DO BOTEQUIM AO CAFÉ (PEQUENA HISTÓRIA DOS GRANDES CAFÉS DE LISBOA – cont.)
A lista quase não tem fim. Havia de tudo no Café Marrare do Polimento. Até a excentricidade de quatro dos maiores símbolos da estroinice dessa época: conde de Farrobo, marquês de Nisa, visconde Sotto Maior e o diplomata-pugilista Santana de Vasconcelos. Mas também teve Alexandre Fernandes da Fonseca, mais conhecido por Afonseca, grande entusiasta e impulsionador do socorro mútuo em Portugal e fundador, em 1838, da Sociedade dos Artistas Lisbonenses, considerado o primeiro sindicato português. Fernandes da Fonseca foi até 1822 empregado do Marrare.
Durou até 1866 este que foi o maior feito do muito gordo e sempre meio adormecido italiano, que Paulo Midosi comparou fisicamente com o feitio de um garrafão monstro e levou Bocage a inclui-lo no número das “sete maravilhas do Chiado”. Chiado que nem todos viam pelo melhor pano. Ramalho Ortigão, por exemplo: “Desde tempos imemoriais que o Chiado tem sido sempre a pastagem predilecta da ociosidade lisbonense.(…) Quinze gerações consecutivas ai têm contraído os seus calos, os seus namoros, as suas febres renitentes e os seus reumatismos, bocejando, queimando boquilhas e dizendo larachas às senhoras que passam desacompanhadas de homens de bengala.(…) Para ai vai regularmente em cada dia retouçar-se na erva tenra de mexeriquice todo o gado social em folga de trabalho, desde os bezerros de ouro do grosso comércio enriquecido e aposentado, até aos simples borregos em dieta debilitante dos amanuensados das secretarias. (…) Aí se encontra sempre a parte mais característica, a mais curiosa e mais interessante da população de Lisboa; os seus jornalistas sem jornal, os seus pintores sem pincéis, os seus escritores sem pena, os seus cavaleiros sem avalos, os seus capitalistas sem capital e os seus padres sem missa. (…) É meia cidade que aí assim estaciona, enfastiada, à espera que a outra meia faça alguma coisa para a distrair, para a desaborrecer, para lhe sacudir o sono.” “O Chiado — prossegue o autor destas Farpas Esquecidas – não é somente uma rua pública, é uma instituição nacional, é a «caixa de depósitos» ao ar livre das desocupações e das desclassificações sociais num mundo em pasmaceira e em ruína.”
Um Café Chiado chegou a suceder ao Marrare em 1925, ocupando o famoso prédio até 1963. Dos outros cafés Marrares sabe-se que o do Cais de Sodré não passou de 1827. Que o da Rua da Figueira foi sempre visto pela Polícia como ponto de reunião de jacobinos. E que o chamado Marrare das Sete Portas no Arco do Bandeira foi palco de muitas cenas célebres da vida lisboeta do século XIX. Esteve quase permanentemente sob vigilância cerrada da polícia secreta, até se finar (ao que parece) em 1840, nas mãos de um tal Manuel Espanhol, com uma clientela que passou dos políticos e artistas aos amadores taurinos e outros amigos da festa.