FALEMOS DE ECONOMIA, FALEMOS ENTÃO DE POLÍTICA – INTRODUÇÃO AO TEXTO DA IFRC

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Introdução ao texto da IFRC (Federação Internacional das associações da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho)

Júlio Marques Mota

PARTE III
(CONTINUAÇÃO)

É tempo de mudança. Seguramente, iremos assistir a mudanças, temos a certeza disso, só não temos a certeza de quando. A dimensão do desastre é tal que só podemos esperar e desejar que seja em breve.

A pensar assim, meio adormecido, a pensar em tudo isto ouço finalmente tocar à campainha. Vou abrir. Era o meu amigo. Sentamo-nos. Convido-o a um café que aceita. Olho-o bem, de lado e sinto (…) sinceramente sinto que nada vai bem, a sua cara está deformada, um ar até febril enche a minha sala, a partir da cara dele.

Diz-me que quer ir embora, quer ir para fora mas (…) não sabe línguas, ao menos que soubesse francês. Queria saber como é que eu aprendi francês como autodidacta, já lá vão cerca de 45 anos! Diz-me que no centro de Emprego e Formação profissional há cursos de alemão, francês, inglês, mas o curso de francês só abre para Março e ele tem pressa, pressa de se ir embora, precisa de saber se conheço algum programa gratuito com que possa aprender a escrever e falar francês.

E no meio de toda esta ansiedade diz-me: sabe, professor Júlio, estou disposto a tudo. Levanta-se da cadeira, virado para mim inclina-se levemente para a frente, com os braços para a frente e depois virados para traz como quem tem uma criança nos braços, e, de punhos apertados, diz-me com uma força anímica brutal: estou disposto a fazer de tudo, professor Júlio. Fazer de tudo, preciso de trabalhar, preciso de sobreviver para já. Emigrar, trabalhar, aguentar, tenho filhos a alimentar. A trilogia dos tempos modernos, em vez de Liberdade, Igualdade, Fraternidade. A trilogia da Revolução contra a trilogia da submissão, é isso. Hoje está sem nada. A crise tirou-lhe quase tudo o que tinha, a roupa de fora, a multinacional levou-lhe o resto, levou-lhe a roupa de dentro. Nem sequer casa já tem, nem casa nem carro, e exsactamente como muita gente da classe média em Milão, centro financeiro por excelência da Itália, uma das economias mais importantes da zona euro!

Mas aquele fazer de tudo fez-me lembrar uma outra história que se passou comigo, fez-me lembrar Faro, a Rua Teresa Ramalho Ortigão, numa tarde de sábado, fez-me lembrar a minha generala, uma mulher russa imigrante em Portugal e que me disse ela?

Passo a citar a crónica escrita de então:

Viro-me para a imigrante russa e pergunto de modo bem delicado: diga-me, profissionalmente como é que tem sido a sua vida?

A forma como a pergunta foi formulada, o termo profissionalmente, bem enquadrado da na pergunta, deu-lhe confiança. É ela que agora me olha com ternura, digamos com confiança e com a sua resposta deixou-me pregado ao chão. Profissionalmente, fiz de tudo. Estamos num país estrangeiro. Ninguém nos conhece, ninguém nos vê, ninguém que seja das nossas gentes para me ver, para me criticar. Sublinha com mudança de tom a palavra, ninguém!

Fiz de tudo. Muitas escadas terão sido lavadas por esta emigrante, muitas escadas terão sido subidas e descidas, com todo o respeito pelas mulheres de limpeza, muitos horários de trabalho terão sido sistematicamente violados.

Fiz de tudo. Muitas estufas de morangos foram apanhadas, muitas caixas foram carregadas.

Fiz de tudo. Muitos campos de feijão-verde foram apanhados, muitas caixas de tomates por ela apanhados foram encaixotados. Muitas noites de sono de má qualidade, muitas dormidas pelos campos abertos certamente, muitas dormidas, na melhor das hipóteses, em quartos de 8 a 10 pessoas, por quarto com a cama sempre quente já como na China, perto da rotunda do Hospital de Faro passadas ou algures e caladas pelo silêncio de toda a gente, inclusive pela ignorância sistematicamente assumida pelas autoridades oficiais responsáveis pelas condições de trabalho de toda a gente.

Fiz de tudo. Algumas noites também por esses mesmos campos ao luar e enrolada poderá ter andado com quem não sabe quem, no quadro de uma torre de Babel de ucranianos, russos, moldavos, e pasme-se, de chineses e chinesas também, com horários de 12 horas a 16 horas talvez. Sobre esta gente, não quer o governo nada saber, sobre esta gente não se pronuncia o Serviço de Fronteiras, sobre esta gente quer o Ministério do Trabalho tudo ignorar, até porque do ponto de vista neoliberal é gente completamente descartável. Como assinalava o antigo ministro Oliveira Baptista, como é que dormem as romenas, por exemplo, da apanha do morango, ninguém sabe, ninguém quer saber. Gente descartável, a lembrar os textos de Kevin Bales, gente a que a Troika, a Comissão Europeia, o BCE, o FMI, os Passos Coelho andam ainda ao assalto, como verdadeiros ladrões, mas não na calada da noite, a lembrar Zé Afonso, mas sim à luz do dia, munidos de um poder que lhe dás o voto que lhes confiámos, a lembrar Marx também, ele que está cada vez mais actual.

Fiz de tudo, é a sua expressão, e nas condições em que fez de tudo, meu Deus, muita gente não fez nada, porque simplesmente neste tipo de trabalho os trabalhadores nacionais com direitos são excluídos pelos patrões e acusados depois pelo CDS e outros de que os portugueses não querem é trabalhar, porque o subsídio de desemprego é elevado. Deslocalização no local, diriam os economistas: já que os terrenos não podem ir ter com os trabalhadores onde eles estão, então que venham os trabalhadores para onde estão os terrenos mas com os níveis salariais dos seus países de origem ou muito pouco mais. Adicionalmente, estes podem aceitar outras condições de trabalho bem mais gravosas, menos custosas para os patrões, até porque ninguém conhecido os vê.

 Fiz de tudo. E com isso foi assim a sua luta pela vida para mais além e mais alguém, a luta pelos seus a tudo exigia. Pela sobrevivência, foi isso, é isso.

E terminava aqui essa crónica. E eis que agora, dois anos depois, alguém me vem dizer que está disposto a fazer de tudo, não aqui, lá fora, onde ninguém está lá para o ver, para o criticar. A história repete-se, terá dito Hegel, terá repetido Marx, mas como drama e depois como tragédia, penso eu.

(continua)

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Para ler a Parte II desta introdução de Júlio Marques Mota ao trabalho que elaborou sobre o relatório da IFRC, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

FALEMOS DE ECONOMIA, FALEMOS ENTÃO DE POLÍTICA – INTRODUÇÃO AO TEXTO DA IFRC

Para ler o trabalho propriamente dito, clique na etiqueta ifrc, e aparecerão no ecrã as 19 partes em que foi publicado, mais esta introdução, que por sua vez sairá em quatro partes.

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