Não há tolerância que possa ser invocada para desculpar o gosto pelas touradas, aquilo que em bom português se designa por aficción. Como, a não ser por uma tara, ou por uma perversão do carácter, pode alguém gostar de ver um animal a ser torturado? Se o aficcionado professa a fé católica, está a pecar, se pensa que é boa pessoa, desiluda-se, é um monstro, se se julga culto, um intelectual, por assim dizer, não pense uma coisa dessas, porque é uma besta. Se é nobre e usa um brasão num anel, nesse caso, está certo – a nobreza diz bem com a tourada – em termos de fé, no plano da ética, no da cultura…
Em 1836, o ministro do Reino Passos Manuel promulgou um decreto proibindo as touradas (coisa que o marquês de Pombal já tinha feito no século anterior): “Considerando que as corridas de touros são um divertimento bárbaro e impróprio de Nações civilizadas, bem assim que semelhantes espectáculos servem unicamente para habituar os homens ao crime e à ferocidade, e desejando eu remover todas as causas que possam impedir ou retardar o aperfeiçoamento moral da Nação Portuguesa, hei por bem decretar que de hora em diante fiquem proibidas em todo o Reino as corridas de touros.” dizia o decreto. porém as «razões» do costume prevaleceram e nove meses depois as corridas regressaram.
Os aficcionados, quando vêem rebatidos os seus argumentos de mentecaptos, recorrem ao que lhes parece ser uma razão de peso – «a tourada é uma tradição portuguesa». Será? É uma tradição castelhana, espanhola. A terminologia técnica é toda ela em castelhano. Até na chamada «tourada à portuguesa» a lide é acompanhada por pasodobles e saudada com olés.
Diz José Saramago num dos seus “Cadernos”: «O touro entra na praça. Entra sempre, creio. Este veio em alegre correria, como se, vendo aberta uma porta para a luz, para o sol, acreditasse que o devolviam à liberdade. Animal tonto, ingénuo, ignorante também, inocência irremediável, não sabe que não sairá vivo deste anel infernal que aplaudirá, gritará, assobiará durante duas horas, sem descanso. O touro atravessa a correr a praça, olha os “tendidos” sem perceber o que acontece ali, volta para trás, interroga os ares, enfim arranca na direcção de um vulto que lhe acena com um capote, em dois segundos acha-se do outro lado, era uma ilusão, julgava investir contra algo sólido que merecia a sua força, e não era mais do que uma nuvem. Em verdade, que mundo vê o touro?» (…)«O touro vai morrer. Dele se espera que tenha força suficiente, brandura, suavidade, para merecer o título de nobre. Que invista com lealdade, que obedeça ao jogo do matador, que renuncie à brutalidade, que saia da vida tão puro como nela entrou, tão puro como viveu, casto de espírito como o está de corpo, pois virgem irá morrer. Terei medo pelo toureiro quando ele se expuser sem defesa diante das armas da besta. Só mais tarde perceberei que o touro, a partir de um certo momento, embora continue vivo, já não existe, entrou num sonho que é só seu, entre a vida e a morte». Quando leu o texto, a esposa do escritor comentou «Não podes compreender»
Não há nada para compreender. Quem se diverte com a tortura de um animal é um sádico. Quem procura esconder o sadismo sob uma capa de mística,a não ser que seja nobre, é um estúpido.
Eu gosto de touradas. Eu não gosto de touradas.
Eu tenho família ribatejana, do Montijo. Cresci com touradas, com rapaziada de férias em correrias amalucadas por campinas, a fugir de garraios à solta e de alguns bichos já mais avantajados. E com as festas de S. Pedro. E touradas. Eu conheço o jargão taurino, o seu significado, a sua materialização sobre as arenas. Eu, se vejo um bom toureiro, a cavalo ou a pé, deixo-me seduzir. Não pela coragem (ainda que Lorca também a celebre), mas pela beleza plástica do movimento, pela harmonia em que confluem os movimentos do cavalo, do touro, do cavaleiro; ou do “matador”, as incontáveis variações da capa e da muleta, em que toureiro e touro se envolvem, numa dança onde a tragédia nunca deixa de estar presente, mesmo no triunfo do toureiro. Um vício, em vias de cura, mas não de esquecimento.
