André Brun, notável escritor e humorista, esteve presente na Primeira Grande Guerra Mundial, tendo combatido na primeira linha de um modo que lhe valeu chegar a major e receber a Cruz de Guerra. Em A Malta das Trincheiras, incluiu crónicas sobre o que foi a vida e os sofrimentos dos portugueses do CEP que tiveram de suportar o horror da guerra travada entre as grandes potências da altura. Passando hoje 96 anos sobre a data da batalha de La Lys, que tantas vítimas causou entre os nossos compatriotas,vale a pena ler esta parte da introdução que fez para o livro.
Sobreveio o mês de Março, cujos dias cruéis não poderá olvidar a minha brigada encurralada sem justificação táctica na situação mais dolorosa de quantas até então tínhamos conhecido. Seguiram-se os primeiros dias de Abril, que fizeram sangrar dolorosamente o meu coração de soldado, e chegou esse dia nove, cuja história documentada um dia há de surgir, para que às portas da História, por onde certos querem entrar vestidos de audácia e descalços de escrúpulos, as centenas de mortos, que descansam amortalhados de rancor em ignotos pontos da Flandres, e os milhares de prisioneiros, cuja tristeza a Alemanha ainda retém em vagos campos da Germânia, se juntem e lhes vedem a passagem, bradando: “Aqui não entras”.
Então, eu que escrevera para um álbum meia dúzia de linhas, que podiam parecer dum humorismo fácil, vi quanto as múltiplas angústias do meu espírito, acumuladas nos primeiros oito meses de trincheiras, me tinham levado a ser profeta em terra alheia.
A guerra, a verdadeira guerra, aquela de que poucos tinham a noção exacta, “viera causar muito incómodo”. Mas é cedo para que tudo o que se passou então e tudo o que se lhe seguiu seja dado a público. Continuamos em guerra, os boches ainda estão ali em frente, e como dizem os clássicos avisos franceses: Les oreilles ennemies nous écoutent. Não é este um livro “ad probandum”. Esse virá a seu tempo. Devo-o aos meus soldados e a mim próprio. O presente volume “ad narrandum” é apenas uma documentação pitoresca, um relato do que eu vi com os que a terra há de comer, olhos da minha cara e mortos da minha pátria.
Talvez porque as tendências naturais do meu espírito me não concedam facilmente aquela faculdade que um personagem de Eça se atribuía de “saborear o grandioso”; talvez porque as circunstâncias e os homens mais do que elas não habilitaram o Corpo Expedicionário Português a escrever, por enquanto, aquele canto de epopeia que os patriotas esperavam e os retóricos prometiam, este livro é um livro de crónicas, direi mesmo um livro de anedotas.
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Longe de mim a ideia de amesquinhar o esforço dos primeiros combatentes em França; mas, durante muito tempo, a permanência numa guerra de trincheiras, em sectores relativamente calmos de que certa nervosidade destrambelhada vinda do alto pretendia fazer sem método sectores de verdadeiro combate, não permitiu que se pusessem à prova senão a capacidade de adaptação que distingue a nossa raça, sempre através dos séculos a abandonada de alguém, e aquelas qualidades passivas de resignação que a História reconhece ao soldado português. Dos dias terríveis de Abril até aos do alvorecer de Agosto, em que me separei da frente portuguesa, só o esforço individual de certos manteve a continuidade do esforço anterior, reduzida ainda ao trabalho obscuro da malta das trincheiras.
Acompanhei de perto essa arraia-miúda para a não amar e não a estimar. Foi com ela que ganhei os meus primeiros galões bem ganhos. Sei o que ela vale, o que ela fez e o que ela podia ter feito no instante próprio, se os chefes combatentes, verificando que ao começo as suas funções tácticas eram, pela natureza especial da guerra que se estava fazendo, reduzidas à versão e reprodução de ordens anteriores, e portanto redutíveis a proporções para as quais chegava e sobejava a mentalidade de um sargento-ajudante munido de um xapirógrafo, tivessem melhor atentado na importância das suas funções humanas e cuidado com maior carinho e mais inteligente desvelo do moral de tropas já de si ignorantes e propensas à estagnação de espírito e fatalismo atávico e, para mais, atiradas para longe da terra onde tinham as razões lógicas do seu ser.
Sei bem e vi – com os que a terra há de comer – que, entregues a si próprias, as unidades se diferençavam pelas cabeças e corações que as dirigiam. Vi um batalhão triste junto de um batalhão alegre, porque dos comandantes, um era alegre e outro não sabia senão ser triste. Vi uma companhia ralaça junto de uma companhia activa, porque a um capitão sobravam os nervos que ao vizinho faleciam. Se tivesse havido a aliás rudimentar percepção psicológica do trabalho mais necessário e urgente, se para a execução desse trabalho se tivesse tido a autoridade moral que impusesse todas as sanções mesmo as mais violentas, uma hábil selecção e uma inteligente procura de equilíbrios teriam dado ao Corpo Expedicionário a unidade de sentir e de acção que, além de o tornar uma ferramenta afiada para o momento necessário, lhe teria atribuído uma fisionomia moral e dado até um aspecto físico característico que ficasse. Desse aspecto físico e dessa fisionomia moral talvez um génio representativo da raça soubesse mais tarde fazer um poema.
Mas de tudo o que se fez – pelo menos até agora – dessa indecisa passagem da nossa nacionalidade pela grande guerra, não podem, a meu ver, senão sair relatos de episódios, quadros de impressões. As mais belas cousas que lá se praticaram cabem numa folha de papel almaço. Descritas por um grande talento, tão individuais como foram, darão uma bela página de selecta. A esta convicção cheguei depois de reflectir muito sobre o caso, de ouvir aqueles que julgo susceptíveis de terem uma noção inteligente da nossa acção, e decidi-me então a publicar este livro.
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NOTA – O TEXTO ACIMA É DA EDIÇÃO LIVRARIA CIVILIZAÇÃO EDITORA, COLECÇÃO CEM ANOS DE LITERATURA PORTUGUESA, DE 1983, SALVO ERRO. APRESENTAMOS OS NOSSOS CUMPRIMENTOS À EDITORA, E A TODOS QUE TRABALHARAM NESTA EDIÇÃO. DESTAQUE PARA O NOTÁVEL PREFÁCIO DE ANTÓNIO LOPES RIBEIRO.
André Brun dedicou este livro aos seus companheiros das trincheiras, nestes termos: “Aos meus companheiros de trincheira, humildes ou notáveis, esquecidos ou louvados, aqueles que, a menos de mil e quinhentas jardas do inimigo, souberam ser soldados e portugueses.”