AS RAZÕES DA CRISE NA EUROPA. ANÁLISE DO CONTEXTO GLOBAL E DAS RESPOSTAS POSSÍVEIS À DRAMÁTICA SITUAÇÃO ACTUAL – ORÇAMENTO DE 2015: UMA PÉSSIMA VIRAGEM – ATTAC FRANÇA, FONDATION COPERNIC, LES ÉCONOMISTES ATTERRÉS – II

Falareconomia1

Selecção e tradução por Júlio Marques Mota

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Orçamento de 2015: uma péssima viragem

Attac, Fondation Copernic, Les Économistes Atterrés – Budget 2015: un mauvais tournant

Guillaume Etiévant ; Pierre Khalfa ; Philippe Légé :

Christiane Marty ; Christophe Ramaux ; Jacques Rigaudiat

Henri Sterdyniak

23 de Outubro de 2014 

(continuação)

A França: na malha da austeridade

Em 2007, a França tinha um défice público de 2,5 pontos do seu PIB. Este nível não punha nenhum problema económico particular. Contrariamente ao que podem contar a maior parte dos responsáveis políticos ou dos meios de comunicação social, ou que procura impor a Comissão Europeia, nada justifica uma norma de défice zero. De resto, o défice primário da França (o défice com exclusão dos juros da dívida ) era nulo, o que garantia que a dívida pública permanecia relativamente estável relativamente ao PIB[1]. A França consagra 4% do seu PIB ao investimento público. Estes investimentos são de longo prazo, é por isso que é lógico economicamente é justo socialmente que sendo utilizados por várias gerações, o seu financiamento seja ele mesmo repartido sobre várias gerações. De resto, mesmo em 2013, a dívida pública é inferior aos activos das administrações (activos físicos como escolas, hospitais, e activos financeiros); em suma,, o património das administrações francesas (os seus activos menos as suas dívidas) é positivo e em cerca de 16% do PIB.

Os efeitos da crise financeira

Em 2008, depois, sobretudo em 2009, devido crise à financeira, o PIB caiu; as receitas fiscais diminuíram; as medidas de reactivação foram tomadas, o que levou a que o défice público atingisse 7,2% do PIB em 2009. Mas, mesmo nesta data, o saldo estrutural primário (aquele que teria sido registado numa situação conjuntural normal) permanecia positivo. O alargamento desmesurado do défice público era provocada inteiramente pela crise.

A França seguiu a estratégia europeia de austeridade orçamental (quadro 1). No total, de 2011 à 2014, a política restritiva representou 3,5 pontos de PIB (70 mil milhões). Esta política restritiva teve os efeitos depressivos esperados sobre o PIB. De 2011 à 2014, o crescimento anual foi apenas de 0,3%, ou seja uma perda de crescimento que em termos acumulados foi de aproximadamente 4,5%, e por conseguinte 600.000 empregos perdidos.

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A particularidade francesa contudo foi de que esta política restritiva se efectuou essencialmente através do aumento dos impostos e muito menos através da redução das despesas públicas. De 2010 à 2014, os impostos aumentaram de 3 pontos de PIB, ou seja de 60 mil milhões, tendo 30 mil milhões sido decididos sob a governação de Nicolas Sarkozy e os restantes 30 mil milhões sob a direcção de François Hollande.

Assim, em 2011-2012, o governo Fillon aumenta de 17 mil milhões a fiscalidade das famílias (aumento das cobranças sobre os rendimentos do capital, congelamento da tabela do imposto sobre o rendimento (IR), supressão de metade da parte suplementar das viúvas, supressão do crédito de imposto sobre os dividendos, criação de uma contribuição dos altos rendimentos, tributação dos contratos de seguros e das mútuas sobre a saúde, aumento das contribuições dos funcionários); de 3 mil milhões de fiscalidade indirecta e de 10 mil milhões a fiscalidade das empresas (aumento da contribuição patronal (forfait social), redução das isenções de contribuições sociais, endurecimento da legislação do IS, tributação dos bancos).

