Selecção de Júlio Marques Mota
A quantitative easing de Draghi: uma saída da crise ou o último prego a pregar no caixão da Europa ?
Tudo o que se quis sempre (ou nunca se quis) saber sobre a flexibilização das restrições quantitativas (Quantitative easing)
JOHN CASSIDY, All You Ever (or Never) Wanted to Know About Quantitative Easing
The New Yorker, 22 de Janeiro de 2015
Nota Introdutória
A propósito do texto de John Cassidy sobre a Quantitative Easing de Mário Draghi
Um bom texto, mas de um crente na eficácia relativa de Draghi, apesar de reconhecer que a QE de Draghi é o Natal para os banqueiros. Mas é um texto que merece ser lido, apesar das muitas discordâncias que tenho relativamente ao que é afirmado nos últimos parágrafos.
Júlio Mota
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1. Tudo o que se quis sempre ( ou nunca se quis ) saber sobre a flexibilização das restrições quantitativas ( Quantitative easing )
JOHN CASSIDY
Num último e derradeiro esforço para impedir que uma economia europeia já deprimida caia numa verdadeira espiral deflacionista, o Banco Central Europeu anunciou hoje um programa de 1,1 milhão de milhões de euros na política chamada de flexibilização das restrições quantitativas (a quantitative easing). Mas o que é que isto significa exactamente? Na minha opinião, a maioria das pessoas não têm a mínima ideia do que seja a quantitative easing , apesar desta ter estado já a ser aplicada nos Estados Unidos , no Reino Unido e no Japão. Refresquemos então as ideias à volta do que é a quantitative easing.
O que é então a quantitative easing?
A quantitative easing é basicamente o Natal para os mercados financeiros, com o seu banco central – neste caso o BCE . — no papel de Santa Claus. Utilizando o seu poder de criar dinheiro com um toque no teclado do seu computador, o banco central entra nos mercados e compra vastíssimas somas de obrigações do Estado e, às vezes, outros tipos de títulos, tais como obrigações emitidas por entidades privadas. Esta dinamização, este aumento na procura de títulos pela parte do banco central faz com que o preço dos títulos aumente o que, mecanicamente, se traduz numa queda nas taxas de juro. Por sua vez, isto baixa o custo dos empréstimos, estimula a despesa pela parte das empresas e das famílias, o que ajuda a tirar a economia da sua trajectória depressiva. Isto é a teoria, simples.
É isso legal? Criar o dinheiro como Santa Claus cria brinquedos?
É verdade, é legal. Uma das coisas maravilhosas acerca dos bancos centrais é o seu poder de emitir o dinheiro a partir do nada. Nos velhos tempos, faziam-no utilizando as rotativas. Hoje, a maioria de dinheiro é criado electronicamente. Deixem-nos dizer que o BCE decide comprar um valor de cinquenta milhões de euros em obrigações do Estado alemão na posse do Deutsche Bank, o maior banco comercial na Alemanha. Os traders do BCE inscrevem electronicamente uma ordem de compra no sistema de trading para ficarem na posse das obrigações assim compradas e a conta de Deutsche Bank no BCE é creditada no valor de 50 milhões de euros. Assim mesmo, sem se ver um euro, sem se ver um título! O total em euros da zona euro aumenta assim de cinquenta milhões que ficam à disponibilidade do Deustch Bank.
Porque é que os bancos centrais não fazem isto sempre?
Compram e vendem títulos de curto prazo no que são chamadas as “operações de mercado livre.” Mas não o fazem por tudo e por nada, até pelos altos valores envolvidos na quantitative easing, até porque se preocupam sobre a ameaça da inflação desenfreada. Por outro lado, se o banco cria demasiada moeda o seu valor tende a cair. E a maneira através da qual o valor da moeda cai é com a inflação. Durante os primeiros anos da república de Weimar, o banco central alemão imprimiu enormes quantidades de marcos alemães para pagar as elevadas reparações de guerra que lhe tinham sido impostas pelo Tratado de Versalhes. O resultado foi a hiperinflação. No final de 1923, um dólar valia aproximadamente quatro milhões de milhões de marcos.
Agora a inflação já não é uma ameaça?
Na verdade, não. De facto, a Europa está a enfrentar o problema oposto: o da deflação. No mês passado, os preços na zona Euro estavam mais baixos em 0,2 por cento relativamente à um ano atrás. Isto era devido, na parte, à forte descida dos preços da energia, mas igualmente reflecte também o facto de que a Europa tem estado prisioneira numa recessão, ou quase recessão, e isto desde há vários anos. Bem antes da apresentar em público e desde há meses sempre hesitante sobre como a fazer, Mario Draghi, presidente do BCE , decidiu que era hora de fazer o mesmo que outros bancos centrais já fizeram e de recorrer, portanto, à quantitative easing.
