SOBRE O TEXTO DE RICARDO A MARX, DE MARX A RICARDO, SOBRE O LIVRO DE PIKETTY, SOBRE A DINÂMICA DAS DESIGUALDADES: ALGUMAS REFLEXÕES – por JÚLIO MARQUES MOTA

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Sobre o texto de Ricardo a Marxde Marx a Ricardo, sobre o livro de Piketty, sobre a dinâmica das desigualdades: algumas reflexões

21 de Maio de 2014

Parte IV

(CONTINUAÇÃO)

Na mesma lógica, parece-nos, pode ser entendida a posição de Pierre Concialdi numa conferência recentemente proferida em Coimbra, quando afirma:

Estas pistas [a saída da crise na Europa] só podem ser viáveis se e só elas se inscreverem num projecto mais amplo onde a convergência das economias nacionais não é deixada ao sabor “de uma livre-troca” generalizada em que as forças do mercado seriam verdadeiramente o único vector determinante. Por outras palavras, tem de se supor outras formas de regulação destas mesmas trocas. O debate entre comércio livre e proteccionismo não tem dado, não dá, resposta a esta questão, porque permanece centrado nos meios. Ora, é articulando as regras das trocas às finalidades negociadas que se pode avançar para uma convergência económica e social entre as Nações e ao mesmo tempo organizar, em cada uma delas, formas de redistribuição (do emprego e dos rendimentos) que não deixem nas margens de uma mundialização selvagem proporções cada vez maiores de trabalhadores e de populações.

Organizar, criar formas de regulação das trocas, onde as economias não ficam ao sabor de uma livre troca generalizada, eis a sugestão de Concialdi.

Digam-se as coisas pelos seus nomes. A defesa de um sistema de mercado livre, como o fazem os neoclássicos, mostra a demagogia, mais uma vez, dos nossos governantes quanto ao conceito de produtividade. O que se quis mostrar é que a decisão das escolhas técnicas depende de muitos factores entre os quais a repartição do rendimento e logicamente das decisões tomadas quanto aos investimentos, mas disso não podem ser sacadas responsabilidades a quem não é responsável por essas decisões, ou seja, não tem nenhum sentido estar a culpar os trabalhadores por essa suposta baixa produtividade. No campo que aqui nos interessa, ter-se um feriado a mais ou a menos, um, dois, três, não tem nada a ver com produtividade, porque essa mede-se por hora trabalhada, por dia trabalhado, a técnica dada, enquanto os lucros, esses, medem-se por salário pago por hora de trabalho efectuada e variam inversamente com os salários. Assim, podemos garantir que a extorsão dos feriados aos trabalhadores pode aumentar a massa de lucros possíveis, mas nunca a produtividade. Esta é independente da repartição de rendimento e o que se está a fazer é alterar compulsivamente a repartição, a técnica dada, logo a produtividade constante. A demagogia também é aquela que os académicos aceitarem que seja feita.

O que se está a criar é ao nível da produção condições de repartição que afectam todo o sistema quer a nível nacional quer a nível internacional, reconfigurando quer as técnicas escolhidas quer a produção à escala planetária, inclusive. Não será portanto a redistribuição do excedente, uma decisão ex-post à actuação das forças brutas do mercado selvagem que será a saída da crise maior em que o sistema capitalista pode cair. Se a redistribuição de rendimento pode e deve ser um problema sério a tratar politicamente, mais sérios ainda são os problemas da repartição-distribuição ex-ante à produção, que são o centro vital a resolver, se quisermos criar um mundo de estabilidade e crescimento. Relembro aqui a posição de James Galbraith sobre o mesmo tema e a propósito do livro de Piketty:

Se o centro do problema é uma taxa de rentabilidade em activos privados que é demasiado alta, a melhor solução é então prosseguir políticas que provoquem a descida dessa taxa. Como? Aumentando o salário mínimo! Isso baixa a taxa de rentabilidade sobre o capital que assenta na utilização de salários baixos. Apoiem-se os sindicatos! Taxem-se os lucros e as mais-valias pessoais, incluindo os dividendos! Baixe-se a taxa de juro exigida realmente para a actividade produtiva! Faça-se isto criando condições para que haja novos financiadores do sistema público que cooperem com este e que substituam os zombies mega-bancos de hoje.

