NOVA CRÓNICA DE FARO Nº 3 – PARTE II. DE FARO COM AMOR, DE ESTOI COM HORROR. Por JÚLIO MARQUES MOTA

Meus caros

A segunda parte de uma crónica  já iniciada. As vivências de um velho por uma cidade que  não é sua. Ao ler o que por aqui se escreve talvez sejamos levar a pensar que se trata de delírios da terceira idade. Talvez seja assim. Talvez nada disto se tenha passado, talvez nada disto se tenha ouvido, talvez nada do que aqui se transcreve  tenha sido escrito e lido. Talvez. Mas uma pergunta:   mas não parece a realidade actual apresentar mais sinais de delírio que esta crónica, que se pretende expressão da realidade mas que, como ficção, fica sempre aquém da realidade que quer simular e que a todos incomoda .

Um texto a publicar em  A Viagem dos Argonautas.

Boa paciência para a leitura para aqueles que gastarem alguns minutos a olhar para ela, as minhas desculpas pela liberdade tomada para aqueles a quem não interessa e que devem então  fazer delete.

JMOta

2. De Estoi com horror

PARTE IV
(CONCLUSÃO)

Senti uma mão amiga sobre os ombros e despertei não pelo  facto de estar a dormir, mas sim por estar perdido na minha imaginação. Estava meio a sonhar, a transformar o desejo numa suposta realidade ou  num pesadelo também. A pensar alto mas para dentro num café à noite, em Faro. Havia um problema, diz-me o meu “menino de Estoi” meio apardalado pela situação caricata que eu estava a imaginar, quando ouvi a  afirmação de que havia um problema, exclamei alto: problema? Rebentaram-te agora e de vez  com os teus tomates? Foi isso? Não, não, respondeu. É que a máquina registadora não tem  rolo. Pode-se recusar a pagar ou então esperar pela patroa que traz o rolo. Eu não posso receber sem registar. A ASAE pode andar por aí,  diz-nos. Tínhamos duas opções:  não pagávamos e íamos embora como nada tendo tomado e mandávamos uma carta ao Gaspar de agradecimento  ou esperávamos pela patroa que viria com um rolo. Simplesmente esperámos e pagámos. A realidade deste país agora é de que nem a pequena entidade patronal se pode descuidar com o rolo da máquina registadora! Pobres comerciantes que mal manuseiam uma máquina registadora e que nem sequer se podem descuidar com um rolo para a máquina registadora!

E eu a perder-me na minha imaginação, meio a  sonhar com uma aparente saída da crise, pelo pé bicudo de um gigante imaginado por Oscar Wilde e agora neste meu  pesadelo por mim idealizado. Estou a ficar velho, a sonhar acordado com o desejável mas por meios impossíveis, por causa de uma situação completamente insuportável. No contexto da economia globalizada e de um quadro de Tratados assinados por Portugal que o manietam e se permite que verdadeiros gangs estejam no poder, acabamos por estar com gente ligada e mais que ligada ao BPN, aos swaps, aos interesses privados mais reaccionários. Por outro lado mesmo um governo mais à esquerda, neste contexto, ficaria sem nenhuma margem de manobra no quadro destes mesmos Tratados, daí que a saída da crise passe pela  solução apontada por Peter Whal, por Coutrot, por Mazier, por Nuti, na discussão  que se levantou no nosso blog (A Viagem dos Argonautas) e que era: morrer por estar no euro, morrer por sair do euro, ou então qual é a outra solução. Entre uma situação insustentável como é a de agora e uma situação desejável que à força da Democracia se há-de construir, é necessário traçar a trajectória entre estas duas  situações. Nada fácil e a minha pergunta no blog, morrer por estar no euro, morrer por sair do erro, insere-se nessa mesma problemática. Para esse efeito algumas respostas teóricas começam a ser agora mais claras e talvez mesmo menos impossíveis de realizar que no ano transato. É preciso torna-las possíveis e urgentemente.