Em 2012-2013, o governo Ayrault aumenta de 20 mil milhões a fiscalidade sobre as famílias (supressão da isenção sobre as horas suplementares, aumento das quotizações sociais, tributação sobre os rendimentos do capital, aumento do ISF e dos direitos de sucessão, aumento das contribuições dos reformados, baixa do limite do quociente familiar, imposição dos suplementos familiares de reformas) e 10 mil milhões a fiscalidade das empresas (aumento do forfait social, endurecimento do IS, aumento das contribuições para as reformas).

Alguns destas medidas vão no bom sentido como a reposição à nível do ISF e dos direitos de sucessão, o aumento da tributação dos rendimentos do capital, o aumento do forfait social, a luta contra a optimização fiscal das empresas. Outros põem fim a nichos fiscais pouco justificáveis. Mas, estes aumentos de impostos, destinados a reduzir o défice, são contraproducentes em período de depressão. Os aumentos de impostos desejáveis por razões de justiça fiscal deveriam ter sido utilizados para reduzir os impostos injustos (IVA ou taxa sobre a habitação) e para lançar programas indispensáveis de despesas (a tributação das majorações familiares de reforma para financiar novos infantários, o aumento do ISF e dos direitos de sucessão para criar um subsídio de inserção para os jovens, por exemplo).

O crescimento das despesas públicas simultaneamente tem sido reduzido (+ 2% em média sobre o período 2002-2011; 1,8% em 2012 e 2013; 1,3% em 2014), mas o ajustamento foi menos drástico sobre esta vertente, o que, como iremos ver de seguida, permitiu a França escapar à depressão.

A austeridade conduz à recessão

O programa de François Hollande previa fortes aumentos de impostos em 2012-2013 (ou seja de 40 mil milhões em 2012-2013), depois um crescimento menor nas despesas públicas (1% o ano em volume durante 5 anos). Graças à retoma esperada do crescimento (1,7% em 2013, 2,25% seguidamente), a França deveria situar-se abaixo do défice de 3% do PIB e atingir o equilíbrio orçamental em 2017. O esforço orçamental (o impulso negativo induzido pelas finanças públicas) representava 1,5 ponto de PIB em 2012 e 2013 e depois 0,6 ponto a seguir. Mas o crescimento previsto era totalmente incompatível com uma política orçamental fortemente restritiva. Este teria suposto um ambiente internacional portador, incompatível com as políticas de austeridade postas em prática por toda a parte na Europa.

attac - II

No final de 2012, a lei de programação das finanças públicas reduz ligeiramente as ambições. Reconhece o fraco nível do crescimento. Mas a sua inspiração permanece a mesma: um forte aumento da fiscalidade em 2012-2013, redução do ritmo de evolução das despesas públicas que passa para 0,8%. ao ano o aumento nas despesas públicas.

Esta política não funciona. Mês após meses, o governo é obrigado rever à baixa as suas previsões. Fim 2012, apostava sobre um crescimento do PIB (em volume) de 2% entre 2014 e 2017. É a quase estagnação que está por fim a chegar : 0,4% previsto em 2014 (já com apenas 0,3% em 2012 e 2013) com o risco sério de não conseguir fazer melhor no ano seguinte. Como explicar estes “erros” de previsão? Em cada uma das vezes, o governo subestimou o impacto recessivo das decisões de austeridade. Austeridade salarial, certamente, mas também austeridade orçamental. O que os economistas liberais tinham antecipado desde 2010 infelizmente acaba de acontecer : a austeridade asfixiou a actividade.

A redução prevista dos défices públicos e da dívida pública, em nome do qual esta austeridade foi efectuada, também não se verificou. No final de 2012, o governo apontava para um défice público de 2,2% do PIB para 2014, ele será finalmente o dobro, ou seja 4,4%. A dívida pública prevista em 90,5% estabelecer-se-á em 95,3%. Por cada actuação temos sempre os mesmos mecanismos em jogo: a austeridade orçamental e salarial asfixia a actividade, que reduz na mesma proporção as receitas fiscais e aumenta mecanicamente os défices e as dívidas, dado que estes valores são expressos em relação ao PIB que está em contracção.

