Selecção e tradução por Júlio Marques Mota
Renzismo à prova na Europa
Lelio Demichelis, Il Manifesto, 4 de Julho de 2014
Sbilanciamo l’Europa. Renzi fala para as pessoas e faz-se compreender por elas com as suas frases curtas e oportunas. Os jornais e os programas de televisão multiplicam-se a repetir as suas mensagens. Os seus adversários repetem-nas, os cómicos fazem delas um sucesso. Mas agora é hora de questionar: e se passar das palavras aos actos?
Renzi e Merkel © Reuters
A Itália, o país de populistas e de populismos. Conheceu já muito bem três deles (e meio), nos últimos vinte anos, um recorde mundial. Populismo: é um conceito clássico da política e da sociologia mas que é contudo um processo cultural antes de se tornar também num processo político. E hoje é primeiramente económico antes de ser cultural e político, no sentido de que é precisamente a economia capitalista ao ser hoje um processo cultural antes de o ser como processo económico, produzindo — antes das mercadorias e do dinheiro — os mapas conceptuais, cognitivos, relacionais, afectivos que são necessários para a navegação no mercado; transformando o que era citadino no illuminismo em trabalhador, em mercadoria, capital humano – ou, em síntese, em simples homo oeconomicus.
Três populistas a corpo inteiro, Berlusconi, Grillo e Renzi. E, pelo meio, o populismo da Liga. Três pais políticos invocadas pelas pessoas porque os levam para toda a parte, porque lhes dizem o que devem fazer, porque este mesmo povo se acredita como incapaz (ou deixou de ter a vontade de) para assumir a responsabilidade de ser ele mesmo soberano de si-próprio.
O efeito cultural – isto — da antipolítica capitalista, que para ser soberano absoluto e culturalmente monopolista deve remover qualquer soberano concorrente.
Berlusconi: populista que prometia a modernização neoliberal do país. Na realidade, um populismo de mudar tudo para não mudar nada (sobretudo os seus interesses pessoais e empresariais).
Um populismo empresarial, com a figura do pai/líder substituído este pelo empresário que se fez a si próprio (ou quase), o que é perfeito como forma de exprimir o modelo cultural que todos deviam aprender: o hedonismo, o gozo imediato, a desresponsabilização egoísta e egotística .
Para legitimar – esta acção sobretudo cultural, pedagógica antes de ser também económica — a retórica neoliberal de se ser empresário à sua própria custa e da concorrência como único forma de vida.
Bossi e a Liga: o populismo moderado (não somente porque limitado somente a uma parte do território), é aparentemente o mais clássico dos populismos com o apelo à tradição, aos símbolos de terra e do sangue. A ser-se proprietário na nossa casa : a entender-se contudo não como soberanos sobre a nossa terra mas como proprietários no sentido antigo do capitalismo. Populismo de pequena empresa, capitalismo molecular como versão local do ordoliberalismo alemão e da sua pedagogia para impor o modelo empresarial à sociedade como um todo.
Grillo: populista contestatário, o teórico do net-populismo como forma perfeita da democracia. Grillo como o homem da mudança mas incapaz de mudar seja o que for (apenas sabe dizer não) e talvez populista ainda que de si-mesmo.
E Matteo Renzi. Um populismo de um novo tipo, mas como uma evolução dos precedentes casos. Ora, dado que ele tenta a relação direta com as pessoas e invoca-as como povo, como a sua legitimação totalizante. Até porque aspira a ser ao mesmo tempo o Partido de Renzi e o Partido da Nação. Um partido-não-partido que, contudo, se mantém agora também como transversal – e quase um não-lugar no sentido de Marc Augé: como um aeroporto, um supermercado, um lugar de consumo de política. Um populismo que invoca o povo contra o sistema de castas e os sindicatos, salvando por seu lado os oligarcas que o apoiam como um só homem; que os grandes media fiquem a seu lado e a permitirem-lhe o que nunca teriam permitido a Berlusconi; populismo assente na fé de si-mesmo e um credo político-teológico (nós contra eles, todos nós concordamos que não há dois e três e os múltiplos e os hereges, nós representamos o que é novo, os outros a representarem o que é antigo).
Um populismo que quer apontar para a ruptura precisamente do que é velho, mas que não quer colocar em ruptura nem corrige (anteriormente chamava-se autocrítica mas é o novo que avança e que atropela até a nossa memória) os muitos erros do passado: o sim à austeridade, o artigo 81 da Constituição sobre o equilíbrio de orçamento.
Um populismo concluído com a modernização da Itália – e cada populismo tem sido mesmo, historicamente, uma via para a modernização, fazendo aceitar ao povo, em nome do próprio povo estas transformações que de outro modo não teriam sido possíveis para transformar um país e o seu povo. Para isto, o de Renzi é um populismo tecnocrático: que produz esta modernização neoliberal que Berlusconi não teve nenhum sucesso em conseguir realizar e que Grillo tem dificuldade em poder realizar.
Um populismo no nome da tecnocracia, de que a tecnocracia gosta; um populismo que transforma (talvez desta vez seja verdade) o poder político no sentido pretendido pela tecnocracia: menos democracia (a reforma do Senado, as propostas da nova lei eleitoral); a redução dos direitos sociais e por conseguinte também dos direitos políticos (tornados um custo); mais capacidade de decisão ; menos participação e uma maior adaptação à realidade não modificável do mercado; menos cidadania activa e uma maior aceitação do que no real é inelutável. Porque as suas práticas políticas – para além das aparências e das discussões com Angela Merkel e de algumas intervenções em princípio correctas- estão todas situadas dentro da cultura da modernização pretendida pela ideologia neoliberal (a flexibilidade do trabalho, as privatizações, um novo modo de se ser empresário por si mesmos, redução posterior do que se entende por Estado Social, o crescimento em vez do desenvolvimento, concorrência em vez de solidariedade); e a flexibilidade sobre o Compact Fiscal (em vez da sua revogação, pela sua evidente irracionalidade e surrealismo económico), tão invocada, é um pouco de panos quentes em relação ao novo new deal quando é este, por seu lado, o programa que seria necessário (e urgente). Um populismo futurista, além disso: no nome da velocidade, da máquina, das palavras em liberdade, da acção pela acção.
O populismo de Renzi é, por conseguinte, mais do que um neopopulismo clássico que dominou a cena política italiana durante cerca de trinta anos conjugando populismo e neoliberalismo, mercado e povo, modernização e empobrecimento e desigualdades. É um neopopulismo tecnocrático – para outra descendência directa do neoliberalismo — que desmonta mais ainda nos neoliberais as formas e as práticas da democracia; reduz a nada a sociedade e a sociedade civil; ataca os sindicatos ou torna-os inúteis (em coerência com a tecnocracia global); que se transforma em espectáculo para si mesmo propondo-se como outsider, como ruptura, como alternativa, na realidade, assumindo na sociedade o espectáculo da tecnocracia.
Uma tecnocracia que já não se expõe directamente com os enfadonhos e antipáticos técnicos, mas com a fantasia e a inspiração de um populismo mediático e espectacular, um modernismo e postmodernismo em conjunto, onde utilizar o twitter é mais importante do que estar a ouvir.
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