CRÓNICA DE FARO Nº 4. Por JÚLIO MARQUES MOTA

Pela mão de Spartacus, de Hegel e de Marx, uma viagem ao mundo infernal da precariedade, em Faro, em Portugal, na Europa

PARTE II
(continuação)

Aqui, parei, na noite meio iluminada pelas luzes dos candeeiros por onde íamos passando, e iluminada igualmente pelo calor que esta crise nos une aos dois. Tremi quando lhe ouvi a expressão, tenho a cabeça cheia de outras coisas. Respondi-lhe, deixe estar que daqui a bocado volta a lembrar-se do que comeu. De resto, não tem importância nenhuma. Íamos passando por lojas fechadas, algumas conhecia eu de ter vindo anteriormente a Faro, na altura lojas florescentes de actividade, agora lojas de vidros sujos, fechadas. Irremediavelmente encerradas e já desde há bastante tempo. Percorremos toda a área que circundava o estádio do Farense. Investimentos brutais à escala da cidade e das gentes que por cá moram, investimentos pela crise inutilizados. Tanto dinheiro, perdido, disse eu.

Olhe para esta loja, disparou ele repentinamente. Deparei-me com um espaço enorme de 60 a 70 metros quadrados, a loja era muito funda. Sabe, uma senhora reconverteu os seus subsídios de desemprego, de três anos, com um projecto apresentado ao IEFP. Possivelmente mais uns dinheiros do microcrédito e talvez familiares também, acrescentou. Não percebo, disse-lhe. Bem, a senhora alugou este espaço para vender vestuário, era empregada de café, disto percebia pouco. Veio a crise e de repente passou a vender fruta pelo meio das roupas e posteriormente passou à venda de nada e a ficar com a loja vazia. Tão inconsciente foi ela como os que a financiaram, pensei. Mas sabe, por todo o lado repete-se a mesma história. Crie o seu próprio emprego, é o que nos dizem, e depois (…), depois isto, foi a minha resposta. Comeram-lhe a carne, raparam-lhe os ossos mas, depois, até os ossos lhe levaram e deixaram-na com dívidas que não sabe sequer quando poderá pagar, acrescentei. Mas conheço mais gente assim, respondi-lhe, mesmo aqui em Faro, acrescentei.

A propósito de dinheiro, disse-me. “Já viu, o senhor que estudou Economia, quanto é que é preciso para manter uma casa? Tenho um T2, se é que assim se pode chamar, dado a área e a configuração do quarto do meu filho, todo esquinado. Pago 400 euros. Some-lhe a água e a luz. Some-lhe telefone e televisão. Some-lhe Internet. Some-lhe comida para três, some-lhe despesas variáveis, some-lhe por exemplo as idas de rotina da minha mulher ao especialista a Lisboa, pela doença grave de que sofre. Some… Some.” Por um cálculo rápido, 1200-1300 euros, avanço eu. Admitamos, diz-me. Mas a minha mulher trabalha a dias, eu trabalho… para, não sabe bem o que há-de dizer. É ele agora que tem a voz tremida, que tem a cabeça cheia de coisas, e a vida cheia de nadas, como o disse há pouco (…). Trabalha numa situação de precário absoluto, acrescento eu, para o desembaraçar, completando-lhe a frase. E, aqui, atrevo-me a uma pergunta delicada: e o dinheiro do seu filho, esse não conta para aqui, pergunto.

Olho e céu e de repente, de iluminado que estava nuvens passam intermitentemente a tapar-nos o brilho das estrelas. Como se (…), como estas também chorassem pelos homens que aqui em baixo caminhavam e, falavam (…), falavam do sofrimento intenso da Humanidade. Ao longe, alguns minutos depois, as nuvens desaparecem e as estrelas parecem ter desaparecido para dar lugar a uma estrela cadente que rasga e ilumina o céu repentinamente e a cair como que a indicar no céu, que havia um caminho, uma solução. Era necessário procura-lo, foi o significado que tirámos disto tudo.

