MITO & REALIDADE – Terror e Morte em Lisboa – 19 – por José Brandão

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                                     Capítulo III

A CAMIONETA FANTASMA (3)

MACHADO SANTOS

Passava agora um bom par de horas desde que o Presidente tinha acedido aos desejos dos revolucionários. O novo dia estava já na primeira hora do seu tempo. No Arsenal… Ainda não basta!

Uma vez mais com o Dente de Ouro à cabeça, o veículo do terror parte ao cheiro do sangue.

– Almirante, é a sua hora: vai ser fuzilado!

A voz é do primeiro-cabo Abel Olímpio.

O Dente de Ouro não tinha dado por terminada a sua obra. Voltava à rua, numa das mais sanguinárias perseguições noturnas da história recente.

Eram duas horas da madrugada. A Camioneta Fantasma estava parada junto ao n.º 14 da Rua de José Estêvão, no Bairro da Estefânia. António Maria de Azevedo Machado Santos, o Machado Santos do 5 de Outubro de 1910, tem a sinistra viatura à sua espera. No segundo andar do prédio que habita, está já o cabo Olímpio, o Dente de Ouro.

À ordem dos marinheiros, o guarda-noturno abrira a porta da escada aos invasores. As coronhadas nos degraus acordam todo o prédio sob sono da madrugada. Um cunhado de Machado Santos, a ler na cama, ouve a barulheira. Pressentindo desgraça, apressa-se em proteger a família.

Na casa de Machado Santos, a esposa do almirante acorrera ao toque da campainha, procurando saber quem é àquelas horas da madrugada:

– Marinheiros! – Respondem de fora, com arreganho. – Queremos o Sr. Machado Santos. Tem de ir falar com o capitão Procópio de Freitas!

O almirante, já ao lado da esposa, vestido como calha, segreda que é melhor ela dá-lo por ausente de Lisboa.

– Ou abrem ou bombardeamos o prédio – ameaçam os intrusos, face à desculpa que os pretende iludir.

Seguidamente, um enorme fragor estremece a porta do almirante, ressoando por todo o prédio. Um tiro disparado no patamar era aviso de que o grupo do Dente de Ouro não se ralaria nada em fazer aquilo que ameaçava.

Machado Santos abre a porta, decidido a enfrentar a horda. A esposa treme em soluços de aflição.

– O que me querem?

A única resposta à vista são as armas engatilhadas dos marinheiros.

Pergunta de novo o que lhe querem.

Dizem-lhe que têm de o levar ao Arsenal, onde o capitão Procópio de Freitas pretende falar-lhe.

– É de mais! – Protesta Machado Santos, já sem paciência. – Vocês esquecem-se de que sou vosso superior! De que sou almirante!

Um dos marinheiros começa a bufar de irritação:

– Ai… ai…

O Dente de Ouro, sem cerimónia e já experiente neste tipo de situações, toma a iniciativa de levar, fosse de que maneira fosse, a sua nova vítima. Arrogante, sabendo tudo o que pode fazer, bate com a coronha no sobrado, reforçando a ordem de marcha.

O almirante verifica ser inútil e perigosa qualquer resistência, em especial para as pessoas da família ali presentes. Um filho de Machado Santos estava, de pijama, no corredor, de pistola em punho e disposto a defender o pai.

Depois de acabar de se vestir, o distinto oficial da Marinha de Guerra Portuguesa mete tabaco no bolso, abeirando-se da esposa, que chora convulsamente. Aperta-a numa última despedida e beija-a com veemência. Ela, em desespero, agarra-o pelos braços e pede-lhe que não vá. As lágrimas correm-lhe a fio, os soluços mal deixam perceber as suas palavras:

– Ai que mo vão matar! Ai que mo matam!

– Qual matar! Olha que ideia! – Comenta cinicamente o Dente de Ouro.

– Nós levamo-lo ao Arsenal e trazemo-lo já – afirma outro dos criminosos.

– Não! Não o levem!

– Acabemos com isto. Vamos! – Atalhou o Dente de Ouro, determinado em acabar com a conversa.

Faltavam alguns minutos para as duas da madrugada. Machado Santos entra na camioneta que tem à porta. Senta-se ao lado do condutor. O cabo Olímpio ajeita-se e senta-se ombro a ombro com o almirante.