Eu não gosto de touradas. Ou melhor, eu decidi não gostar de touradas. Eu sei que, se assistir a uma tourada vou continuar a gostar, a apreciar este toureiro e a sua faena e a desgostar-me com a de outro. Mas aquilo de que aprendi a gostar já não é aceitável onde a civilização procura avançar.
Hemingway ou Lorca não eram sádicos nem imbecis. Nem Picasso e a sua simbologia taurina e o touro de “Guernica”, paralisado pela inaudita violência que não reconhece, irado, perplexo, angustiado, não pela espera do toureiro, que antes chegasse ele, com sua coragem e seu medo e suas ferramentas de ofício, que ferem e voam perto da areia, ainda à escala do homem, antes ele que os metálicos e cobardes insectos que procura sacudir, com a agitada cauda, dos céus que vieram macular, ou aves de rapina serão, que vomitam bandarilhas de fogo sobre a mulher e a criança, que o touro talvez tente inutilmente proteger com a forte cabeça, porque ele é, ali, a representação da vítima colectiva deste “tércio de muerte”. Não é sádico nem imbecil Ignacio Sánchez Mejías, figura singular de intelectual e toureiro, que mereceu o “Llanto” de Lorca e, só por isso, mereceria a vida que arriscou e a inevitável glória da morte que o colheu.
Mas eu não gosto de touradas. Porque vivo num tempo que não é o de Lorca, Hemingway, Picasso e tantos outros que, na “sua circunstância”, nem punham em causa a existência da “fiesta”, até porventura considerariam absurda tal hipótese.
A civilização que me recebeu há sessenta anos, procura, dificilmente, avançar. E a razão diz-me que o nível civilizacional que, hoje, ambicionamos atingir não pode aceitar a carga do sofrimento inútil de um animal como elemento de um espectáculo.
Por isso eu já não gosto de touradas. Embora ainda goste de touradas. E continue a gostar dos poemas de Lorca que cantam “toreros”, “cantaores”, “gitanos”, suas errâncias, coragens sem sentido ou resistências justas, suas danças, seus ritmos, “el duende”, que enfeitiça mulheres e homens quando canto e dança explodem, em momentos de sedução e confronto, e os poetas deles recolhem as palavras que hão-de juntar em novos poemas. E gosto dos poemas e prosas de outros, que habitaram e habitam “La pell de brau” ou “la piel del toro”, ou por ela passaram e contaram e contam o seu tempo e os sentidos dele.
Como gosto do gozo com que Almodôvar aborda as touradas e seus rituais, já decadentes, em “Matador”, a ambiguidade sexual do confronto do touro e do toureiro e de cada um deles, de per si, as cores de sangue e areia da bandeira de Espanha com que veste Assumpta Serna, que parte para a representação ritual, milenarmente diagnosticada, glosada, transmitida, da tensão entre o sexo e a morte.
Não posso matar o que culturalmente me precedeu, os significados que assumiu, as obras que originou.
Posso decidir, como ser racional, sem elidir esse passado, que certas tradições já não têm lugar nas sociedades que queremos construir.
Porém, refiro-me sempre, neste texto, a um estado civilizacional que “ainda” está em construção. E que, neste momento, está em fase de recuo. Em muitos sentidos.
Já não gosto de touradas, uma tradição ultrapassada.
Mas como sustentar a erradicação das touradas, quando uma nova tradição se constrói, a da humilhação de seres humanos enquanto novo espectáculo, em “reality shows”, em que homens e mulheres, metafórica e mesmo literalmente, deixam sangue e honra, são feridos até à morte na sua dignidade, para gáudio de audiências televisivas, dignas herdeiras das multidões circenses que outrora desfrutavam, com idêntica alarvidade, das lutas de gladiadores?
