Sabem o que é uma Moviola? Basicamente consiste num visor iluminado, em dois rolos e numa manivela. Acho que deixou de se usar, mas servia para visionar filmes, fotograma a fotograma ou com movimento, se déssemos à manivela. O filme era introduzido, as ranhuras laterais engrenadas em rodas dentadas e aí estava a Moviola pronta a funcionar. Na sua simplicidade, era um artefacto essencial para fazer cinema – muitas obras primas passaram por esta maquineta que, digamos, era uma mesa de montagem: passavam-se bobinas – corta aqui, cola ali, intercala acolá… e assim se fizeram alguns grandes filmes. Vou falar dos finais felizes nos filmes e já veremos o que tem a Moviola a ver com isso.
Há quem prefira os finais felizes, os happy ending. Antigamente, quando alguém recomendava um filme, era raro não vir a pergunta – Acaba bem? E às vezes a resposta era: – Acaba mal, mas é muito bom. Acabar mal era um handicap – havia quem se recusasse a ver filmes que acabassem mal – “Para tragédia, chega a minha vida”, era comum ouvir-se. Mas os filmes «trágicos» tinham o seu público – «É lindo! Fartei-me de chorar!” Finais felizes só nos livros, no teatro ou nos filmes. Na vida real não existem. Mas nem sempre foi assim.
O Romantismo cultivava os desenlaces trágicos. A ópera é um exemplo. Muitas acabam com um dos protagonistas agonizante cantando uma ária de adeus à vida, como madama Butterfly ou como Mario Cavaradossi. Ópera que acabasse bem não respeitava o cânone – só a opera buffa – um género lateral e talvez considerado menor. Era a exaltação da tragédia, num espectáculo para burgueses, perfumados, exibindo trajes e jóias, assistiam às líricas exaltações da morte, protegendo-se o melhor que podiam de por ela ser alcançados. No apogeu da tragédia operática, a morte chegava sem grandeza, de forma sórdida, a pedreiras, a bairros insalubres , aos tugúrios dos trabalhadores, apanhando-os em enxergas infestadas de percevejos – febres, hemoptises, quedas de andaimes, não davam tempo a cantar árias…Morte bonita, só na ópera.
Mas com o século XX chegaria a fábrica dos sonhos – Hollywood que inventou os finais felizes. Nada acaba bem na vida real, tudo acaba mal, porque não podemos usar a Moviola. Nas Moviolas (ou nas mesas de montagem), os finais felizes são trabalho de “tesoura”. Num dado momento da história que se está a contar, dá-se uma tesourada e obtém-se o tal final. É assim nos filmes.
Vou dar um pequeno exemplo com a história banal de um rapaz e de uma rapariga que se amam, João e Matilde, pode ser.
– Luzes! Câmara! Acção!
Vão casar em breve, estão muito felizes, abriram uma conta conjunta no Millenium, e andam a ver casas. Exterior estúdio – dia. Está tudo a correr muito bem, mas, Laura, a agente da imobiliária, que está a querer impingir um T1 na Brandoa (também pode ser na Rinchoa ou em Massamá) engraça com o João.
Grande plano de Laura- estão num café em frente do andar e ela diz: João, você podia passar amanhã pelo meu escritório? – Contre – plongée da parte inferior da mesa – toque da perna da vendedora na perna do rapaz Plano americano do rosto de João – expressão de enlevo. Plano Próximo do rosto da futura ex-noiva – resignação.
Cena seguinte: Exterior natural – falésia – Boca do Inferno ou coisa assim.
Plano geral – Matilde, à beira da falésia lê uma carta – Plano Próximo . rosto da rapariga – lágrimas – voz de João em off -«Você me entenda, meu bem, o nosso amor não dá… Mas nunca esquecerei você… ». Plongée – a altura das falésias, logo seguido de contre-plongée – Matilde prepara o salto… – por certo se vai suicidar – Corta!
Temos um drama, chocho, mas um drama. Olha, afinal não corta, continua. Panorâmica: Matilde desce os degraus e vai até à praia onde se conheceram.
Flashback – João, em calções de banho oferece um Olá de baunilha a Laura, também em fato de banho – João faz a sua habitual cara de parvo, o chamado sorriso alvar. Matilde, encolhe os ombros, tímida, e aceita o gelado. No rosto tem também aquele brilho baço que é costume as raparigas fazerem neste passo do ritual de acasalamento.
Do flashback passa-se ao tempo actual. João, reconsiderou e volta para Matilde. Laura não tinha querido abdicar da comissão de 5% e João levou a mal e, por isso, vem ao encontro de Matilde. Correm sobre a areia um para o outro em câmara lenta (sabem como é, slow motion…) . Abraçam-se, beijam-se e o rapaz roda com a (novamente) noiva, nos braços – corta! Happyending – venha o genérico! Acabou bem!
-Isso é que era bom – grita o realizador – Happy end o tanas! Não corta nada!
João continua a rodar cada vez mais depressa, tropeça num calhau e larga a Matilde que vai malhar com a cabeça nuns rochedos – Grande plano – muito sangue – morreu – João chora – genérico . drama – mas não corta – vem a ambulância do INEM – desfibrilhador – Matilde é reanimada e cura-se. Beijo, genérico. Final feliz. E assim sucessivamente até que casam.
O carro afasta-se a arrastar tachos e latas de cerveja – genérico – Happy ending! Se continua, na A23, o João fatigado adormece ao volante, galga o separador central e vão embater num camião cisterna – explosão! Corta! Acabou mal? Não – o casal foi projectado pela explosão e acordam, cada um em cima da sua árvore, com leves escoriações e passarinhos a cantar em redor. Acabam por comprar um T3 nas Telheiras,,, happy ending… a Matilde, passados anos, envolve-se com Camilo, um vizinho,,, e assim sucessivamente.
Estão a ver? O happy ending não existe é, como o pai Natal uma invenção dos ianques. No mundo real, os camones largam bombas atómicas, desencadeiam guerras, destroem economias de países mais vulneráveis, mudam governos… – em suma, semeiam tragédias, finais infelizes. Depois, virtualmente, é só felicidade: jingle bells, jingle bells… grandes beijos nos happy endings, lenços kleenex para as lágrimas quando acaba mal. Tudo previsto.
Mas no filme das nossas vidas não há Moviola que possa valer.