Furioso, João entrou na livraria e só lá dentro se deu conta de que era uma livraria gay, de literatura erótica. Não tinha disposição para nada, muito menos para aquilo. Deu duas voltas à sala, cumprimentou e saiu. Madrid estava fria como o seu coração, e sentia uma lagrimeta no canto dos olhos. Atirou-se para a cadeira de uma esplanada em frente e pediu uma fabada asturiana.
Maruja tinha dezoito anos e era linda como um cravo. João encontrara-a na Candeia, um conhecido cabaret do Porto. Ali cantava e dançava, sempre acompanhada pela mãe.
João prendeu-se de tal modo nos seus olhos negros e na luz do seu sorriso que, durante uma semana, ali passou as noites até de madrugada. Terminada a semana do contrato, mãe e filha passaram para o Casino de Espinho, onde iriam trabalhar mais uns dias. João contou e recontou os trocos, pediu algum emprestado, marimbou-se para a Faculdade e não falhou uma noite em Espinho.
Até que a Maruja lhe disse que ia embora para Madrid.
Não seria fácil João encontrá-la por lá, na grande cidade, mas que tentasse, se um dia se resolvesse a lá ir. Não tinha morada certa, mas vivia a maior parte do tempo no Monasterio de Las Descalzas e, por vezes, cantava e dançava no Passapoga.
Desde Portugal, João viajou na mesma cabine do comboio, com uma prostituta. Em Ciudad Rodrigo, já alta madrugada, um padre fez-lhes companhia. Quem eram, quem não eram, João era estudante de medicina no Porto e ia a Madrid à procura do amor, o padre ia a Salamanca colaborar nas exéquias de um velho professor, e a prostituta, de Coimbra, ia cumprir mais uma temporada numa casa de alterne junto à Plaza Mayor.
Depois de Salamanca João adormeceu e acordou em Madrid ao romper de uma manhã seca e fria. Ficou um tanto atemorizado com o silêncio das ruas e com a presença de muitos soldados nos telhados das casas, armados de metralhadora. O cheiro a Guerra Civil ainda não se desvanecera por completo. As camionetas a gasogénio subiam ronceiramente a Gran Via e um ou outro transeunte perguntava se tinha café para vender.
João martelou com força por duas ou três vezes o grande batente de ferro do enorme portão do Monasterio, e quando a esperança já parecia esfumar-se, um pequeno postigo lateral encastoado no portão emoldurou uma cara do outro mundo. Uma freira muito feia, com ar de demónio, boca torcida e olhos fulminantes.
¿Qué quiere Usted?
Quiero hablar con Maruja, quedé con ella.
Maruja no está ni podría estar. Maruja, ¿qué Maruja, Señor?
La bailarina.
A portinhola bateu com estrondo, quase lhe esmurrando o nariz. João ainda carregou por mais duas vezes no batente, com toda a fúria e revolta. Mas um silêncio pesado cobriu como uma avalanche negra toda a fachada do enorme edifício.
A fabada não parecia estar má, mas, apesar de nada ter comido desde a véspera, a tristeza dificilmente permitia que ela passasse da boca para baixo.
Esperou pelo cair da noite, gelado por dentro e por fora. Passou junto ao Passapoga e perguntou ao porteiro a que horas actuava a Maruja.
Maruja, ¿qué Maruja, Señor?
Ainda hoje, ao fim de tantos anos, quando João passa pelo Monasterio, levanta os olhos para a grande fachada e vê Maruja vestida de branco a voar de janela em janela.