Onde estão os movimentos de defesa dos direitos humanos, em igualdade com os dos touros?
Onde está a “consciência ética” da nossa época?
Meu Caro Paulo, num outro texto que aqui publiquei, antecipava os argumentos «intelectuais» – Hemingway, Lorca, Picasso, Goya… Claro que nenhum deles era um imbecil – provaram-no com as suas obras geniais. Quanto ao sadismo, não estaria tão seguro. É curioso como o espanholismo, um conceito identitário com que se procura justificar a aculturação de nações hispânicas, se serve dos mesmos argumentos. Aliás, a tourada é um dos pilares do espanholismo, tal como o flamenco. Outro argumento usado é o da crueldade a que os seres humanos continuam a ser sujeitos – e se há pessoas submetidas, expostas à crueldade, por que nos havemos de preocupar com os animais? Não me parece um argumento válido – a crueldade, a tortura, transformadas em espectáculo são uma ignomínia. O sadismo usado contra um animal poderá, logo que as circunstâncias o permitam e justifiquem, ser usado contra seres humanos – lembremo-nos como na Guerra Colonial, bons rapazes, meninos de suas mães, cometiam actos horrorosos e (é só um exemplo) jogavam futebol com cabeças de seres humanos. Muito do que fazemos está errado e muitos dos erros que cometemos são atavismos. E mais longe não vou na compreensão dos “aficcionados” – acho que devem consultar um especialista. Que não seja “aficcionado”.
Nunca fui um aficcionado. Nem do Benfica, apesar de toda a minha família ser benfiquista e de eu ter sido sócio do tal “glorioso” – e na sua era mais “gloriosa” – enquanto o meu pai pagou as quotas; o que não me impediu de deixar de ter simpatias clubísticas, perante o comportamento de dirigentes “desportivos” e das hordas de selvagens “claquéticos” que, na melhor das hipóteses, toleram, quando não acicatam.
Nem sequer cabem no meu baú de emoções estéticas inesquecíveis quaisquer “momentos tauromáquicos”, embora caibam alguns seus derivados, como o “Llanto” lorquiano ou a simbologia picassiana de “Guernica”.
Falei de outra coisa. Talvez tenha procurado esboçar, ao correr do teclado, um roteiro para a compreensão de um elemento importante na tradição cultural do território ibérico, alguns dos seus derivados castelhanos e de uma parte do sul de França.
Mas creio não ter deixado dúvidas de que não defendo a continuação das touradas.
Porém, também não sou grande aficcionado da teoria da transposição de certos tipos de crueldade com os animais para os seres humanos. Uma criança que espeta insectos com alfinetes ou dispersa carreiros de formigas (com a crueldade inata da maioria dos infantes) poderá, simplesmente, vir a ser um excelente entomologista. Considero, por exemplo, que a caça e a pesca puramente “desportivas” já não têm, hoje, razão de ser, mas conheço gente muit(íssimo) boa capaz de excomungar quem partilhe desta opinião.
No entanto, aproveitei a boleia tauromáquica para chegar a uma questão que me preocupa muito mais, no que se refere à sua eficácia em termos de “treino” para a crueldade: os “formatos” televisivos (cuja essência primitiva se vai estendendo à internet), criados à molhada por alguns seres humanos, que visam atrair audiências e subsequentes lucros com o achincalhamento público de outros seres humanos (que estes não se apercebam da sua redução a mero “valor de uso” é irrelevante). Entre criadores, intervenientes profissionais e vítimas estonteadas, creio que se encontram, muito mais facilmente do que nos redondéis, os melhores candidatos a torcionários, assassinos profissionais ou déspotas. Porque o que é fundamental para agir com crueldade indiferente sobre outros seres humanos é este género de amoralidade absoluta, ausência de dignidade e desprezo pelo “outro”. E aquilo a que muitos espectadores estão a assistir, quotidianamente, com um entusiasmo alarve, e que cada vez desce, eticamente, mais baixo, a profundezas onde já se perdeu qualquer consciência de humanidade, é, em meu entender, muito mais preocupante do que os espectáculos taurinos. E não vejo nenhum movimento (que, de resto, seria logo vigorosamente condenado, em nome da livre concorrência e – já não pasmo! – da “liberdade de expressão”) que se oponha a esta degradação civilizacional, a este deslizar para uma perspectiva de convívio social onde tudo parece serpermitido. E, face a esta monstruosa hipocrisia, no que se refere a animais, limito-me a repudiar coisas do tipo da matança de focas-bebés e outras do mesmo quilate.
