CONTOS & CRÓNICAS – “Ao suspirar da tarde de uma segunda-feira de Fevereiro de 1901” – por António Sales

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Ao suspirar da tarde de uma segunda-feira de Fevereiro de 1901,  Cândido Vieira prepara um estranho objecto dotado de comprido e largo funil montado sobre uma caixa de madeira que transmite voz. Pela primeira vez os frequentadores do salão do Casino escutam o som mágico do gramofone numa audição que os «deixou maravilhados pela distinção com que reproduz os trechos que executa, ouvindo-se mesmo a grande distância do salão»[1] aquele que viria a ser um bom veículo de propaganda política, todavia ainda desconhecido pelos republicanos torrienses que nesse ano faziam o primeiro apelo público à votação nos seus ideais.[2]Dias depois a experiência seria repetida no Grémio Artístico que estava determinado em provocar o tempo integrando a colectividade no espírito do século XX. O futuro fará prova disso logo nos dois primeiros lustros do ano de novecentos. Ali se instala o cinema em sessões regulares e pelo seu palco passa música, dança, magia, circo, zarzuelas, operetas e até ópera. O Carnaval contrariava o pudor sob o mistério das máscaras e os santos populares soltavam a alegria das marchas e dos sol-e-dós. O público acorria à sala da Rua de Santiago para ver as companhias Teatro Ginásio e Dramática Portuguesa ou aplaudir Adelina Abranches, Caetano Pinto ou o actor Oliveira cuja companhia efectuou espectáculos duas vezes por semana durante cinco meses.

            O teatro libertava o espírito do tédio quotidiano num meio carente de tudo e cuja população concelhia estava representada por 79% de analfabetos. Uma barbaridade! – comentava o Emílio Costa enquanto escanhoava a face robusta do Mário Galrão. Fazer teatro nestas condições era já em si uma distinção lúdica, cultural, mesmo social. Alimentava romances confundidos entre o palco e a vida transformando-se, por vezes, em realidades do coração. As meninas bordavam nos ensaios, as mães faziam croché vigiando as filhas dos ataques dos namorados como dos lobos os pastores protegem os rebanhos. Sobre os hábitos conservadores perdurava a alegria da memória das plateias. Fantasia e vivacidade voavam à luz de um século que descobria novas ribaltas. O futuro não tinha equivalência no passado e permitia que o entusiasmo fosse um Ícaro capaz de ultrapassar o sol.

            Torres por um Óculo (1908), crítica irreverente a coisas e factos locais, é a primeira grande revista que sobe à cena num teatro da vila. Bem recebida pelo público a Folha de Torres Vedras [3] não lhe poupa, porém, desgraças numa crítica demolidora: «talvez se pudesse chamar com mais propriedade a revista vista por um óculo, verdadeiro fiasco de representação essa de domingo passado. O desempenho não podia ter sido pior. Além dos papéis não terem sido estudados o original foi todo alterado, estabelecendo uma confusão, uma verdadeira salsada que deixou os espectadores boquiabertos». Esta incompadecida análise originou azeda polémica com os autores que, no entanto, não conseguiram alterar a imagem da má estreia. Coisas de Torres (1910) teve melhor sorte. Escrita por José Augusto Cabral, director do grupo, constava de vinte e seis números musicais compostos pelo maestro Francisco Xavier de Melo, regente e uma das vozes do coro de S. Pedro ao qual permaneceu fiel apesar de convidado para reger o da Sé de Lisboa. Sentia-se bem em Torres, próximo da sua terra natal de Varatojo, ocupado com o canto, a música e o entusiasmo desta gente do Grémio a quem o Emílio Costa estimulava com alma e nervo após a fundação dos Bombeiros Voluntários no ano de 1903, aquele em que nascia Leonel Trindade. O amor de muitos sócios reflectia-se não apenas em trabalhos no palco como na sala que inaugurava as galerias. Mas «o querer de alguns, que o animatógrafo fosse aberto ao público em geral, e o querer de outros, que defendiam o acesso só a sócios», acabou por criar «desentendimentos por motivos de ordem social, o que fez que um grupo de associados resolvesse emancipar-se e fundar uma outra colectividade independente»[4] sob a preponderante acção de José Luís Carnide. A alta burguesia separava-se da pequena e da média, enquanto o Casino ia-se extinguindo vagarosamente nascia a Tuna Comercial Torreense em 1904. Nesta contenda doméstica o animatógrafo acabou por ganhar uma sala aberta ao público.