Relembro-me agora de tudo isto, dois dias depois, quando vejo que não verei mais neste café o meu “menino de Estoi”, relembro igualmente a discussão havida com a suposta alta patente militar na reserva, e lembro analogamente a conversa havida sobre a necessidade de mudarmos os nossos destinos colectivamente, procurando a melhor trajectória possível entre a actual situação insuportável e a que colectivamente seja politica e economicamente mais desejável.   Releia-se sobre esta questão um autor de que muito gostamos, Domenico Mario Nuti. Em síntese, diz-nos este autor, a rematar a questão que lhe foi colocada sobre o euro num texto que nos enviou:

  “Se eu quisesse ir a Roma eu não partiria daqui”

Claramente, se eventualmente se quer construir uma área monetária comum não se deve proceder da mesma forma que foi seguida pela UEM, e certamente não gostaria de começar a partir do actual estado da realidade na zona euro. Mas, a partir daqui, talvez, o melhor caminho seja pressionar o mais longe e o mais rápido possível no que respeita ao consenso limitado entre os membros, pois se assim não for os seus membros  ficarão cada vez mais  fracos e mais vulneráveis, no sentido de se forçar a realizar os estágios ou patamares ainda  em falta: construindo  algum tipo de União bancária; apoiar os progressos do BCE a caminho de ser de facto  um verdadeiro BCE, sustentando a integração política e integração orçamental , aumentando o volume do orçamento europeu, tentando relançar as iniciativas a favor do investimento  europeu e financiar a  Europa  em vez da dívida nacional.

Para esses fins, seria conveniente ameaçar de forma sólida e vigorosa com  uma saída, em vez de realmente se sair da zona euro. Ao mesmo tempo, um país poderia, mesmo ainda permanecendo na zona euro e  se as instituições democráticas fossem  suficientemente robustas, confrontar  os efeitos de uma desvalorização externa com os efeitos da desvalorização interna o que  a saída da  zona euro permitiria – mas apenas se for considerado como essencial para relançar o crescimento.

Por outros palavras, na linha de Nuti  resta-nos resistir, resta-nos combater, para que uma outra solução seja encontrada no concerto das nações, em que os partidos políticos responsáveis, os movimentos populares e de cidadania têm por obrigação derrubar as oligarquias no poder, seja a nível nacional seja a nível  regional, de Bruxelas ou de Frankfurt. É por aqui que passam os problemas do nosso “menino de Estoi”, dos nossos meninos, os do nosso país, os da Europa como um todo. E só assim se porá cobrar ao horror do “menino de  Estoi” que queria ser soldado da paz e que aqui foi  longamente desenvolvido, aos horrores que percorrem o país,  casa  a casa, aos horrores que percorrem país a país toda a Europa.

A terminar esta crónica sobre o horror que atravessamos em que o meu “menino de Estoi” se enquadra na perfeição com a sua história dos comandos, das forças especiais, deixem-me concluir com  uma mensagem de um emigrante russo que me confirmou  hoje mesmo. Fui ao talho comprar carne, numa grande superfície. Atendeu-me um jovem na casa dos 25 anos. Enquanto me limpava a carne, perguntei-lhe de que nacionalidade era. Diz-me: russa. Dou-lhe os parabéns pela qualidade do português, afirmação corroborada pela minha neta de 11 anos que, espantada, diz bem alto: não tem sotaque no seu português! Ele agradece e eu acrescento: na sua situação, na Rússia, não seria capaz de falar com a mesma qualidade. Olhou-me, mediu bem as palavras e serenamente diz-me: Não acredito que não falasse tão bem russo como eu português. Sabe, quando a necessidade impera, todos nós somos capazes de conseguir coisas que nunca admitíamos serem possíveis. Esta é a força que move o mundo, que move a vida.

Com o termino desta crónica fiquei  pessoalmente com uma certeza, que esta é a força que nos há-de mover a cada um de nós deste retrato tenebroso, desta realidade insuportável que vivemos hoje para a trajectória do mundo pela maioria considerada mais  desejável e será assim com cada “menino de Estoi”, de Portugal, da Grécia ou de um país qualquer, será assim com cada cidadão, será assim com cada país, será assim com a Europa como um todo. A força que move a vida, reafirma-nos  o imigrante russo  e esta força, quando se passa do plano individual para o plano colectivo, tem um nome: chama-se luta de classes. E o meu menino de Estoi, pode ser Fernando, de Portugal, pode ser Thanassis Kanaoutis. Têm a mesma idade, têm a mesma situação política,  vivem cada um deles num país ocupado politicamente, têm a mesma situação política interna, governos disposto a ir ao limite para aplicar as políticas de destruição do futuro do seu país às ordens e ao  serviço da potência ocupante, a Troika, unidos na desgraça, portanto.

E é tudo.

Júlio Mota

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Para ler a Parte III desta Crónica, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

http://aviagemdosargonautas.net/2013/08/23/nova-cronica-de-faro-no-3-parte-ii-de-faro-com-amor-de-estoi-com-horror-por-julio-marques-mota-3/

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