Num hipotético referendo, votaria contra a manutenção do espectáculo taurino. Mas confesso que estes e outros temas (alguns bem idiotas) que envolvem animaizinhos, desde que não estejam ameaçados de extinção nem contribuam para alterações ambientais, me mobilizam pouco, face à necessidade urgente de salvar a Humanidade da acção dos seus piores espécimes.
Caro Paulo, quando editei este post, com um título provocatório, não pensei nunca em destinatários como tu. Compreendo os teus argumentos, embora não aceite a desvalorização que fazes «destes e de outros temas (alguns bem idiotas) que envolvem animaizinhos, desde que não estejam ameaçados de extinção nem contribuam para alterações ambientais, me mobilizam pouco, face à necessidade urgente de salvar a Humanidade da acção dos seus piores espécimes». Os touros de lide são o produto de cruzas, de uma incipiente manipulação genética e, se acabarem as touradas, deixam de fazer sentido. Aliás, é um dos «argumentos» de quem defende o espectáculo taurino – se não houver touradas, deixa de haver touros. Mas não aceito a desvalorização que fazes, porque o que está em causa é precisamente uma questão que tem a ver com a Humanidade, cuja salvação, e muito bem, colocas em primeiro lugar. Todos os problemas da nossa espécie têm raiz em défices de ética que colocam, por exemplo, o lucro, a usura, a posse, acima dos deveres de solidariedade para com a própria espécie. Matar animaais para nos alimentarmos é diferente de nos divertirmos a vê-los morrer sob tortura. O que está em causa não é a extinção dos touros é a extinção da espécie humana que o gozo do miserável espectáculo taurino preconiza. O facto de haver problemas mais graves, não significa que não nos ocupemos deste. Porque este é um sintoma, um reflexo, uma antecâmara dos outros.
Só para esclarecer: a referência ao não envolvimento de espécies em extinção, destina-se, precisamente, a excluir os touros de lide (cuja origem exógena também conheço) desta classificação disparatada, transformada em argumento, obviamente, nulo.
As touradas representam simbolicamente o domínio dos nossos defeitos psicológicos, onde cada um de nós deve eliminar os defeitos matando o touro. Pegar o touro pelos chifres significa enfrentar nossos defeitos admitindo que os temos, humilhando-nos à Deus e assim eliminando-os. As touradas em si é crueldade….devemos ser cruéis com nossos defeitos. As touradas são representações simbólicas profundas….Estudemos a Gnose…..Um forte abraço à todos….
Genialidade criativa não pode se confundida com inteligência emocional e ou empatia, Hitler era Wagneriano. Sou determinantemente contra qualquer tipo de sofrimento evitável. E concordo em absoluto com o texto, mas isso sou eu que me comovo por ver o sofrimento de um animal de forma absolutamente gratuita. ( há sofrimentos inevitáveis ou menos evitáveis) este não e um deles
Eu gosto de touradas. Eu não gosto de touradas.