Assim, Draghi preocupou-se com a deflação na Europa. Mas que é que está errado com os preços em queda? Não é verdade que a deflação torna o preço das coisas mais barato? E não é verdade que isto é uma boa notícia para os consumidores?
Às vezes é assim: se as linhas aéreas cortam nas suas tarifas, haverá mais pessoas que podem assim ter recursos para viajar. Mas numa economia tão deprimida quanto a zona Euro, onde a taxa de desemprego é de 11,5% – mais do dobro da taxa de desemprego nos USA- uma queda geral dos preços pode ser desastrosa. Por um lado, quando os consumidores vêem preços cair, têm um incentivo para adiarem as suas compras de valores mais elevados. Porque é que cada um de nós gastaria trinta mil dólares num carro novo agora, se consideramos que em breve se poderá obter o mesmo modelo, novo, por vinte e cinco mil ? Há outros tema: a deflação mantém as dividas em termos nominais fixas, tais como as hipotecas e os créditos bancários, mais ingratos. Se os preços e os salários entram em uma espiral descendente, muitos devedores terão dificuldade em poder satisfazer as suas obrigações. O mesmo se aplica aos governos. Uma vez que muitos países europeus, incluindo Grécia, a Irlanda, e Itália, estão já pesadamente endividados, isto é potencialmente um problema muito grave.
Se o BCE está assim tão preocupado porque não corta nas taxas de juro?
O BCE tem já feito isso mas simplesmente isso não funcionou. Desde o ano passado que o BCE tem a sua taxa de juro de referência fixa em 0,05 por cento, o que basicamente é zero[1]. Para descer mais ainda, Draghi e seus colegas teriam que estabelecer uma taxa negativa, o que significaria que as instituições financeiras que depositam o dinheiro no BCE receberiam em retorno menos do que elas depositaram no BCE . Tecnicamente, é possível fazer isto. Apenas na semana passada, por exemplo, o Banco Nacional da Suíça estabeleceu a sua taxa de depósito em (- 0,75) por cento. Mas há uma preocupação que se deve a que a introdução de taxas de juro no território negativo poderia criar problemas para o sistema financeiro. (Por exemplo, criaria um incentivo para acumular o dinheiro e não o introduzir no sistema.) Outros bancos centrais, quando as suas taxas de juro se aproximaram de zero, preferiram adoptar uma política de quantitative easing.
E como é que tem sido nos outros países?
Em linhas gerais, os resultados foram encorajadores. A QE foi tentada primeiramente pelo Japão, onde a economia tem estado em estagnação desde há mais de vinte anos [2]. O banco central japonês começou por comprar obrigações do Estado em 2001, quando a deflação era uma ameaça grave. O programa japonês ajudou a impedir uma grande queda nos preços, mas o programa não era suficientemente grande para se dar o salto e passar para a situação de inflação. No rescaldo da crise financeira de 2007 e 2008, o Federal Reserve e o Banco da Inglaterra adoptaram ambos maiores versões de quantitative easing . Há algum debate entre economistas sobre os resultados destes programas; os E.U. são o único país que está neste momento a chegar ao fim da sua quantitative easing [mas os Estados Unidos não pressionaram tanto como os outros nas reduções orçamentais e utilizaram o instrumento da taxa de câmbio, possivelmente adicionado de pressões políticas para favorecer as trocas comerciais. Nota de tradutor] . Mas o consenso geral é que reduziram as taxas de juro, ajudaram a dirigir a economia para fora da situação de deflação e deram um impulso pequeno mas significativo ao crescimento económico[3].
Assim, quanto maior melhor é a quantitative easing
Isto é verdade. É assim principalmente pelos sinais que forne aos mercados. Se a quantitative easing é para funcionar, um banco central tem que de algum modo quebrar a psicologia deflacionária e persuadir as pessoas que os preços começarão a aumentar. Para fazer isto, embora, o programa tem que ser grande e sem termo fixo. De facto, o banco tem que se empenhar em manter a criação monetária até que os preços comecem a aumentar. Efectivamente, foi isto que fez Ben Bernanke em 2012[4], quando lançou uma terceira vaga de quantitative easing, a QE3. Porque Bernanke não estabeleceu nenhuma data de fecho para o programa, tornou-se conhecido como “a infinita Q.E.”
E o que Draghi fez agora-lançou um programa europeu de quantitative easing é uma versão europeia da infinita QE americana?