Por seu lado, depois, o meu companheiro da noite e de sofrimento olha-me espantado e dispara com alguma agressividade na voz: o senhor tem uma filha. No seu caso quando ela trabalhava, recebia dinheiro da parte dela? Alguma vez recebeu? Espere, disse-lhe eu, quando assim era e a minha filha vivia comigo, eu tinha outros rendimentos que não os seus. Mas espere aí, diz-me, se não vislumbro nenhuma hipótese, ouça-me bem, nenhuma, de o poder vir a ajudar nalguma coisa, o mínimo que posso fazer, é então deixar-lhe como pecúlio o que ele ganha. Ou não é assim? Repare que a vida está a complicar-se ainda mais por razões que o senhor como economista não conhece.

Não conheço? Questiono eu.

Não é de aqui, não sofre o nosso dia a dia, o dia a dia de quem não tem trabalho para ganhar e poder viver com o mínimo de decência. Eu vou-lhe mostrar, diz-me.

E passámos por uma empresa de gestão de condomínios. Aqui tem, disse-me. Cada vez há mais destas mini-empresas. As pessoas nos prédios, com a crise, entendem-se cada vez menos entre si e até porque há cada vez menos dinheiro. Enviam os conflitos existentes como cidadãos e condóminos para estas empresas e estas, por sua vez, preocupadas com os seus lucros a manter e acossadas pela crise dos próprios condóminos esfarelam os preços. Mas a acrescentar a isto, imagine alguém com um trabalho em casa para se fazer. Basta o dono da casa perguntar a uns amigos se sabem de alguém para fazer a obra. Como cada um terá um ou mais amigos desempregados aparecem então como as moscas a oferecerem-se por meia dúzia de tostões. Desempregados contra desempregos, a luta pela sobrevivência, penso eu. Os novos escravos modernos, penso, e lembro-me de Spartacus, de  Stanley Kubrick.

Mas espere aí. Esfarelam os preços! O que é isso?

Eu não lhe disse que o senhor não sabia. Repare, atiram-nos com pedidos de orçamentos. Procuram trabalhadores a recibo verde, caso a caso, e depois, oferecem-lhes dois euros e meio à hora. Mais ainda, se não se entra no sistema e se propõe fora do esquema fazer um trabalho equivalente e de melhor qualidade como independente para o mesmo preço ou mais baixo que aquele mas sem impostos, está-se frito, é-se denunciado. Talvez porque essas empresas de gestão de condóminos, depois, não imputam os custos a dois euros e meio à hora. Procuram lucros e esta é uma maneira de os obter. Como vê, morre-se de miséria porque se trabalha, morre-se de miséria porque não se trabalha. Outra saída? Como quer então que eu ande, diga-me. Com a cabeça cheia de coisas tristes, concluiu: Ah, lembrei-me agora, comi ao almoço, ervilhas com ovos escalfados e um pouco de chouriço.

Lembrei-me dos meus tempos de operário em Lisboa, dos tempos em que lia Hegel e depois Marx, a trabalhar no bairro operário de Alvalade, numa fábrica de borracha. Ganhava 24 escudos por dia, 3 escudos por hora, o equivalente a três cafés de então. Tomemos então o café como numerário. Ganhava o equivalente a três cafés, como salário horário bruto. Ignorando pois os impostos. Agora o café custa 70 cêntimos. Com os impostos mais elevados em termos líquidos trata-se praticamente da mesma remuneração. Dou um salto. Eh, como é? Então ganha-se agora o mesmo que eu, um simples ajudante de armazém no tempo do fascismo, interrogo-me eu. Até que ponto já chegámos! O meu companheiro nada disse. Depois, dispara: não se espante, lembra-se de quanto se quer pagar a um enfermeiro, com um curso superior?

(continua)

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Para ler a Parte I desta crónica de Júlio Marques Mota, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

http://aviagemdosargonautas.net/2013/09/01/cronica-de-faro-no-4-por-julio-marques-mota/

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