Eu tenho família ribatejana, do Montijo. Cresci com touradas, com rapaziada de férias em correrias amalucadas por campinas, a fugir de garraios à solta e de alguns bichos já mais avantajados. E com as festas de S. Pedro. E touradas. Eu conheço o jargão taurino, o seu significado, a sua materialização sobre as arenas. Eu, se vejo um bom toureiro, a cavalo ou a pé, deixo-me seduzir. Não pela coragem (ainda que Lorca também a celebre), mas pela beleza plástica do movimento, pela harmonia em que confluem os movimentos do cavalo, do touro, do cavaleiro; ou do “matador”, as incontáveis variações da capa e da muleta, em que toureiro e touro se envolvem, numa dança onde a tragédia nunca deixa de estar presente, mesmo no triunfo do toureiro. Um vício, em vias de cura, mas não de esquecimento.
Eu não gosto de touradas. Ou melhor, eu decidi não gostar de touradas. Eu sei que, se assistir a uma tourada vou continuar a gostar, a apreciar este toureiro e a sua faena e a desgostar-me com a de outro. Mas aquilo de que aprendi a gostar já não é aceitável onde a civilização procura avançar.
Hemingway ou Lorca não eram sádicos nem imbecis. Nem Picasso e a sua simbologia taurina e o touro de “Guernica”, paralisado pela inaudita violência que não reconhece, irado, perplexo, angustiado, não pela espera do toureiro, que antes chegasse ele, com sua coragem e seu medo e suas ferramentas de ofício, que ferem e voam perto da areia, ainda à escala do homem, antes ele que os metálicos e cobardes insectos que procura sacudir, com a agitada cauda, dos céus que vieram macular, ou aves de rapina serão, que vomitam bandarilhas de fogo sobre a mulher e a criança, que o touro talvez tente inutilmente proteger com a forte cabeça, porque ele é, ali, a representação da vítima colectiva deste “tércio de muerte”. Não é sádico nem imbecil Ignacio Sánchez Mejías, figura singular de intelectual e toureiro, que mereceu o “Llanto” de Lorca e, só por isso, mereceria a vida que arriscou e a inevitável glória da morte que o colheu.
Mas eu não gosto de touradas. Porque vivo num tempo que não é o de Lorca, Hemingway, Picasso e tantos outros que, na “sua circunstância”, nem punham em causa a existência da “fiesta”, até porventura considerariam absurda tal hipótese.
A civilização que me recebeu há sessenta anos, procura, dificilmente, avançar. E a razão diz-me que o nível civilizacional que, hoje, ambicionamos atingir não pode aceitar a carga do sofrimento inútil de um animal como elemento de um espectáculo.
Por isso eu já não gosto de touradas. Embora ainda goste de touradas. E continue a gostar dos poemas de Lorca que cantam “toreros”, “cantaores”, “gitanos”, suas errâncias, coragens sem sentido ou resistências justas, suas danças, seus ritmos, “el duende”, que enfeitiça mulheres e homens quando canto e dança explodem, em momentos de sedução e confronto, e os poetas deles recolhem as palavras que hão-de juntar em novos poemas. E gosto dos poemas e prosas de outros, que habitaram e habitam “La pell de brau” ou “la piel del toro”, ou por ela passaram e contaram e contam o seu tempo e os sentidos dele.
Como gosto do gozo com que Almodôvar aborda as touradas e seus rituais, já decadentes, em “Matador”, a ambiguidade sexual do confronto do touro e do toureiro e de cada um deles, de per si, as cores de sangue e areia da bandeira de Espanha com que veste Assumpta Serna, que parte para a representação ritual, milenarmente diagnosticada, glosada, transmitida, da tensão entre o sexo e a morte.
Não posso matar o que culturalmente me precedeu, os significados que assumiu, as obras que originou.
Posso decidir, como ser racional, sem elidir esse passado, que certas tradições já não têm lugar nas sociedades que queremos construir.
Porém, refiro-me sempre, neste texto, a um estado civilizacional que “ainda” está em construção. E que, neste momento, está em fase de recuo. Em muitos sentidos.
Já não gosto de touradas, uma tradição ultrapassada.
