PENSAR DIFERENTE, IMPACTOS HUMANITÁRIOS DA CRISE ECONÓMICA NA EUROPA – UM RELATÓRIO DA CRUZ VERMELHA INTERNACIONAL E DO CRESCENTE VERMELHO (EXCERTOS).

Selecção, tradução, organização e introdução por Júlio Marques Mota

IFRC-logo

Pensar diferente, impactos humanitários da crise económica na Europa

Um relatório da Cruz Vermelha Internacional e do Crescente Vermelho (excertos)

PARTE X
(CONTINUAÇÃO)

Carregando no botão para o pânico

Embora as organizações humanitárias, de caridade e a sociedade civil sintam o imperativo de preencher as lacunas criadas pelas políticas de austeridade quando os governos cortam no financiamento para a saúde e para a segurança social, as suas intervenções estão muitas vezes longe de serem suficientes. Além disso, os corte na saúde pública são muito míopes ignorando-se que os custos a longo prazo serão bem maiores.

A Letónia foi um dos primeiros países a ser atingido pela crise no final de 2008, e apesar de se considerar oficialmente fora já da crise, os efeitos ainda são sentidos.

” A Letónia esteve verdadeiramente a cambalear à beira de um penhasco e em seguida o governo activou o mecanismo do pânico. Os custos foram aplicados em toda a linha, os custos de saúde incluídos, “diz Viktors Jaksons, presidente da Cruz Vermelha da Letónia.

Jaksons é também um antigo ministro da saúde do seu país e desde há muito tempo é membro do Conselho Executivo da Organização Mundial de Saúde.

“Em 2009 nós cortamos no nosso orçamento de saúde cerca de 18,9 por cento. As maiores reduções, até um terço, foram feitas nos custos de tratamento. Os salários, bem como o número de funcionários foram pois reduzidos e todas as novas operações já planeadas foram canceladas. A participação nos custos pelos pacientes dispararam e então passou a sair‑lhes do próprio bolso quase 40 por cento dos custos totais por paciente. Esta política de saúde tornou os serviços demasiado caros para muitos de nós, não só para os mais pobres,” disse o Dr Jaksons.

Devido aos cortes salariais profundos e à sobrecarga de trabalho, muitos profissionais de saúde pública emigraram ou entraram para as clínicas privadas, aumentando a pressão daqueles que ficaram nos serviços públicos. Na verdade, desta forma, cresceram mais e mais as filas de espera para tratamento em muitos serviços públicos e apesar do aumento dos custos de acesso aos cuidados de saúde,.

“Com os salários a ficarem mais baixos e com as listas de espera cheias de pacientes, a profissão médica perdeu muito do seu prestígio. Francamente, até mesmo a dedicação para atender os pacientes estava a ser vítima no meio de todo este caos social. Muitos dos problemas decorrentes de cortes orçamentais irão permanecer e por muito tempo. Vai constituir um enorme desafio conseguir aumentar a esperança de vida, conseguir que venha a diminuir a mortalidade e a morbidade. As doenças crónicas continuarão a ser um encargo adicional, ” acrescenta Viktors Jaksons,

Gráfico 2. Rácios de probabilidades do risco de ficar a sofrer de doença mental das pessoas com aumento do nível de endividamento.

cruz vermelha VIII

Os dados foram obtidos a partir de uma amostra de 8.600 pessoas representativa a nivel nacional e que vivem no Reino Unido. As variáveis sociodemográficas chave para os ajustamentos foram a idade, etnia, estado civil, dimensão do agregado, rendimentos do agregado familiar, educação, classe social, estatuto de emprego, região urbana ou rural. Fonte: Jenkins et al.

Document reference: Impact of economic crises on mental health; WHO; 2011.

” A confiança, uma vez perdida, é difícil de se reconstruir. A confiança do público em geral nas estruturas de saúde pública foi seriamente danificada na Letónia. Refazer no país um adequado conjunto de equipas médicas também levará tempo, esforço assim como é necessário reconstituir e refazer a posição de confiança qe havia entre profissionais e o sistema de saúde pública.”

Cortem nas gorduras, não no resto

A Letônia e a Grécia não são os únicos países que até agora cortaram nos orçamentos da saúde. Em Espanha, os orçamentos foram cortados em 14 por cento com efeitos devastadores, incluindo no aumento de doenças. A Cruz Vermelha sueca relata que, mesmo que os salários tenham de facto aumentado, na verdade, certos grupos vulneráveis são afectados pelas mudanças legais quanto à aplicação dos cuidados de saúde e quanto aos seguros de desemprego, baixando os níveis de compensação ou limitando o tempo em que a eles podem ter acesso.