As políticas orçamentais restritivas assim como a ausência de estratégia económica portadora destruíram cabo do crescimento em 2013 e em 2014. O governo assume um ponto de viragem, a passagem para “a política da oferta”, mas não é o bom caminho. Certamente não se comprometeu (pelo momento até agora?) a cortar mais ainda nas despesas públicas para tentar alcançar o objectivo de redução do défice previsto em 2015, mas este passa para um segundo plano. O governo prevê sobretudo consagrar 40 mil milhões (2 pontos de PIB) a reduzir os impostos das empresas. O novo projecto re-envia para 2017 a passagem do défice público francês abaixo da pretendida barra dos 3%. O esforço orçamental (na acepção da Comissão) é afastado para 2017. A despesa pública é suposta não progredir mais do que 0,4% em volume, isto apesar do aumento tendencial das despesas de reformas e de saúde. Assim, anualmente, o governo deverá anunciar novas medidas de baixas nas despesas públicas e sociais, mas as economias prometidas sobre as costas das famílias, dos doentes, dos reformados, dos desempregados, dos serviços públicos, funcionários, das colectividades locais serão consagrados essencialmente em reduzir os impostos e as contribuições das empresas.

Do ponto de vista económico, é uma aposta perdida e logo à partida. Em situação de fraco crescimento ou de estagnação económica, e de sobre – capacidade de produção, uma vez que a baixa das despesas públicas e sociais se vai acentuar, as empresas não têm necessidade de investir. O risco é grande que a estagnação actual continue.

 O governo prevê um laborioso regresso ao crescimento: 1% para 2015,1,7% em 2016 1,9% em 2017, seguidamente 2% a partir de 2018. Por conseguinte, espera uma baixa da dívida pública desde 2017 (98% em 2016 e 92,9% em 2019). Mas a história corre o risco de se vir a repetir: o governo subestima o impacto recessivo destas suas decisões. Com a sua “política da oferta”, amanhã como ontem, o crescimento tem pouca possibilidade de estar na ordem do dia. A dívida pública, por conseguinte, não se reduzirá. Os liberais, na França como na Comissão europeia, retomarão então o refrão conhecido: é necessário ir mais longe na austeridade!

A França sancionada pela Europa?

Do ponto de vista europeu, em Dezembro de 2012, a França tinha-se empenhado a realizar um esforço orçamental de 3,2 pontos de PIB sobre os três anos 2013,2014,2015; de acordo com o novo orçamento, o esforço será apenas de 1,4 ponto, ou seja de 1,1 ponto em 2013, 0,1 ponto em 2014, 0,2 ponto em 2015. Assim, a França não faria mesmo em 2014 e 2015 o esforço de 0,8 ponto de PIB ao qual se tinha comprometido em Junho de 2013; ela não fará sequer, durante estes 2 anos, o esforço de 0,5 ponto de PIB, que se impõe a todos os países, de acordo com as regras europeias, cujo défice estrutural é superior à 0,5 ponto de PIB.

Em vez de tomar medidas para se aproximar da trajectória de saldo público anunciado pela Lei de programação das finanças públicas (LPFP) votada no final de 2012, o governo vai apresentar à votação no final de m 2014 uma nova LPFP, que é contrária ao espírito do Tratado Orçamental[2]. Seja que Bruxelas sancione a França; seja que Bruxelas renuncie para sempre a fazer respeitar os princípios do Pacto e do Tratado.

Certamente, sobre o plano técnico, uma parte do desvio assinalado explica-se pelo facto de que o governo francês aceitou a estimativa da Comissão de um crescimento potencial [3] da França limitado à 1% por ano em 2013-2015, enquanto que o governo estimava até há pouco o crescimento potencial francês em 1,6% ao ano[4]. Mas o Tratado orçamental precisa bem que são as estimativas da Comissão que se impõem. No plano económico, tendo em conta a situação conjuntural, o governo escolheu privilegiar o apoio ao crescimento pelas baixas de impostos e de contribuições que figuram no Pacto de responsabilidade e de crescimento, relativamente ao que determina o respeito pelas regras europeias. Mas isso não é autorizado pelos Tratados: um país não pode por si só decidir libertar-se das regras.

Para entrar na linha, a França deveria realizar em 2015 um esforço suplementar na baixa das despesas públicas de aproximadamente 1,4% do PIB, ou seja de 28 mil milhões. Mas, este esforço teria um impacto recessivo sobre o PIB: em vez do crescimento de 1,0% em 2015[5] 13, previsto pelo governo, a França irá ter uma baixa do PIB de aproximadamente 0,4%, de modo que as receitas fiscais irão diminuir e com tudo isto o objectivo de 3% de défice não será mais atingido e a França recairá em recessão. Em suma, a França tem todas as razões para dever não obedecer.

