UMA CARTA DO PORTO – Por José Magalhães (30)

CARTA DO PORTO

 OS TONS, OS SONS E OS CHEIROS DA CIDADE

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Se eu quisesse traduzir em palavras, qual o cheiro, o tom e o som da Primavera, teria muita dificuldade. A Primavera tem tantos cheiros quantos os cantos da minha cidade, tantas cores quantas as que a minha cidade tem e tantos sons quantos os que ouço diariamente à minha volta, nas ruas e vielas, nas praias e nos jardins.
Na minha cidade, há tons, e sons, e cheiros, que nos levam a todo o mundo e nos devolvem, mais ricos, à terra que nos espera e sempre nos abraça.
Há cais, de onde, um dia, partimos em buscas de outras gentes e outros lugares, na busca de outros tons e outros aromas, onde hoje nos chegam, num retorno quase inesperado, alguns dos que partiram e também outras gentes, cheias de outras riquezas que o mundo tem, com outros tons e outros sons, e outros cheiros, que, porque os recebemos de braços abertos, se misturam com os que temos, melhorando a nossa qualidade, sem desvirtuar a nossa personalidade.
Nesta minha cidade, Invicta, os outros não nos são indiferentes. Temos disponibilidade, temos vontade de servir os outros e de os ver felizes. Todo o visitante é um amigo e, cheia de “glamour” a cidade e as suas gentes invadem-lhes a alma com a voz da nossa tradição, ajudadas pelo rio de ouro que a cada curva se insinua e não permite o afastamento das margens. Aqui, não há uma margem sul, só margens e pessoas de um mesmo rio. A cor, o cheiro e o som do Douro, une-nos e pacifica-nos a alma.
Hoje, no Porto, tudo vemos com cores renovadas, com cheiros refrescantes, com sons de esperança. Vemos desta forma, porque desde há alguns anos que a esperança tomou conta de nós. Fomos descobertos pelo mundo e redescobertos pelos nossos pares, apesar, e ao arrepio de vontades alheias. Vontades essas que hoje se nos juntaram, descobrindo recantos escondidos e paixões assolapadas, reencontrando as pessoas e perdendo o receio às palavras desavergonhadas, numa dança de sedução cheia de piruetas e malabarismos, como se nunca nos tivessem combatido.
Quando percorro as ruas do Porto, há cheiros que ainda julgo sentir, como se nunca tivessem deixado de lá estar.
Os meus pés conduzem-me às subidas que me levam para mais perto do céu da cidade, como a rampa da Escola Normal que me encaminha para o Monte Tadeu (o ponto mais alto da cidade) e para o restaurante panorâmico da Cooperativa dos Pedreiros (Portucale – provavelmente um dos melhores restaurantes da Cidade Invicta), de onde se vê toda a cidade e além dela, ou a rua do Farol que me encaminha para o Monte da Luz, onde, do topo do seu Farol se avista toda a Foz, desde o rio até Matosinhos.

Eléctrico do Porto
Eléctrico do Porto

O Eléctrico (que já foi um ícone da cidade e por toda ela circulava, ronceiro, é hoje somente turístico e quase inexistente) leva-me da Batalha até ao Passeio Alegre, subindo e descendo os montes da cidade, acabando o seu trajecto junto ao rio, onde um dia fora mar. Nos tempos mais antigos, o Carro Eléctrico seguia até ao Castelo do Queijo, e continuava. No caminho, pelo meio das árvores e dos arbustos, e da Pérgola, e do Molhe e das pessoas, podíamos ver os barcos que se tocam lá longe, no infinito, e todos os dias chegam ao Douro e a Leixões trazendo pescado, e que quando partem em direcção ao fim dos dias, deixam o som das palavras carinhosas e o cheiro da saudade.
Cada canto da cidade com os seus tons, os seus sons, e os seus cheiros característicos.

A castanha assada na Rua de Santa Catarina
A castanha assada na Rua de Santa Catarina

Se subo a rua da Picaria, sinto o cheiro da cera para madeira e o de serrim; se passo em Entreparedes é o cheiro das bolachas que me assalta; se ando na avenida Brasil é o cheiro da maresia na maré baixa, das algas, do sal, do sol e do mar; se vou à rua da Madeira sinto o cheiro dos restaurantes, das tripas ou do cozido acabados de fazer; na Ribeira o cheiro é único e indescritível, com o rio e os meninos a saltar da ponte, as esplanadas e as roupas a secar nas janelas; se passo nas Fontaínhas assalta-me o cheiro a sardinha assada da época do São João; na zona histórica, o cheiro a sabão e das roupas lavadas e penduradas das varandas; se voltando ao centro da cidade passo em Santa Catarina vem-me às narinas o cheiro da castanha assada do Outono; por todo o lado o cheiro da terra acabada de molhar ou da relva acabada de cortar; no Bolhão o seu cheiro tão particular, misturando o das flores com o das batatas e das cebolas e do peixe a ser amanhado; nos cafés, manhãzinha muito cedo, à volta do Bom Sucesso e do Bolhão, o cheiro às meias de leite, aos galões e às torradas de pão de forma. E tantos outros odores, cada um no seu sítio, como se fossem donos daquele lugar, marcando fortemente as minhas memórias e fazendo-me reviver tempos que um dia vivenciei.
E, temos as gaivotas, novas imigrantes a viver na urbe, e as pombas, antigas residentes dos nossos beirais, que têm tomado conta de espaços de lazer que nos deveriam pertencer, prejudicando um pouco a crescente qualidade de vida dos Portuenses, mas dando aos lugares movimento, cor e aspecto, peculiares.

 

4 Comments

  1. Uma crónica muito interessante sobre os cheiros da cidade que só quem a ama sente…
    Lindas imagens a acompanhar. É sempre um prazer a leitura das suas crónicas.Parabéns!
    Eudora

  2. Respira-se Porto neste seu belo abraço emocional, meu caro José! Como sempre uma narrativa muito rica de vida! Achei brilhante “Aqui, não há uma margem sul, só margens e pessoas de um mesmo rio. A cor, o cheiro e o som do Douro, une-nos e pacifica-nos a alma.” , excelente tradução!

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