A menos de 50 metros situa-se o Quartel de Cabeço de Bola, cuja porta de armas fica mesmo no enfiamento direto da casa de Machado Santos. As sentinelas desta unidade da GNR, onde se encontravam bem armadas duas companhias de Infantaria e um esquadrão de Cavalaria, assistem a tudo sem esboçar qualquer vontade de intervir.

A Camioneta Fantasma leva mais um condenado à traiçoeira morte que desde o princípio da noite espalhava o terror sobre Lisboa.

Pela Avenida Almirante Reis abaixo rola em direção ao Arsenal da Marinha, transportando o mais famoso oficial da Armada republicana para a derradeira viagem da sua vida de pouco mais de quarenta e seis anos cheios de grandeza e de glória.

Como António Granjo e José Carlos da Maia, é um histórico da República, o maior de todos, o grande fundador da República em Portugal. Também carbonário, também dos maiores – foi membro da Alta Venda, que superintendia a mais poderosa organização secreta armada alguma vez existente em Portugal – e a quem se deve o impulso decisivo na hora do grande combate pela Revolução que abalou Portugal nos primeiros dias de outubro de 1910.

– Desça, almirante, que vai ser fuzilado!

Junto ao Largo do Intendente, uma avaria súbita no motor da camioneta impedira-a de continuar a marcha com destino ao Arsenal.

Os facínoras não perdem tempo:

– E se a gente o matasse já aqui? Temos de voltar cá a trazê-lo – adianta um dos marinheiros, aludindo às proximidades da morgue. Machado Santos não se deixa impressionar com as ameaças. Fala, discute, protesta: «E a voz daquele ingénuo, que quis ser político, jornalista, revolucionário e vai ser, de encontro a uma parede, um farrapo humano a escorrer sangue por todas as feridas, responde:

– Veja – diz ele para o bandido que lhe fala – que as minhas pulsações não aumentaram.»

No silêncio e solidão da Noite Sangrenta, um carro de aluguer, cedido pelo seu ocupante – um empresário de teatro que, mais tarde, aparecerá envolvido num famoso crime de estrangulamento –, leva para o necrotério o corpo do almirante. Os marinheiros que o transportam, ao apeá-lo do carro, sentem gemer e estrebuchar. Antes de entregarem o moribundo aos maqueiros da morgue, dão-lhe o golpe de misericórdia, acabam a obra cruenta à coronhada e a tiro.

Era manhã de mais um dia de outubro de 1921. Neste mês fazia onze anos que o destemido oficial subalterno da Marinha gravara o seu nome na mais brilhante página da história republicana portuguesa.

Na verdade, não podia o destino reservar-lhe pior sorte. Um movimento revolucionário comandado pelo principal herói da que tinha sido, em 1891, a primeira grande revolta pela República, Manuel Maria Coelho, acabava, agora, em 1921, com a vida daquele que tinha conseguido levar aos apogeus do triunfo essa mesma República.

Alguns testemunhos, por vezes contraditórios, pretenderam dar imagens vivas daquilo que foram os últimos momentos de Machado Santos.

O de Augusto Rosa apresenta-se assim:

Eis o triste relato dos acontecimentos, feito ao ABC pelo Sr. Augusto Gomes, empresário do Teatro Apolo:

«Eu cheguei ao Arsenal da Marinha, vindo de Pedrouços, onde tinha ido numa missão de confiança, quando deparei à porta do Arsenal com um grupo de civis armados que me confessaram esperarem ali a passagem do automóvel do Sr. Cunha Leal para o assassinarem.

Estupefacto, sem saber a que atribuir a fúria sanguinária daqueles indivíduos, corro ao quarto do oficial de dia e depois ao andar superior onde se encontravam os Srs. Cunha Leal e António Granjo, e fiz ver ao primeiro a conveniência que havia de não sair do edifício sem ir acompanhado por pessoas de grande confiança, dada a exaltação da turba que lá fora o esperava.

O Sr. Cunha Leal, já então ferido no pescoço, depois de muito instado, resolveu-se a sair comigo e com vários amigos, com o intuito de ir receber curativo ao Hospital de S. José.

Saímos do Arsenal e no Largo do Pelourinho tomámos lugar num automóvel da Guarda Republicana, seguindo imediatamente para o Hospital.

