Selecção e tradução de Júlio Marques Mota
10. Cinco propostas para sair da crise ucraniana
PARTE II
Hubert Védrine, em Rue89
Pierre Haski
8 de Março de 2014
(continuação)
…
Rue 89: Putin está agora com uma postura mais agressiva.
Na verdade. No caso ucraniano, é mais visceral. Toda a gente conhece a história e o caso particular da Crimeia, o que não justifica de forma alguma os métodos de intimidação utilizados. Mas para a grande maioria dos russos e, provavelmente, para a maioria dos habitantes da Crimeia esta é russa.
A Crimeia nunca deveria ser colocada na Ucrânia senão pelos caprichos de Khrushchev [em 1954, nota do Editor]. Ou então deveria ter-se corrigido isso no momento da independência [em 1991, nota do Editor]. Porque na época da URSS tratava-se de uma deslocação interna sem grandes consequências, como em França Midi-Pyrénées e Languedoc-Roussillon.
Putin joga pois sobre veludo e isto é ainda mais claro do que no caso por exemplo da Ossécia do Sul [província da Geórgia ocupado pela Rússia desde a guerra de 2008, nota do Editor].
Rue 89: Ele joga sobre o veludo internamente, mas não ao nível da legalidade internacional?
Com efeito, se isso vai até à secessão e à ligação à Rússia.
Se nos próximos dias, as coisas forem tratadas na direcção da inversão da escalada a situação pode cair sobre os seus pés.
Mas se a situação vai até a aceitar a anexação da Crimeia com a Rússia, enquistar-se-á, em seguida, numa longa crise, com retaliação quase obrigatória dada a posição em que o Ocidente é colocado, mas que conduz necessariamente a contra-retaliações etc. Não sei se não pagaremos aí a factura e a Rússia igualmente. Mas isto ainda talvez não seja inevitável.
Rue 89: Como sair da crise, na sua opinião ?
Isto consistiria em dizer:
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não se toca na integridade territorial da Ucrânia, mas esta torna-se um Estado muito federal em que a Crimeia goze de autonomia quase completa e os territórios do leste de uma autonomia significativa.
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nesta Federação, são dadas garantias às minorias – étnicas, culturais, linguísticas etc.- quer se trate de russos quer de tártaros da Crimeia. Os próximos dirigentes de Kiev vão ser os seus garantes e os candidatos para a eleição presidencial devem empenhar-se nisso [25 de maio, nota do Editor];
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os russos declarem que não há nenhuma intenção de anexar um novo território para a Rússia, mas que em vez disso querem ter fácil relações com esta região. Isso pressupõe que o Acordo de Associação europeu que tinha sido proposto seja concebido, talvez modificado mesmo para tornar compatíveis as trocas de Ucrânia ou de uma parte da Ucrânia com outro conjunto económico e aduaneiro. Assumam-se riscos porque é improvável que isso seja capaz de competir com a força de atracção do sistema europeu;
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em Kiev, significaria que se retomaria o acordo patrocinado pelos três europeus ministros dos Negócios Estrangeiros (que previa um governo de unidade nacional, nota do Editor);
Finlandização
A ‘Finlandização’ refere-se à situação da Finlândia na época da guerra fria, que respeitava uma neutralidade benevolente para com o seu vizinho soviético, mantendo a sua liberdade de organização interna. Isto era utilizado de forma depreciativa por aqueles que a consideravam como uma submissão e tornou-se um termo genérico em situações semelhantes. No entanto, essa neutralidade ajudou a Finlândia a sobreviver num ambiente complexo e aderir à União Europeia, uma vez a guerra fria acabada. PH.
Esta Ucrânia federalizada, neutralizada, é de alguma forma “finlandizada” no melhor sentido do termo. Os ocidentais, como os russos, comprometem-se a nada fazer durante os próximos cinco a dez anos (o que seria negociado) para obrigar a Ucrânia a mudar para um dos campos. O que, na minha opinião, deveria ter sido feito há muito tempo.
Esta é a versão possível na minha opinião. Constato que, nos Estados Unidos, Henry Kissinger e Nicole Bzrezinski [dois antigos conselheiros para a segurança dos EUA, ndlr] utilizaram a mesma fórmula de “finlandização”. Acrescento a esta reflexão a ideia de segurança para as minorias.
Como fazê-lo, a partir da situação actual, eu não sei nada! Esta perspectiva afasta-se cada vez mais se as medidas tomadas de parte a parte alimentarem a escalada.
Pode-se então verificar que nos encontremos numa situação inextricável de bloqueio no qual haverá uma paralisia mais ou menos longa de toda a relação Europa-Rússia, EUA- Rússia.
Fora de questão esperar um golpe de Putin sobre a Síria ou sobre o Irão…
Rue 89. Isso equivaleria a uma guerra fria sem o risco da aniquilação nuclear?
Eu não utilizaria o termo ‘guerra fria’, porque isso tem agora menos chances do que no momento de se transformar em guerra quente. O desafios e os dispositivos já não são os mesmos.
Mas há um risco de uma espécie de enquistamento, de paralisia duradoura ou seja que não é nem do interesse europeu nem do interesse dos russos, nem obviamente dos ucranianos. É necessário evitar esse cenário.
Este cenário só pode ser evitado se e só se e houver um comportamento responsável dos europeus, dos americanos, de Putin, dos novos dirigentes ucranianos, do povo da Crimeia, etc.
A administração de Obama é amplamente criticada nos Estados Unidos pela sua política externa. O que pensa sobre isso?
Quando eu falava dos que pensam em ajustes de contas estava a falar, pensava no facto de que para alguns dirigentes esta afirmação não fica necessariamente desajustada relativamente a Putin.
E pessoalmente penso primeiro em Obama, que conduz uma política externa sedutora e magnífica quando escutamos ou lemos os seus discursos; desconcertante, errática, quando a acompanhamos no dia a dia. O seu grau de envolvimento parece ser fraco (mesmo se parece finalmente estar a apoiar os esforços de John Kerry no Médio Oriente).
Tomemos o exemplo do “pivot” da sua política externa relativamente à Ásia: parece lógico que ele não mantenha na Europa o sistema herdado da guerra fria. Mas não teve nenhum efeito positivo: os chineses dizem ” queremos lá saber disso, mete-nos medo, assusta-nos” e aumentam o seu orçamento militar. Nenhum efeito dissuasor.
Resta o processo em torno do nuclear iraniano: penso que ele quer chegar a um acordo tal como Rohani [Presidente iraniano, nota do Editor], mas há forças muito determinadas em fazer descarrilar o processo: no Irão, nos Estados Unidos, Israel, Arábia Saudita, Abu Dhabi… É muito!
Neste contexto, para Obama, pode ser útil manter-se muito firme em relação ao Putin: está livre de risco.
(continua)
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Para ler a Parte I desta entrevista de Rue89 a Hubert Védrine, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a :
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