Sim, ou pelo menos assim parece. Num comunicado em que anuncia a nova política, Draghi disse que se pretendia que esta durasse até Setembro de 2016, mas adicionou que “em todo caso seria aplicada até que nós vejamos um ajustamento sustentado na trajectória da inflação que é consistente com o nosso objectivo de conseguir alcançar uma taxa de inflação abaixo, mas perto dos 2%.” Ou seja o programa é um programa sem data limite fixada. Ou, pelo menos, isto é como a maioria das pessoas nos mercados interpretam o texto do BCE.
Irá funcionar?
Isto é uma questão de 1,1 milhão de milhões. Os pessimista dizem que o BCE esteve parado demasiado tempo e permitiu assim que que uma mentalidade deflacionária se tenha pesadamente instalado na economia . Estes economistas sublinham que as taxas de juro na Europa são já muito baixas, e que, mesmo que o BCE gaste sessenta mil milhões por mês na compra de obrigações , não há muita espaço para que as taxas de juro desçam para valores mais baixos. Dado estes problemas, alguns analistas pensam que mesmo a infinita QE não terá muito impacto. Falando em Davos na quinta-feira, Larry Summers, antigo Secretário de Estado do Tesouro, afirmou: “é um erro para supor que a Q.E. é uma panaceia para a Europa, ou que ela será suficiente[5].”
Concorda com Lawrence Summers?
Até certo ponto. Dado a intensidade das forças deflacionárias na zona Euro, o BCE bem pode ter que expandir a dimensão do seu programa. Outras medidas políticas são igualmente necessárias. Sobretudo, seria uma enorme ajuda enorme se os alemães pudessem ultrapassar a sua obsessão com os cortes orçamentais e participassem num grande estímulo orçamental aplicado à escala da Europa. As políticas de austeridade erradas ainda continuam a arrastar à descida a zona euro. Mas, mesmo nestas circunstâncias, a quantitative easing pode ter um impacto. De facto, já está a ter um impacto. Nos últimos meses, os investidores previam este movimento e o euro desceu [ Parece-me discutível- ignorar a questão grega, a fuga de dinheiro a voar pela segurança. Nada disto entra na análise do autor o que lamentamos-nota de tradução]. Na quinta-feira, desceu sob $1,15, e é provável que venha a cair ainda mais. A paridade com o dólar é perfeitamente concebível. A sua descida aumentará os preços no espaço europeu, o que é necessário quando se está com a deflação bem presente, e dará um impulso às exportações europeias, que devem ajudar a estimular o crescimento
É tudo? BMW venderá um pouco mais dos seus modelos de luxo e Hermès[6] venderá um pouco mais dos seus lenços caríssimos?
Não. O que é talvez o mais importante é o impacto psicológico da acção de Draghi. Durante os últimos anos, tudo se passou como se a zona euro não funcionasse, como se esta estivesse envolta num manto de mal-estar de que não há nenhuma saída. Com este quadro mental a funcionar, os empresários estiveram relutantes em fazer novos investimentos em capital, os consumidores estiveram relutantes em consumir, e os bancos estiveram relutantes em emprestar.[ Com um consumo em baixa, com as políticas de austeridade e de desregulação a coloca-los em baixa ainda mais e com a desregulação a lançar nuvens de incerteza quanto ao futuro pessoal e familiar de cada cidadão, quem é que se aventura a novos investimentos? Não compreendo como é que não é aqui levantada a questão da insuficiência na procura agregada. Nota de tradutor] Na linguagem dos economistas keynesianos, a Europa tem estado bloqueada “ numa situação de equilíbrio de sub-emprego .” A única instituição que tem gerado esperança na crise europeia foi o BCE, que tem alguma independência relativamente ao poder político. E agora, finalmente, o BCE está a fazer tudo para fazer andar as coisas. Se tudo correr bem, isto inspirará confiança [ mas confiança em quem? Mas sai-se de uma crise com esta profundidade apenas por uma questão de ter fé de que amanhã vai ser um dia melhor? Como assinala um autor italiano, a QE de Dragi tal como ela está definida é um prego, o último, a ser pregado no caixão de cada país em dificuldade. Nota de tradução. “Nós temos visto ao longo dos últimos anos que “têm de confiar em Mario,” disse Laurence Fink, director-executivo da empresa de investimentos BlackRock, . Fink estava a falar para os investidores mas os seus comentários aplicam-se também a todos os europeus.
JOHN CASSIDY, All You Ever (or Never) Wanted to Know About Quantitative Easing, New Yorker, 22 Janeiro de 2015.
Texto disponível em:
http://www.newyorker.com/news/john-cassidy/quantitative-easing-dummies
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