OS MEUS DOMINGOS – A VIDA DUM RAPAZ MAGRO – por ANDRÉ BRUN

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1881 - 1926
1881 – 1926

 

II

– Fazer uma peça não custa nada. Pega-se num caderno de papel almaço, escreve-se em cima Os suspensórios da Viscondessa, Comédia em três actos, e enche-se o caderno até ao fim de ditos engraçados, de situações chistosas, de trocadilhos em segunda mão, etc. Quando esse caderno está concluído põe-se: “Cai o pano”, compra-se outro caderno, no alto marca-se: “Acto segundo”, e, quando esse está acabado pelos processos do primeiro, enceta-se num terceiro caderno o acto terceiro e, ao chegar à última página, assina-se e pronto. Está a peça feita.

Até aqui vai muito bem. Passamos a peça a limpo a achamo-la uma maravilha. Lemo-la então a dois ou três amigos íntimos, cujas observações nos deixam um tudo nada menos convicto dos méritos da obra. Entretanto, como alguns dias depois a tornamos a ler a um compadre nosso que chora a rir, essa má impressão desaparece e, metendo os três cadernos numa pasta, levamo-la ao empresário que no-la encomendou e a espera ansiosamente, segundo ele diz, o que aliás não o impede de solicitar com urgência peças a outros camaradas e ter engatilhadas nove traduções do italiano e seis adaptações do espanhol.

No momento em que se entra com uma peça a porta de um teatro, começa para o pobre autor dramático um triste calvário.

Em primeiro lugar Os suspensórios da viscondessa exigem para o primeiro acto um trecho da catedral de Salamanca, para o segundo uma saleta estilo inglês e, para o terceiro, um recanto do parque de Versailles. O empresário, mal ouve a descrição dos cenários, franze o nariz e, para quem os conheça, é sinal que a catedral de Salamanca será no ensaio geral substituída pela ermida do Solar dos Barrigas, que a saleta de estilo inglês com três portas e uma janela passará a ter três janelas e uma porta para se aproveitar o gabinete que serviu na Morgadinha de Valflor, e que, para o terceiro, o recanto do parque de Versailles terá de ser a mesma cena de jardim que doze gerações, pelo menos, têm contemplado em todas as peças que nesse teatro se passam ao ar livre.

Na distribuição de papeis o caso complica-se. O empresário ou é actor ou é das melhores relações da primeira actriz. Os primeiros papéis já se sabe, portanto, para quem são e, de resto, o autor já os escreveu assim mesmo. Mas, apesar disso, nunca ficam à vontade do freguês, principalmente se há outros também interessantes pela peça fora. A distribuição que o autor tinha cismado e lhe parece a melhor, não pode ser a definitiva, por que o ensaiador, que tem setenta anos, anda apaixonado por uma discípula de dezoito, porque a primeira madama não vai à bola do galã, porque este tem uma cavalheira sem jeito nenhum que quer impingir à viva força, etc., etc. Além disso, o empresário tem que contentar a segunda ingénua, que, por ter estado de parto, não pôde entrar na peça anterior e quer contrariar o cómico porque lhe conviria que ele recusasse o papel para o pôr na rua.

Enfim distribui-se a peça após mil discussões e chega-se ao primeiro ensaio. Ah! meu caro senhor! O autor, está persuadido que deu à luz uma obra prima e espreita no rosto dos seus interpretes a primeira impressão, fica desde logo em face de um dilema: ou persuadir-se de que é um burro ou convencer-se de que os actores são umas azêmolas. Escusado será dizer que escolhe esta última opinião e nessa tarde vai para casa desolado, de tal forma o seu bem amado texto lhe apareceu descolorido e vazio de expressão, coado como foi através de uma leitura hesitante e monótono em que uns soletraram com dificuldade e outros leram sem o mínimo interesse.

E, durante seis ou oito dias, o pobre autor arrasta uma existência dolorosa, adivinhando a má vontade de uns, constatando a incompetência de outros, procurando ao menos adivinhar na cara impassível do ponto se a sua peça terá ou não graça e consolando-se um pouco porque um velho rabulista, que entrega uma carta no terceiro acto e anda sempre a dormir por detrás do cenário do ensaio, acordou uma tarde por acaso, ouviu um dito e riu-se, piscando-lhe o olho.

Entra-se, finalmente, em ensaios de apuro. Nessa altura, o autor já não tem fé nenhuma na sua obra. Já brigou com duas das actrizes e embirrou com três dos actores. Já disse coisas amargas ao ensaiador que lhe aconselhava uns cortes e, como lhe chegaram aos ouvidos as palestras de café que o seu trabalho inspira, já acrescentou à lista dos seus inimigos íntimos pelo menos dúzia e meia de nomes.

Mas não há ninguém mais teimoso do que um autor dramático. Cismou que a sua peça havia de ser representada e é porque há-de sê-lo, quando, afinal, seria tão simples não escrever comédias em três actos e dedicar-se a outros lavores caseiros que menos arrelias lhe causassem.

Como não há ensaios que sempre durem, um dia chega o ensaio geral. Nessa altura é que aparece o cenário velho ou pintado ao contrário, a mobília disparatada, os pertences inaceitáveis. Sobre todos os que vieram ao mundo para arreliar um autor acrescentam-se nesse dia trágico o mestre maquinista, o electricista mor, a mestra do guarda-roupa, o engenhoso aderecista que faz mármore de papelão e diamantes de lata, o cabo da figuração, etc.. Todos têm uma complicação preparada para arrepiar os nervos do desgraçado. A peça, nessas horas vagas, é uma coisa vaga, inexistente, que cada um vê a seu modo e todos ao contrário de quem a escreveu. Pelo menos, o autor assim o julga, pois nesse momento apossa-se dele o delírio da perseguição. Ninguém o desconvencerá de que todos estão apostados em enfiar-lhe a comédia pelo buraco do ponto.

O ensaio geral corre sempre mal. De resto, em teatro, convencionou-se ser óptimo que o último ensaio corra pessimamente.

19 de Março de 1923

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