Mas como sustentar a erradicação das touradas, quando uma nova tradição se constrói, a da humilhação de seres humanos enquanto novo espectáculo, em “reality shows”, em que homens e mulheres, metafórica e mesmo literalmente, deixam sangue e honra, são feridos até à morte na sua dignidade, para gáudio de audiências televisivas, dignas herdeiras das multidões circenses que outrora desfrutavam, com idêntica alarvidade, das lutas de gladiadores?
Onde estão os movimentos de defesa dos direitos humanos, em igualdade com os dos touros?
Onde está a “consciência ética” da nossa época?
Meu Caro Paulo, num outro texto que aqui publiquei, antecipava os argumentos «intelectuais» – Hemingway, Lorca, Picasso, Goya… Claro que nenhum deles era um imbecil – provaram-no com as suas obras geniais. Quanto ao sadismo, não estaria tão seguro. É curioso como o espanholismo, um conceito identitário com que se procura justificar a aculturação de nações hispânicas, se serve dos mesmos argumentos. Aliás, a tourada é um dos pilares do espanholismo, tal como o flamenco. Outro argumento usado é o da crueldade a que os seres humanos continuam a ser sujeitos – e se há pessoas submetidas, expostas à crueldade, por que nos havemos de preocupar com os animais? Não me parece um argumento válido – a crueldade, a tortura, transformadas em espectáculo são uma ignomínia. O sadismo usado contra um animal poderá, logo que as circunstâncias o permitam e justifiquem, ser usado contra seres humanos – lembremo-nos como na Guerra Colonial, bons rapazes, meninos de suas mães, cometiam actos horrorosos e (é só um exemplo) jogavam futebol com cabeças de seres humanos. Muito do que fazemos está errado e muitos dos erros que cometemos são atavismos. E mais longe não vou na compreensão dos “aficcionados” – acho que devem consultar um especialista. Que não seja “aficcionado”.
Nunca fui um aficcionado. Nem do Benfica, apesar de toda a minha família ser benfiquista e de eu ter sido sócio do tal “glorioso” – e na sua era mais “gloriosa” – enquanto o meu pai pagou as quotas; o que não me impediu de deixar de ter simpatias clubísticas, perante o comportamento de dirigentes “desportivos” e das hordas de selvagens “claquéticos” que, na melhor das hipóteses, toleram, quando não acicatam.
Nem sequer cabem no meu baú de emoções estéticas inesquecíveis quaisquer “momentos tauromáquicos”, embora caibam alguns seus derivados, como o “Llanto” lorquiano ou a simbologia picassiana de “Guernica”.
Falei de outra coisa. Talvez tenha procurado esboçar, ao correr do teclado, um roteiro para a compreensão de um elemento importante na tradição cultural do território ibérico, alguns dos seus derivados castelhanos e de uma parte do sul de França.
Mas creio não ter deixado dúvidas de que não defendo a continuação das touradas.
Porém, também não sou grande aficcionado da teoria da transposição de certos tipos de crueldade com os animais para os seres humanos. Uma criança que espeta insectos com alfinetes ou dispersa carreiros de formigas (com a crueldade inata da maioria dos infantes) poderá, simplesmente, vir a ser um excelente entomologista. Considero, por exemplo, que a caça e a pesca puramente “desportivas” já não têm, hoje, razão de ser, mas conheço gente muit(íssimo) boa capaz de excomungar quem partilhe desta opinião.
