MITO & REALIDADE – Terror e Morte em Lisboa – 29 – por José Brandão

Logo às primeiras horas da manhã de 20 de outubro de 1921, estava já evidente que a população de Lisboa ia repudiar energicamente os crimes da noite anterior. A pretensa revolução libertadora, que dera espaço a semelhante crueldade, não lhes podia servir para qualquer consolação num momento de tão grande cobardia. O país da República portuguesa acordara banhado em sangue de republicanos com nomes que já pertenciam à história. A condenação é unânime. Dir-se-ia que até os criminosos condenavam os crimes. Os funerais das vítimas são acompanhados por manifestações de grande pesar por parte dos muitos presentes às cerimónias.

 Junto do féretro de António Granjo, Cunha Leal diz algumas palavras: «O sangue correu pela inconsciência da turba – a fera que todos nós, e eu, açulámos, que anda à solta, matando porque é preciso matar. Todos nós temos a culpa! É esta maldita política que nos envergonha e me salpica de lama.»

Na mesma cerimónia, e com idêntico sentido se pronunciaram igualmente Jaime Cortesão e Lopes de Oliveira.

 O primeiro afirmou: «Sim; diga-se a verdade toda. Os crimes que se praticaram não eram possíveis sem a dissolução moral a que chegou a sociedade portuguesa. Por trás das espingardas que vararam António Granjo, há outras armas mais perigosas e assassinas. Chamam-se elas o egoísmo das classes, e, em especial, das mais altas; a inércia e por vezes a corrupção do poder; a esterilidade dos mais elevados organismos políticos da nação, que se debatem e afundam em mesquinhas disputas.»

Lopes de Oliveira dava igual opinião: «Foi a desordem em que caímos que vitimou agora, canibalmente, alguns dos nossos.»

Eram categorizados republicanos que assim falavam. E na mesma linha de pensamento se exprimiam na altura outros grandes vultos do regime. Bernardino Machado tem então estas palavras:

«Estamos cobertos de luto pela atroz tragédia que veio convulsionar de infinita dor a alma da nação. Um protesto de indignação geral irrompeu de todos os corações. Mas não basta estigmatizar o crime e punir exemplarmente os criminosos. É indispensável também apontar os desmandos políticos que tornaram possível esse horror. Todos se resumem na luta de ambições desvairadas entre os dirigentes republicanos. Foram eles que a si próprios se exautoraram e fizeram alvo de desacatos. Com as suas campanhas de mútua difamação, eles cultivaram os instintos ferinos com que acabam de ser imolados ilustres republicanos. […] Depois de tão monstruosos atentados, não será ainda tempo de pôr termo à política de divisões odientas que nos dilaceram, ensanguentam e desonram? Os seus fautores são os principais responsáveis das desgraças da República e da Pátria. Condenemo-la formalmente.

[…]

Todos os nossos males provêm das lutas dos dirigentes, que aliás tantos republicanos reprovam mas não têm tido forças para conter. São elas que, dilacerando e enfraquecendo o poder civil, nos arriscam aos desastres e labéus de deploráveis aventuras.»

Também nas memórias Quarenta Anos de Vida Literária e Política, António José de Almeida, fala do 19 de outubro de 1921 da seguinte forma:

«E, perante uma tal unanimidade nos protestos contra os odiosos crimes […] a uma conclusão se chega, inevitavelmente, e é: que tais crimes foram a obra inconsciente da Liberdade entendida e praticada como permitindo à opinião e à imprensa, num país de lamentável atraso mental, o ataque irresponsável, descomedido e anónimo, à honra pessoal dos homens públicos. O movimento de 19 de outubro de 1921 foi precedido duma longa, insistente campanha de descrédito, movida por interesses feridos em operações financeiras do Estado no abastecimento da população.»

 O segundo número da Seara Nova traz um texto de Jaime Cortesão, que apesar de vir a público alguns dias depois dos acontecimentos de 19 de outubro, o autor esclarece ter sido escrito antes dessa data. Nesse texto pode ler-se o seguinte:

«Vivemos num ambiente espesso de mentiras.

Um dos maiores sintomas da debilidade nacional é o receio de encarar a verdade, frente a frente. Uma espécie de letargia coletiva furta-nos a razão ao contacto das próprias realidades. Comecemos, pois, por dizer a verdade nua e crua.

[…]

O antigo Portugal, sadio e forte, volveu-se num corpo de pigmeu, com uma cabeça imensa e desvairada. Ao fim caiu em puro autofagismo; devora-se a si próprio.

O parasitismo, eis o grande mal. E, como o trabalho é a condição da liberdade e sem verdadeira liberdade não há opinião pública, Portugal tornou-se um viveiro de oligarquias: à cobiça duma meia dúzia subordinam-se os interesses de seis milhões de portugueses.

[…]

Que têm feito ou o que fazem os políticos?

Representantes duma sociedade em crise, enfermam em geral dos mesmos vícios. Continua a ser má a organização partidária da República. Aos partidos falta essencialmente a unidade moral e diretiva que advém dos princípios. Os Governos, tantas vezes recrutados na mais irrisória das incompetências, iludem quase sempre com expedientes e modificações de superfície muitas das mais sagradas promessas feitas nos bons tempos. Sucedem-se uns aos outros e os problemas da maior urgência continuam insolúveis. Enquanto um partido ou um grupo de partidários diferentes está no poder, veem-se os outros com frequência gastar todos os seus esforços em dispor a casca da laranja, que os há de fazer tombar.

E o parlamento? Esse canta mas não produz: é a grande cigarra nacional, símbolo da falência coletiva.

Que espanta, assim, que a cadeia das mentiras e das contradições individuais ou coletivas tenha aumentado em cada passo?

[…]

A continuar assim, a pouco e pouco deslaçados a confiança, o respeito mútuo e a disciplina moral, o que nos espera?

 

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