CONTOS & CRÓNICAS – Vida nova – por Carla Romualdo

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Acompanhei-o ao aeroporto. Levava o velho casaco coçado e aquele jeito estranho de cruzar os braços como se tivesse recebido um par de mãos recentemente e ainda não soubesse o que fazer com elas. Sempre tenso, sempre sem jeito. Um pequeno saco a tiracolo e uma mala já bastante esmurrada, que atirou para cima do tapete com uma facilidade inesperada. A balança marcou dezoito quilos e meio. Era quanto lhe pesava a vida toda: dezoito quilos e meio.

Sentámo-nos a tomar café, o peso da despedida ia apertando cada vez mais, tragava as palavras ainda antes de as proferirmos.

– Já tens casa? – atrevi-me a perguntar.

– Fico num hotel na primeira semana, depois de certeza que arranjo qualquer coisa.

Novo silêncio.

– Isto de começar uma vida nova depois dos 50 é só para valentes!

Ele soltou uma risadinha nervosa, murmurou um “pois é”quase inaudível.

A vida dele aqui estava encerrada e esta espera no café do aeroporto era só uma encenação que procurava iludir esse final, prolongando-o artificialmente, mas ansiávamos ambos pelo momento da partida.

Que esperava ele? África era uma memória nebulosa de juventude, mas tinha sido a terra da felicidade. Aqui tudo se transformara numa rua sem saída, um caminho solitário que ele se fartara de percorrer.

Ofereci-lhe o presente de despedida, uma piada entre nós: um canivete suíço.

– Nunca se sabe que terrenos terás que desbravar.

Trinta anos separavam-nos, mas neste lapso de tempo que antecedeu a sua nova vida fôramos amigos.

Trocámos um abraço sem jeito, desejei-lhe boa sorte, prometemos que trocaríamos mensagens que já sabíamos que iriam espaçar-se depressa, até desaparecer de vez.

Vi-o avançar com passos rápidos, um último aceno, e escapou-se.

Imagino o seu alívio quando viu o velho continente ficar para trás, com a sua carga de sofrimento, as memórias sombrias, os dias solitários, o absurdo dos dias iguais. Uma nova vida esperava-o, sem aridez nas relações humanas, sem a angústia das noites de Verão passadas a sós. O trabalho não engoliria a sua vida, haveria de haver muitas noites caseiras, com música a tocar baixinho na varanda, e um perfume de mulher a esvoaçar pela casa.

Ainda não tinha saído do avião e já a velha vida o tinha apanhado de novo.

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