No entanto, aproveitei a boleia tauromáquica para chegar a uma questão que me preocupa muito mais, no que se refere à sua eficácia em termos de “treino” para a crueldade: os “formatos” televisivos (cuja essência primitiva se vai estendendo à internet), criados à molhada por alguns seres humanos, que visam atrair audiências e subsequentes lucros com o achincalhamento público de outros seres humanos (que estes não se apercebam da sua redução a mero “valor de uso” é irrelevante). Entre criadores, intervenientes profissionais e vítimas estonteadas, creio que se encontram, muito mais facilmente do que nos redondéis, os melhores candidatos a torcionários, assassinos profissionais ou déspotas. Porque o que é fundamental para agir com crueldade indiferente sobre outros seres humanos é este género de amoralidade absoluta, ausência de dignidade e desprezo pelo “outro”. E aquilo a que muitos espectadores estão a assistir, quotidianamente, com um entusiasmo alarve, e que cada vez desce, eticamente, mais baixo, a profundezas onde já se perdeu qualquer consciência de humanidade, é, em meu entender, muito mais preocupante do que os espectáculos taurinos. E não vejo nenhum movimento (que, de resto, seria logo vigorosamente condenado, em nome da livre concorrência e – já não pasmo! – da “liberdade de expressão”) que se oponha a esta degradação civilizacional, a este deslizar para uma perspectiva de convívio social onde tudo parece serpermitido. E, face a esta monstruosa hipocrisia, no que se refere a animais, limito-me a repudiar coisas do tipo da matança de focas-bebés e outras do mesmo quilate.
Num hipotético referendo, votaria contra a manutenção do espectáculo taurino. Mas confesso que estes e outros temas (alguns bem idiotas) que envolvem animaizinhos, desde que não estejam ameaçados de extinção nem contribuam para alterações ambientais, me mobilizam pouco, face à necessidade urgente de salvar a Humanidade da acção dos seus piores espécimes.
Caro Paulo, quando editei este post, com um título provocatório, não pensei nunca em destinatários como tu. Compreendo os teus argumentos, embora não aceite a desvalorização que fazes «destes e de outros temas (alguns bem idiotas) que envolvem animaizinhos, desde que não estejam ameaçados de extinção nem contribuam para alterações ambientais, me mobilizam pouco, face à necessidade urgente de salvar a Humanidade da acção dos seus piores espécimes». Os touros de lide são o produto de cruzas, de uma incipiente manipulação genética e, se acabarem as touradas, deixam de fazer sentido. Aliás, é um dos «argumentos» de quem defende o espectáculo taurino – se não houver touradas, deixa de haver touros. Mas não aceito a desvalorização que fazes, porque o que está em causa é precisamente uma questão que tem a ver com a Humanidade, cuja salvação, e muito bem, colocas em primeiro lugar. Todos os problemas da nossa espécie têm raiz em défices de ética que colocam, por exemplo, o lucro, a usura, a posse, acima dos deveres de solidariedade para com a própria espécie. Matar animaais para nos alimentarmos é diferente de nos divertirmos a vê-los morrer sob tortura. O que está em causa não é a extinção dos touros é a extinção da espécie humana que o gozo do miserável espectáculo taurino preconiza. O facto de haver problemas mais graves, não significa que não nos ocupemos deste. Porque este é um sintoma, um reflexo, uma antecâmara dos outros.
Só para esclarecer: a referência ao não envolvimento de espécies em extinção, destina-se, precisamente, a excluir os touros de lide (cuja origem exógena também conheço) desta classificação disparatada, transformada em argumento, obviamente, nulo.
As touradas representam simbolicamente o domínio dos nossos defeitos psicológicos, onde cada um de nós deve eliminar os defeitos matando o touro. Pegar o touro pelos chifres significa enfrentar nossos defeitos admitindo que os temos, humilhando-nos à Deus e assim eliminando-os. As touradas em si é crueldade….devemos ser cruéis com nossos defeitos. As touradas são representações simbólicas profundas….Estudemos a Gnose…..Um forte abraço à todos….
Genialidade criativa não pode se confundida com inteligência emocional e ou empatia, Hitler era Wagneriano. Sou determinantemente contra qualquer tipo de sofrimento evitável. E concordo em absoluto com o texto, mas isso sou eu que me comovo por ver o sofrimento de um animal de forma absolutamente gratuita. ( há sofrimentos inevitáveis ou menos evitáveis) este não e um deles