Foi ali, momentos depois de termos chegado, que recebemos a infausta notícia de ter sido assassinado o malogrado António Granjo.

Acompanhei o Cunha Leal até casa, e segui imediatamente para a Presidência da República, que fui encontrar guardada apenas por dois polícias!

O presidente da República, acabrunhado por tanta miséria, recebeu comovidíssimo a triste nova, e eu sem perda de tempo segui no automóvel para o Comando-Geral da Guarda Republicana, onde pedi ao Sr. Manuel Maria Coelho forças suficientes para manter a segurança do Sr. Dr. António José de Almeida.

O velho revolucionário do 31 de janeiro ordenou imediatamente ao capitão Loureiro que fizesse seguir para ali as necessárias forças, gritando em alto e bom som que mandassem fuzilar quem fosse encontrado na prática de semelhantes crimes, como aquele que vitimara o António Granjo.

Tranquilo já pela segurança do venerando Presidente da República, despedi-me do Sr. Manuel Maria Coelho e fui a pé até ao Rossio, onde me meti num trem, com a intenção de ir para minha casa.

Foi então que, no Largo do Intendente, alguns indivíduos que tinham descido duma camioneta fizeram parar o trem e, depois de inquirirem a minha identidade, disseram-me que tinha de dispensar o carro para ir levar à morgue um cadáver.

Estupefacto, julgando estar sonhando, desci do trem e vi então, do outro lado da rua, uma camioneta da GNR rodeada por uns oito ou dez indivíduos armados de espingardas. Sentado ao lado do chauffeur, vi o almirante Machado Santos, trajando à paisana, transido de pavor, suplicando aos revolucionários que o não matassem.

Recusando acreditar no que via, pedi explicações aos revoltosos, e foi em vão que tentei dissuadi-los do crime nefando que iam praticar.

O chauffeur desceu por sua vez da camioneta e pedia suplicante, chorando a bom chorar, que não matassem o almirante:

– Deixem-me – dizia ele –, eu não sirvo para estas coisas!…

Inutilmente juntei os meus rogos às súplicas do pobre chauffeur. Momentos depois faziam descer o malogrado Machado Santos da camioneta e uma descarga prostrava-o para sempre sem vida.

– Quantos foram os indivíduos que fizeram fogo? – Perguntámos nós, emocionados com o horror da tragédia.

– Foram oito assassinos – diz-nos o Sr. Gomes. Os outros quatro, porque eles eram doze, ficaram junto dum banco próximo, e foram mudos espectadores daquela cena de sangue que tivera como epílogo a morte do honesto fundador da República.

Eu fiquei como que pregado naquele lugar, enquanto o corpo do infeliz era conduzido no trem para a morgue.

Os assassinos tencionavam ainda cometer mais crimes, e fui eu que a muito custo consegui dissuadi-los de irem a casa dos Srs. Barros Queiroz e Sotto Mayor, que estavam também condenados a morrer!

– E o side-car da Imprensa da Manhã?…

– Vi-o parado defronte do Coliseu da Rua da Palma.

E não sei mais nada. Pouco depois voltou o meu trem e eu segui para casa, meio louco e horrorizado com o sangue inocente que há pouco vira correr.»

Um outro testemunho do que teriam sido os últimos minutos da vida de Machado Santos vem de um velho jornalista do Diário de Lisboa, que recorda a cena, muitos anos depois:

Hoje, por acaso, no Largo do Intendente, vi a famosa camioneta do crime no meio de uma balbúrdia sanguinolenta. Discutia-se. Nervoso, o velho herói de 1910 tentava convencer os homens que o cercavam:

– Vocês, rapazes, estão levando-me por equívoco. Eu, em casa, estava esperando o carro que devia levar-me a Belém, onde Manuel Maria Coelho, o chefe da revolução, está a esta hora depondo do poder António José de Almeida, para, logo a seguir, empossar-me a mim, Machado Santos, finalmente, no cargo de Presidente da República. Entendem? Eu é que vou ser o presidente. Vocês, rapazes, estão, estão levando-me preso por equívoco, sim, por equívoco, por equívoco, por equívoco…

Estoira uma descarga. E Machado Santos escorrega e cai ferido de morte. Este foi o seu fim.

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