            A primeira representação teatral na sede da Tuna fixa-se em 3 de Novembro de 1907 num serão a favor do cofre da colectividade e no ano em que nasce Amilcar Guerreiro que viria a ser um dos grandes espíritos da colectividade. Olímpia dos Santos e Artur Gouveia assumem os principais papéis em O Ressuscitado e na opereta Vida Airada. Mas a surpresa é imaginar uma noite de Maio de 1910, quando a monarquia já dançava as derradeiras valsas, um baile que tinha por “acepipe” a representação da comédia em um acto Le Retour du Régiment de Tomás do Nascimento. Diz A Vinha de Torres Vedras que estava «escrita em termos de ser muito apreciada e apenas se ressente do idioma em que foi escrita e que não pode estar ao alcance de toda a gente. O entretém foi muito moral e educativo». Na verdade o francês era a língua da moda e qualquer snob que se prezasse sabia uma dúzia de palavras a fim de se dar ares entre as elegantes mas insuficiente para dominar uma representação teatral. Pese a circunstância a noite foi indiscutivelmente merveilleuse de tal modo que o autor saiu pela porta grande a caminho do Hotel Natividade onde teve lugar um opíparo banquete.

            Voava o sol pelo ano de 1908 quando a família real se interpôs na mira da morte que esperava D. Carlos e o príncipe Luís Filipe à entrada da Rua do Arsenal. O luto monárquico não impediu que o Carnaval de Torres se realizasse nesse ano com particular animação que alastrou a todas as colectividades, nomeadamente ao palco do Grémio Artístico onde se deu o baptismo de cena do Grupo Dramático Torreense (GDT) um dos raros grupos de independentes que a história do teatro amador de Torres Vedras regista.[5] Conjunto coeso de pessoas de um estrato cultural e social elevado, relacionando-se entre si (reuniões de amigos, famílias, cafés, associações cívicas) e perfilhando ideais republicanos e maçónicos. O GDT estreia-se no salão-teatro do Grémio em 15 de Junho de 1908 com o original em quatro actos Jocelyn, o Pescador de Baleias, drama de sólida estrutura dramática ensaiado pelo conhecido actor Coelho segundo um critério de exigência diferente do habitual. A representação exibiu maior domínio da arte cénica escapando ao artificialismo das situações, um rigor na mise en scène que o público apreciou logo na estreia e reforçou em 1913 com Vinte Mil Doláres, enorme sucesso em Lisboa que se tornou a coroa de glória do GDT. Estreiam pouco e realizam poucas récitas mas sempre com lotações esgotadas e objectivos de beneficência. O prestígio alcançado por estes amadores foi tão grande pelo que muitos anos após a sua desarticulação eram recordados com saudade. A elevada base cultural, relações fortes entre os membros, objectivos precisos e conhecimentos teatrais permitiram que superassem a mediania e se instalassem noutro patamar. Nesse período compreendido entre 1908 e 1910 a vila tinha então quatro grupos dramáticos activos (Grémio, Tuna, Casino e GDT) e o cinematógrafo com sessões regulares no Grémio. Um luxo para a época!

[1] Folha de Torres Vedras – 3 de Março de 1901.

[2] Venerando António Aspra de Matos – Republicanos em Torres Vedras – pag. 43, Edições Colibri/Câmara Municipal de Torres Vedras – 2003.

[3] 7 de Junho de 1908.

[4] CAC-Cem anos de vida – pág. 41, edição CAC 1993.

[5] O núcleo duro do GDT, que 28 anos depois mantinha-se praticamente intacto, foi constituído por Álvaro Simões, Joaquim da Encarnação, Vitor Cesário da Fonseca, José Manuel Fonseca, José Trigueiros, Paulino Pereira, E. Barbosa Marques, José Augusto Lopes Júnior e António Fivelim Costa. O segmento feminino teve mais alterações sendo de destacar Gabriela Vilela, Nini Fonseca, Maria da Graça Pereira, Maria Emília Estevinha Lopes.

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