MITO & REALIDADE – TERROR E MORTE EM LISBOA – 1 – por José Brandão

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19 DE OUTUBRO DE 1921

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INTRODUÇÃO

A Noite Sangrenta, a Camioneta Fantasma, o 19 de Outubro de 1921, estão entre os acontecimentos da história da I República que maior interesse podem despertar, quer pelo que de miste­rioso deixaram, quer pelo que de consequências trouxeram.

«Noite trágica», escreve um autor da época, «em que mal se descobre já, por entre fantasmas e sombras, a figura outrora auste­ra e bela da República», a Noite Sangrenta não mais se apagará da memória dos que a viveram: «Quanto mais tento afastá-la do espi­rito, mais ela teima em lá viver.» Este sentimento de Rodrigo de Castro é partilhado pela generalidade dos autores que escreveram acerca dos acontecimentos de 19 de Outubro de 1921. Em todos, sem exceção, se encontram palavras de profundo pesar pela horrí­vel tragédia que nessa data se abateu sobre a cidade de Lisboa.

«O 19 de Outubro de 1921 é uma efeméride sinistra na vida por­tuguesa», dirá mais tarde o jornalista Carlos Ferrão. «Nela houve de tudo, desde a sordidez do crime ao heroísmo imaculado. A tra­gédia, sem paralelo em qualquer episódio da nossa história, desenrolou-se em curtas horas.»

A República Portuguesa vivia então um período de grande ins­tabilidade. Por toda a Europa era o fracasso das democracias libe­rais. A Primeira Guerra Mundial deixará as terríveis consequências de uma paz podre e da falsa vitória. Em Portugal, como em outros países vencedores, os resultados mais visíveis traduziam-se por revolução atrás de revolução. Os grandes nomes históricos da I Re­pública estão já longe da primeira linha dos combates. Afonso Costa escolhera o exílio de Paris para se transformar no D. Sebas­tião do regime republicano; Brito Camacho afastara-se para Mo­çambique, onde pôde respirar à larga nos exóticos jardins do Palá­cio do Governador; em Belém, António José de Almeida refugia-se numa presidência que é republicana como a República é portuguesa. O País estava no rescaldo do Sidonismo e da Monarquia do Norte, conspirava-se à barba longa, com a própria Polícia de Segurança do Estado a tomar parte ativa nos diversos conluios revolucionários. Entretanto, na chefia do Governo, António Granjo era uma es­pécie de condenado a caminho da Rocha Tarpeia, convencido de que caminhava para o Capitólio e, por consequência, para o triunfo.

Muitas foram as frases escolhidas pelos mais distintos autores para definir os acontecimentos da Noite Sangrenta. Em todas elas existem a dimensão da desgraça e as grandezas do mistério. São pe­quenas frases de uma gigantesca destruição humana que pertence a um drama moderno de uma Nação antiga.

«Agonia coletiva e declínio nacional», para Carlos Ferrão; «noi­te que constitui uma página lúgubre dos anais da República» para António Maria da Silva; «a página mais negra da história do regime republicano em Portugal» para Alberto Margaride; «sabbat de caliginosa noite, de diabinhos à solta» para Eduardo Schwalbach; «momento culminante da abjeção e do crime» para João Ameal; «noite vermelha, de sangue e de opróbrio» para Joaquim Paço d’Arcos; «revolução cafreal» para Costa Brochado; «horrível ma­tança que causa arrepios de pavor lembrar», para António Cabral; «a página de maior degradação, de luto e de horror que apareceu na história da República» para o visconde do Porto da Cruz; «ab­jeção que encheu o País de terror e causou espanto além-fronteiras» para Caetano Beirão; «uma das efemérides mais trágicas da história republicana» para Sottomayor Cardia; «poucas cenas paralelas se registam nas crónicas nacionais e punge-nos a vergonha ter sucedido em Portugal uma tão ignóbil ferocidade», para Joa­quim Ferreira; «página dolorosa e triste dum povo, que ficará inscri­ta nos anais da República como a página mais negra da sua história», para Rodrigo de Castro; «a maior de quantas tragédias assinalam a história política contemporânea», para Consiglieri Sá Pereira; «que horror de noite!», para Cunha Leal; «noite infame», para Raul Brandão; «assombro, horror, indignação, vergonha, loucura, crime, sangueira e morticínio», para Sousa Costa. São estas algumas das expressões usadas quando se fala da Noite Sangrenta.

Em Maio de 1924, ao escrever o prefácio para um livro de Consiglieri Sá Pereira sobre a Noite Sangrenta, Raul Brandão fazia-o com as seguintes palavras dirigidas ao autor:

«Meu amigo:

Não é fácil fazer um prefácio para o seu livro. Explicar o que há de subterrâneo no 19 de Outubro é a criação do fantasma que encheu a noite de pa­vor, não é caso para algumas linhas nem mesmo para um largo pre­fácio.

Porque o nó da tragédia não está nas personagens visíveis, nos atores, marinheiros ou soldados, nos bonifrates que se agitaram no palco, mas na figura invisível e tremenda que, sentimos por trás deles todos. Dessa é que não podemos desviar o olhar; do negrume é que não podemos desviar o olhar…

Como é que alguns seres medíocres, com quem lidamos todos os dias, nos aparecem de repente atirados para a tragédia, passando num momento das mãos dos homens para as mãos de Deus? Que sentimentos ou que ações lhes transformaram a alma, para assim surgir diante dos nossos olhos atónitos com aspetos de loucura e sonho? Talvez bastassem algumas frases, talvez todos nós ou pela inércia ou por certas palavras inconsideradas tínhamos também responsabilidades nesses crimes…

Para explicar o seu interessantíssimo livro seria necessário outro livro. O que nos resta portanto é aplaudi-lo. Um jornalista que depõe com sinceridade sobre um acontecimento importante, trabalha para a história. Faz história. Se não coloca muitas vezes os factos e os homens no seu devido lugar é que lhe falta a perspetiva que só vem com o tempo. Nas suas mãos está, porém, depor sem transigências e conscienciosamente. É o que o meu amigo faz. E até melhor – fá-lo com talento quando entra na ação tremenda, a ponto de não podermos desviar mais os olhos das páginas do seu livro. Não sei se as figuras têm grandeza, não sei se é o drama que vos leva – é o desconhecido, é a noite, é a personagem que se não mostra e que a gente sabe que está ali patente no escuro enchendo a treva de trágico pavor. E não só de pavor… Essa figura impalpável que domina a ação, a noite e os homens, obriga-nos a pensar, a falar baixinho para dentro, e a pronunciar palavras que se não escrevem nos prefácios e só se confessam diante da consciência e de Deus.

Maio, 1924.

Seu admirador e amigo

Raul Brandão»

1 Comment

  1. Boa tarde, sou proprietária da casa que pertenceu e onde viveu o padre Maximiliano Lima supostamente envolvido no episódio da Noite Sangrenta de 1921. Gostaria de obter o livro A Noite Sangrenta do autor Raul Brandão. Poderiam informar-me como adquirir. Obrigada
    Atenciosamente,
    Paula Valente

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