BISCATES – Brasil, Iraque, Síria, Líbia – a mesma luta? – por Carlos de Matos Gomes

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A maioria dos analistas diz-nos que a origem da violência no Médio Oriente é uma e a do Brasil é outra. No primeiro caso, que tudo se deve a estratégias de domínio das fontes do petróleo, a intervenções externas a acentuar rivalidades, a manobras de desestabilização típicas do dividir e destruir para reinar sobre a fonte de riqueza. Em suma: geoestratégia, se conseguirmos admitir que Bush filho tinha miolos que dessem para tanto, que Sarkozy e Hollande têm alguma ideia do que anda a França a fazer na Líbia ou na Síria, que Blair ou Cameron são mais do que moços de recados dos Estados Unidos.

Quantoàs causas da violência no Brasil a explicação mais comum assenta nas tensões resultantes da desigualdade da distribuição da riqueza, na tomada de consciência das injustiças, da corrupção e da delapidação de recursos por uma população cada vez mais informada. Nada a ver um caso com outro. Garantem-nos. No Médio Oriente trava-se uma guerra de fundo religioso, dizem-nos, causada pelas partilhas do profeta Maomé, que deixou zangado o genro Ali, sobre um lençol de petróleo. No Brasil trata-se de descontentamento social do tipo Maio de 68, protagonizado por estudantes e trabalhadores, ou desempregados, que desafiam a ordem vigente antes das férias – neste casoas de inverno.

Proponho outra leitura, uma origem comum e civilizacional. Do que se trata em ambos os casos e nestas duas zonas do mundo é de uma reacção de quem foi transformado em lixo humano pelo modelo de desenvolvimento dominante desde a queda do Muro de Berlim, do fim da URSS e da entrada da China no mercado global. As lutas no Brasil, no Iraque, na Síria, na Líbia e podíamos acrescentar no Egitosão sintomas de um mal profundo, doproblema essencial de uma civilização de consumo,que não tem resposta para os seres humanos tornados supérfluos para a produção. De uma civilização capaz de produzir mais do que o que pode ser consumido e com pouca intervenção humana. Do fim da sociedade agrícola e industrial como a conhecemos desde o fim da Primeira Grande Guerra.

Trata-se de um sintoma de impasse, de um entupimento civilizacional. Está em causa algo que parece ser imanente nos seres humanos, pelo menos desde a Revolução Francesa: a noção de um destino e de um direito individual.A violenta turbulência no Médio Oriente e no Brasil resulta, a meu ver, da falta de resposta da sociedade à pergunta que ali fazem de milhões de seres: O que estou aqui a fazer?O que me está a acontecer?

Em breve outros, noutros locais, quererão saber…

 A evolução da espécie humana processou-se através da noção da actividade com um dado determinante. A linguagem traduziu esse sentido em verbos, isto é, acções para um sujeito: cultivar, criar, saber, descobrir, lançar (uma semente), crescer, colher, cortar, pregar, escavar, construir (um instrumento, uma ferramenta, um objecto útil). O cérebro da espécie humana contém impressa a noção da utilidade, é por ter essa marca que nos organizamos. Na sua ausência matamos e destruímos às cegas.

Ora, nas sociedades do Médio Oriente e do Brasil, mais nas primeiras do que na segunda, é certo, milhões de homens deixaram de ter utilidade: não há terra para cultivar, não hácasas a construir, instrumentos a fabricar. O petróleo dispensou os agricultores e não deixou que nascessem operários. A finança acumulou a riqueza num reduzidíssimo número de privilegiados. No Brasil (como na Venezuela) também é a troca de petróleo por trabalho e acumulação escandalosa de capital a causa da violência: quanto mais petróleo é descoberto e extraído, mais lixo humano é criado, menos homens e mulheres mantêm a velha utilidade na agricultura e perdem a possível utilidade nas novas actividades produtivas.Nesta sociedade nem os escravos são necessários.

É, na essência, a mesma situação de remoinho que que deu origem ao fim do império romano, aos tumultos das épocas de transição da revolução francesa, da revolução russa, do nazismo e do fascismo.É sempre possível apresentar no mercado o mesmo produto mais barato do que o produzido localmente, dispensando os trabalhadores locais e explorando mais violentamente outros grupos em regiões longínquas, transformando multidões cada vez mais numerosas e disseminadas em lixo em termos de produção e em alvo em termos de consumo. A revolta é a resposta à rutura entre os desempregados que só têm tempo e incentivos para consumir.

A reciclagem clássica dos excedentes humanos no mercado é conseguida com uma boa guerra que os incinere. O inibidor desta solução é a arma final: o nuclear. Mata e destrói demais e indiscriminadamente não só o desnecessário, mas o útil e o que pode vir a ser útil. Logo que uma arma de destruição massiva estiver disponível sem os inconvenientes do atual nuclear, aí teremos a guerra. Entretanto ninguém sabe o que fazer. Uma peste artificial também pode ser uma saída para o impasse e há quem avente a hipótese da guerra biológica já ter sido ensaiada.

Também é habitual a eliminação dos inúteis ter uma base ideológica. Mata-se e morre-se sempre em nome de grandes princípios. O melhor de todos é a promessa de um paraíso futuro, que uns inimigos impedem de alcançar. Neste ponto, de uma multidão de inúteis lutar pelo paraíso e contra um inimigo feito igualmente de inúteis,os inúteis no Médio Oriente estão dois ou três passos à frente dos inúteis brasileiros. No Médio Oriente,massas de vagueantes já se matam às carradas apenas por uns serem sunitas e outros xiitas, uma diferença que, como facilmente se percebe, torna incompatíveis os paraísos de uns e de outros. O que interessa a cada um dos grupos é que estão ocupados. Sentem-se úteis, mesmo que seja a abrir valas comuns e a enchê-las de seres dos quais não se distinguem, embora sejam incompatíveis. O petróleo – quase sempre o da Arábia Saudita – paga a sua nova utilidade como cadáveres de fiéis.

No Brasil, a violência contra a «Copa» étambém uma manifestação de desespero pela inutilidade: houve dinheiro para os estádios mas não para trabalho permanente, para dar uma utilidade às multidões que vivem nas grandes metrópoles. No Brasil só falta uma ideologia, por enquanto. Felizmente os bispos das igrejas evangélicas gostam de dinheiro, mulheres e boa vida e não pregam a revolução. Mas em situações idênticas a América Latina tem encontrado saídas violentas com uma forte componente ideológica: os movimentos populistas do peronismo, do regime de Getúlio Vargas, do guevarismo, do peruanismo já estiveram no terreno e podem ressuscitar sob outras formas. Um movimento de descamisados – agora de “desinternetatizados” – pode surgir a qualquer momento e trocar a religião da bola pela luta de rua, o Maracanã pelo terrorismo urbano.

Carlos de Matos Gomes (8 julho)

1 Comment

  1. ” a qualquer momento e trocar a religião da bola pela luta de rua, o Maracanã pelo terrorismo urbano.” Maria ​

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