pública/PIB mais elevado (como Irons e Bivens (2010) já tinham discutido). Dube (2013) considera que o crescimento tende a ser mais lento nos cinco anos anteriores à altura em que os países apresentaram níveis elevados de dívida.

Nos cinco anos após terem tido níveis de endividamento elevado, nenhuma diferença notável se notou quanto ao crescimento, seguramente não se notou ao nível do rácio da dívida pública/PIB de 90%, que é o valor de referência para Reinhart e Rogoff, ou seja, o valor que é para estes dois autores considerado o limiar da não sustentabilidade. Kimball e Wang (2013) apresentaram resultados semelhantes. Este ponto é aceite por Reinhart-Rogoff (2013): “a questão de fronteira para a investigação é a questão da causalidade”.

(continua)

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Para ver a parte I, saída ontem em A Viagem dos Argonautas, ir a:

http://aviagemdosargonautas.net/2013/07/24/saida-do-euro-a-resposta-de-domenico-mario-nuti-i/

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