A Comissão poderia certamente transigir: pedir à França um esforço suplementar moderado (8 mil milhões de euros suplementares de redução das despesas públicas em 2014) e, como contrapartida para esta indulgência, exigir que a França se comprometa firmemente a aplicar as reformas estruturais (nova reforma das pensões de reforma, baixa das indemnizações de desemprego, redução das prestações familiares, diminuição do número de funcionários públicos, reforma do direito do trabalho). O governo poderia assim fingir que lhe estariam a ser exigidas pela Europa as reformas que a própria França reconiza em almoços privados, no City ou no Club Le Siècle.

A pseudo – coordenação das políticas económicas nacionais por regras arbitrárias revela-se totalmente contra produtiva; a política de austeridade orientada e controlada pela Comissão destrui a retoma que se esboçava em 2010-2011; a zona euro permanece uma zona de fraco crescimento, de desemprego de massa e de desequilíbrios entre os Estados-Membros; a Comissão não reage à redução do ritmo de crescimento que se verifica actualmente na zona euro. Incontestavelmente, a prioridade hoje é no entanto para pôr um termo às políticas de austeridade e coordenar políticas de reactivação adoptando medidas específicas para os países em desequilíbrio ( mais salários e mais protecções sociais, particularmente em Alemanha, investimentos produtivos que inscrevem-se na transição ecológica, particularmente nos países do Sul).

De facto, o problema é que os governos franceses sucessivos assumiram o erro de assinar o Pacto de Estabilidade, depois, assinaram igualmente as seis-directivas, depois as directivas, depois o Tratado Orçamental; erraram em assumir compromisso estúpidos sobre o plano económico, impossíveis de realizar e manter; erraram igualmente ao aceitar que políticas insustentáveis sejam impostas aos países do Sul (que não têm agora nenhuma razão para nos apoiarem). A França aparece hoje como um parceiro não digno de confiança, incapaz de manter os seus compromisso, além disso isolado. Teria sido mais corajoso e mais portador, uma atitude de recusa em assinar o Tratado em 2012 e procurar aliados na Europa a fim de se empenhar efectuar uma batalha para uma reorientação da construção europeia.

É hoje mais que tempo para que a França diga claramente que se recusa a vergar-se às regras orçamentais contraproducentes e que ela exige uma ruptura honesta nas políticas da União europeia.

(continua)

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[1] Uma outra maneira de dizer, um país como a França pode ter um crescimento do seu PIB de 3,5% por ano (1,75% em volume, 1,75 % em preços) e uma dívida de 80% do seu PIB, isto é compatível com um défice de 80*3,5=2,7% do PIB.

[2] Isto era perfeitamente previsível, ver, Les Economistes Atterrés, l’Europe mal-traitée, Les liens que libèrent, 2012.

[3] O crescimento potencial é uma construção estatística que se considera representar o crescimento ligado aos fundamentais duma economia.

[4] Passar de uma estimativa de crescimento potencial a 1% em vez de 1,6% reduz de 0,3 % de PIB a estimativa do esforço orçamental realizado no correr do ano.

[5] O que é muito optimista. O ganho em crescimento será praticamente nulo no final de 2014. Seria necessário uma retoma rápida a um ritmo de crescimento de 2% em variação anual em 2015 para atingir 1% em média este ano. O governo aposta sobre um aumento do consumo de 1,3% em 2015, enquanto que este não teria progredido mais do que 0,1% em 2014. De onde viria então este salto ?

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Para ler a Parte I deste trabalho da ATTAC – France, Fondation Copernic e Économistes Atterrées, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

AS RAZÕES DA CRISE NA EUROPA. ANÁLISE DO CONTEXTO GLOBAL E DAS RESPOSTAS POSSÍVEIS À DRAMÁTICA SITUAÇÃO ACTUAL – ORÇAMENTO DE 2015: UMA PÉSSIMA VIRAGEM – ATTAC FRANÇA, FONDATION COPERNIC, LES ÉCONOMISTES ATTERRÉS – I

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