Selecção e tradução de Júlio Marques Mota
O Desastre Italiano
Perry Anderson, The Italian Disaster*,
London Review of Books, Volume 36, Nº 10, 22 de Maio de 2014
Parte XII
(CONTINUAÇÃO)
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Juntamente com o contraste na mensagem, há uma variação pelo meio. Renzi chamou primeiramente a atenção do público ao ser o vencedor de um show popular e nunca perdeu o seu entusiasmo por aparições de todos os géneros na televisão, onde a sua bonita e gordinha aparência e a sua forma arrogante fizeram dele uma natural atracção assim que entrou na política. Mas em tempos, o seu verdadeiro forte foi a WEB.
para projectar a sua imagem e cultivar os seus apoios de maneira bem mais contínua do que lhe poderia oferecer um estúdio de televisão e sob o seu controle muito mais completo (mesmo que assim ele se exponha a uma ou outra gaffe ocasional, como o ter colocado uma imagem de si-mesmo ao lado da cama de Mandela no hospital, uma fracção de segundo após o aparecimento da notícia da morte de Mandela);
para fornecer um fluxo contínuo das suas frases consideradas emblemáticas e os seus pareceres sobre assuntos do momento. Berlusconi, que gosta de contar piadas de bares de hotel em contextos informais, tendia a ser bombástico nos seus discursos políticos supostamente informais mas na verdade preparados e que eram ditos também nos grandes salões entre gente de casaco assertoado em Arcore. Renzi, pelo contrário, é ostensivamente casual no vestir e no falar. Ao tomar o poder, Renzi dirigiu-se ao Senado com as mãos nos bolsos. Isso não foi bem recebido. Mas em geral ele é muito superior a Berlusconi como um comunicador, muito mais rápido nas suas passadas políticas, com um dom excepcional para responder on-line e com um bom reportório de piadas. Por comparação, os seus modelos de referência, Blair e Obama, são pessoas muito pesadas nos discursos escritos. Renzi é muito mais rápido na resposta verbal. Como a sua melhor retratista tem observado, diferentemente de todos os outros líderes actuais do Ocidente, ele não precisa de conselheiros .5 Sem esforço, dispensa os conselheiros. O seu perigo reside numa arrogância demasiado visível, convidando à zombaria. Pelo caminho, ele sabe como transformar paródias de si mesmo numa alegre auto-ironia. Se isso irá continuar assim, agora que está no topo, onde também há muitas das suas descartáveis farpas e o risco de algumas humilhações incómodas, é o que se está para ver.
No momento, ele está na maior. Desde há vinte anos, os descendentes do comunismo italiano procuraram em vão o que ele com um aperto de mão a Berlusconi obteve num par de semanas. Para o PD, como para os seus antecessores, o problema em cada eleição na Itália é a presença, representação permitida pelo sistema eleitoral, de rivais bem menores à sua esquerda, ou – mas com menor dor de cabeça – de aliados um pouco à sua direita. Se ao menos o partido desejasse ardentemente poder eliminar tais concorrentes com uma segunda volta ao estilo francês, em que depois de um show sobre a proporcionalidade na primeira volta , a vitória por maioria simples seria obtida na segunda volta , ele entraria sem entraves no seu meio natural como um partido do governo de centro-esquerda num sistema político limitado seguramente a ele mesmo e ao seu homólogo do centro-direita. Isto sempre permaneceu fora do seu alcance, em parte devido à relutância natural dos partidos marcados pela impotência ou pela extinção sob tal sistema, para o votar no Parlamento. Foi também – mais criticamente – porque Berlusconi, embora muitas vezes fazendo um barulho semelhante, só não foi melhor do que o centro-esquerda a segurar uma ampla coligação de forças atrás dele com menos ganhos eleitorais, devido a uma redução drástica no número destas mesmas forças, mas em que também era necessário o apoio de uma força particular, a liga do Norte, que tinha uma identidade forte e organizada base que não poderia ser facilmente obrigada a uma Gleichschaltung do tipo da prevista pelos antigos comunistas.
Uma representação justa da opinião política na Itália, uma característica da primeira República, tinha sido lançada no acto fundador da segunda. Mas os sistemas eleitorais híbridos instalados posteriormente não foram satisfatórios para ninguém. Destes, o Porcellum foi amplamente considerado como o pior de todos eles. Napolitano, uma vez firmemente montado na sua sela ultra presidencial, pressionou o Parlamento para acabar com isso. Tal como o partido ao qual ele outrora pertenceu e pelas mesmas razões, não era nenhum segredo que Napolitano achava que uma segunda volta era o sistema ideal. O resultado da eleição de 2013 e o clamor do impasse institucional que se seguiu, desencadeou muitos apelos para uma reforma eleitoral – durante anos o rei Charles à frente dos media – cada vez mais altos e mais urgentes. Esta era a situação quando na primeira semana de Dezembro do ano passado o Tribunal Constitucional longamente considerou o Porcellum inconstitucional, por dois motivos. O prémio de uma maioria absoluta atribuído ao partido com maior número de votos, não importa se muitos se poucos, era uma distorção da vontade democrática. As listas fechadas, apresentadas por cada uma das partes, a fixação dos seus candidatos numa hierarquia de importância de cada distrito eleitoral, negava aos eleitores a liberdade de escolha na selecção dos seus representantes.