A obra Body Politics, um livro escrito por David Stuckler e Sanjay Brum, publicado em Maio de 2013 analisa as crises económicas passadas e presentes e chega a uma conclusão clara, com base numa vasta análise dos dados. Os desastres econômicos podem afectar a saúde pública na medida em que as pessoas morrem na sua consequência, mas não tem que ser necessáriamente assim.

Terceira Grande Tendência: O enfraquecimento dos sistemas de saúde

De acordo com Stuckler e Brum, os dados da Grande Depressão, que durou desde 1929 até ao longo de quase toda a década de 30, assim como os dados de mortalidade no pós-comunismo na Rússia e da crise das divisas na Ásia na década de 1990, até ao início da actual crise europeia, todas estas crises mostram que se as redes de segurança social funcionarem bem e os custos de saúde pública permanecerem inalterados, então, mesmo a mais dramática crise económica não terá efeitos negativos significativos para a saúde.

Na verdade, talvez tenham tido efeitos positivos. Alguns estudos mostram que a população da Islândia melhorou a sua saúde após a crise, talvez devido ao facto de que as cadeias de fast-food deixaram o país, por causa da subida dos preços dos bens importados necessários à sua confecção.

Grécia: um doente que era um verdadeiro cavalheiro

A história do senhor Konstantinos, um homem grego de 60 ano de idade, é a história de crise do país e de uma pessoa que recebe o apoio da Cruz Vermelha na Grécia num momento de grande necessidade.

Depois de terem diagnosticado no hospital ao senhor Konstantinos, uma grave infecção na parte inferior da perna esquerda, ele contactou o departamento de enfermagem da Cruz Vermelha para receber tratamento médico gratuito, uma vez que ele não era capaz de poder pagar fosse o que fosse por qualquer serviço de hospital privado ou mesmo público em Atenas.

A infecção era grave e precisava de limpeza especial e de tratamentos médicos caros. Além disso, ele precisava de um especialista de Angiologia para cuidar dele e isso tornou-se possível através do serviço de enfermagem da Cruz Vermelha helénica.

O senhor Konstantinos começou as suas visitas ao departamento de enfermagem no final de Abril e gostava de conhecer melhor o pessoal de enfermagem da Cruz Vermelha e os voluntários. Ele também ficou impressionado com a delicadeza e a personalidade do pessoal, que o descreveram como sendo ele um verdadeiro cavalheiro a passar por uma situação muito difícil. As enfermeiras descobriram que ele era um antigo homem de negócios anteriormente bem conhecido e altamente respeitado, um fabricante de artigos de couro.

Durante semanas, o senhor Konstantinos recusou a oferta de enfermeiros para irem à casa dele prestarem-lhe serviços médicos de que precisava, o que os surpreendeu, dada a sua idade e a condição em que a sua perna estava. No entanto, em Junho ele finalmente disse aos enfermeiras, que tinha recusado as ofertas deles e em que sempre evitou perguntas sobre o seu próprio domicílio porque, na verdade, ela era um homem sem-domicílio, um sem abrigo, e está assim desde o ano passado.

Ele tinha perdido tudo: rendimento, habitação, carro, até os papéis de seguros de saúde pública, desde o momento em que deixou de poder pagar as taxas de seguro de saúde.

A sua última visita aos serviços de enfermagem da Cruz Vermelha grega estava para ser em Julho uma vez que a recuperação da infecção da sua perna tinha sido espantosa. No entanto, foi apenas a última visita médica, porque mesmo depois de seu tratamento ter sido concluído, ele continua a aparecer no posto de saúde para um bate-papo com os enfermeiros e os voluntários que se tornaram seus amigos.

A Cruz Vermelha grega é uma das organizações que agora oferece serviços de saúde gratuitamente para os mais vulneráveis na sua rede de postos de saúde em várias partes do país. Em 2012, as principais prioridades do departamento de enfermagem foram a redução da mortalidade infantil e a melhoria da saúde materna.

No ano passado mais de 6.300 crianças foram examinadas pelos pediatras da Cruz Vermelha e quase 1.000 mães contactaram os postos de saúde ou receberam visitas domiciliares. Foram vacinadas cerca de 3.500 crianças de famílias vulneráveis e desempregadas contra uma série de doenças e mais de 3.000 alunos fizeram testes de tuberculose.

(continua)

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Para ler a parte IX deste trabalho sobre o relatório da IFRC, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

PENSAR DIFERENTE, IMPACTOS HUMANITÁRIOS DA CRISE ECONÓMICA NA EUROPA – UM RELATÓRIO DA CRUZ VERMELHA INTERNACIONAL E DO CRESCENTE VERMELHO (EXCERTOS).

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