Na sequência de Galbraith, podemos ir um pouco mais longe. Para além das propostas do autor, poder-se-ia, por exemplo, alterar a legislação laboral de modo a “desflexibilizar” o mercado de trabalho, regular o investimento directo estrangeiro e, em especial, as deslocalizações produtivas, separar a banca de investimento da banca comercial, de modo a evitar-se a financeirização da economia, reassumir como determinantes as políticas do lado da procura em detrimento da opção política de se privilegiar de forma absoluta as políticas de oferta, sendo central neste âmbito tornar a valorizar o salário como uma componente de rendimento e não apenas como um custo de produção.

Deste modo, de uma forma simples, mostra-se que as livres forças de mercado não conduzem obrigatoriamente à maximização do produto e muito menos a uma distribuição justa deste, o que poderia exigir a presença, mais uma vez, do Estado, como regulador efectivo. É claro! Mas isso muitos neoliberais o poderiam dizer, como o afirmou claramente Samuelson no final da sua vida quando afirmou que não tinha nada a ver com Milton Friedman. A verdade é que não basta isso, o Estado tem de readquirir capacidades de produção de bens e serviços públicos, tem de garantir o fornecimento de bens e serviços públicos não enquadrado na lógica mercantil, tem de funcionar como o senhor dos tempos, que em cada momento define, regula e ajusta os mercados em prol do resultado coletivo. Isto pressupõe necessariamente um outro projecto para a sociedade, um outro modelo económico.

Hipótese 2: As duas curvas intersectam-se duas vezes. Neste caso, para cada um dos dois níveis de salário associados respectivamente às duas intersecções está associado um respectivo valor de r (no gráfico simbolizado por π) comum, dois no total. Dois sistemas, a que chamamos respectivamente de sistema α e de sistema β, que diferem apenas na técnica para produzir o bem a. Graficamente temos:

 igualdade - IX

Para valores de w superiores a w1 e inferiores a w2 será sempre a técnica ou sistema α que será selecionado e quando salário percorre o intervalo w2<w<w1, será a técnica ou sistema β a ser seleccionado. Como sublinha Pasinetti:

1. No ponto de passagem dos sistema α e β os preços de todas as mercadorias são os mesmos, quer sejam produzidos pelo sistema α quer pelo β.

2. Quando a dada taxa de salário, um dos sistemas é o escolhido, é porque lhe corresponde uma taxa de lucro superior, o que significa que tem preços mais baixos que os que estão associados ao outro sistema e isto para todas as mercadorias.

3. Os resultados anteriores são independentes do bem tomado como unidade de medida.

4. A fronteira que relaciona salários e lucros é decrescente com o aumento da taxa de lucro.

Neste exemplo, uma técnica pode ser utilizada para dada repartição de rendimento, mas quando as situações na repartição mudam, esta técnica ou sistema pode desaparecer, mas com a mudança na repartição a continuar a evoluir no mesmo sentido este sistema entretanto desaparecido pode voltar a ser utilizado. Este fenómeno chama-se retorno das técnicas. É o que mostra o gráfico anterior, quando r percorre todo o intervalo possível. No entanto, com estes resultados são todas as relações da teoria neoclássica que são recusadas por ausência de consistência lógica, por não poderem ser suportadas em nenhuma matriz de produção que represente o capitalismo e onde haja mais do que um bem de capital, ou seja, onde haja heterogeneidade do capital, característica central de qualquer sistema produtivo. Assim, de acordo com o modelo neo-ricardiano exposto, podemos concluir que a formação dos preços em equilíbrio não depende da procura. Estes, sim, dependem das técnicas escolhidas e estas dependem das variáveis de distribuição em causa.

(continua)

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Para ler a Parte III deste trabalho de Júlio Marques Mota,  publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

SOBRE O TEXTO DE RICARDO A MARX, DE MARX A RICARDO, SOBRE O LIVRO DE PIKETTY, SOBRE A DINÂMICA DAS DESIGUALDADES: ALGUMAS REFLEXÕES – por JÚLIO MARQUES MOTA

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