A decisão do Tribunal veio como um calafrio repentino para o PD. Se era permitido manter as coisas como estavam, as próximas eleições deveriam desenrolar-se num sistema proporcional, sem nenhuma compensação, e os eleitores poderiam seleccionar e escolher entre os candidatos da lista por eles preferida – repugnante para todos os senhores do Partido, como estando a enfraquecer-lhes o poder sobre as suas tropas. Um tal cenário era o que o PD mais razões tinha para temer.. Era vital bani-lo, portanto.
Providencialmente, o homem para conseguir isto tinha chegado. Cinco dias depois da decisão do Tribunal, Renzi assumiu a direcção do PD. Em apenas umas poucas sessões feitas à pressa e à porta fechada, Renzi e Berlusconi, cada um apoiado por um assessor com especialização técnica – o cientista político Roberto D’Alimonte, há muito tempo na Universidade de Florença, como assessor de Renzi; para Berlusconi o seu assessor florentino Verdini,– estabeleceram um acordo para dividir o bolo eleitoral entre eles. Juntos poderiam apresentar no Parlamento um sistema concebido para lhes garantir a maior parte da representação política no futuro.
Depois de pequenas alterações, as disposições da lei para entrar em vigor, dariam um prémio de 15 por cento dos assentos na Câmara para qualquer partido que alcançasse 37 por cento ou mais , na primeira volta , com um limite máximo de 55 por cento dos assentos; e se nenhum dos partidos atingisse 37 por cento, um total de 52 por cento dos assentos seria para o partido com a maior votação na primeira volta e que viesse à frente na segunda volta . Em cada distrito eleitoral, de que haveria muitos mais, ainda haveria listas fechadas dos partidos, mas estas seriam mais curtas – três a seis candidatos – tornando mais fácil para os eleitores a escolher entre eles. O objectivo deste regime era o de contornar as objecções do Tribunal face ao Porcellum, especificando um limite abaixo do qual o prémio não desceria, preservando assim a essência do Porcellum – uma flagrante distorção da opinião eleitoral, enganando com um gesto simbólico a possibilidade de maior liberdade de escolha entre candidatos. Limando o texto – grandiosamente intitulado o Italicum pelos seus arquitectos; apelidado de Renzusconi pelos seus críticos – constituía uma maior segurança contra as tentações desgarradas entre o eleitorado. Três limites separados para a representação política de todos os tipos foram estabelecidos: um partido que se apresentasse por si-próprio, sozinho, teria que ter mais de 8 por cento para ganhar um qualquer lugar que seja, um partido em coligação precisa apenas de 4,5 por cento e uma qualquer coligação precisaria de 12 por cento.
O pacto entre os dois líderes, no entanto, também estipulava que o Senado seria oportunamente abolido como um órgão eleito tout court, dando lugar a um assembleia com muito menos poder e constituída por notáveis regionais – em efeito uma folha de figueira a esconder que se trata de um sistema com uma só Câmara . Mas enquanto um novo sistema eleitoral pode ser aprovado por uma maioria simples nas duas Câmaras, a Câmara alta não pode ser modificada sem se alterar a Constituição italiana. Letta tinha tentado curto-circuitar os procedimentos para tal objectivo mas tinha falhado. O artigo 138 da Constituição permanece em vigor, inquebrável: estabelece que as alterações à Constituição exigem duas deliberações sucessivas por cada Câmara , com um intervalo não inferior a três meses entre elas, e na segunda ocasião as alterações devem obter a aprovação da maioria absoluta em cada Câmara e devem então ser sujeitas a um referendo popular, no prazo de três meses após a sua publicação, se um quinto dos membros de qualquer Câmara , ou meio milhão de cidadãos, o pedir – uma disposição que somente uma maioria de dois terços em ambas as Câmaras pode evitar, o que não tem actualmente nenhuma chance. A lei eleitoral poderia ser apressada e apresentada numa questão de dias. A abolição do Senado levaria pelo menos um ano, com a certeza de um referendo, no final do processo.
(continua)
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*Ver o original em:
http://www.lrb.co.uk/v36/n10/perry-anderson/the-italian-disaster
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