Selecção e tradução por Júlio Marques Mota
Itália – Governo, balanço de fim de ano[1]
por Paolo Pini e Roberto Romano, Governo, bilanci di fine anno
in sbilanciamoci.info, 16 de Dezembro de 2014
Do Jobs Act à Lei de Estabilidade de 2015, passando pela presidência italiana do semestre europeu, o balanço da acção governamental ao fim de 10 meses é mesmo muito fraco. Na Itália são necessárias medidas para uma política redistributiva. A terem que ser iniciadas por uma intervenção sobre o sistema fiscal que introduza progressividade e por uma reclassificação da despesa pública
O balanço da política económica do governo Renzi é muito fraco. Ao fim de quase 10 meses de governo, e depois de tantos anúncios, poucos são os resultados e não são poucos os erros, a acção económica do governo não só não fez mudar a posição daqueles que desde o início o contestam, e isto pode ser evidente, embora se possa sempre contar com algumas mudanças de opinião, mas sente-se uma mais profunda desilusão naqueles que tinham dado um enorme crédito a Renzi quando este destituiu o ineficaz Enrico Letta. Mas hoje há muita gente que lamenta o precedente governo. No outono do 2013, a Lei de Estabilidade de 2014, elaborada do Governo Letta estava centrada no respeito pelos constrangimentos previstas nos Tratados europeus, e não no crescimento do rendimento e do emprego. Isto, apesar de a Comissão Europeia não ter dado “luz verde”, enquanto não estivesse garantida a redução da dívida de curto e de médio prazo. A proposta governamental não era considerada satisfatória pelos tecnocratas europeus porque não era coerente com as políticas de rigor e de austeridade. Contudo esta posição não satisfazia os parceiros sociais que pediam intervenções não simbólicas para a redução estrutural e selectiva do cuneo fiscale[2], e por conseguinte para o crescimento e o emprego. O governo previa então um crescimento do rendimento de 1,1% para 2014, mas para atingir este resultado não se vislumbrava qualquer política económica assente em recursos económicos reais. Em dezembro de 2013 o Parlamento aprovava a Lei de Estabilidade, mas o país nas sondagens não mostrava ter confiança em Letta.
O governo de Renzi
No início de Janeiro, Renzi anunciava o Jobs Act com vista a favorecer o crescimento e ao emprego e pedia para que se mudasse de atitude, em Itália e na Europa. O trabalho era colocado no centro das novas medidas, assentes em dois pilares: (a) uma política de trabalho para reduzir a dualidade entre os trabalhadores protegidos e os excluídos tanto do trabalho como do mercado; (b) uma política económica e industrial para voltar a dar competitividade ao sistema produtivo e às empresas italianas. Visava conseguir (a) um contrato com protecções crescentes capaz de alargar garantias de mercado a quem não as tinha; conseguir (b) uma política económica que superasse os anacrónicos diktat europeus, reduzisse estruturalmente o cuneo fiscale, a tributação sobre o trabalho e as empresas, e pusesse em prática uma política industrial para o made in Italy.
Em Fevereiro, Renzi substituía Letta no governo, e preparava-se para a partir de Julho presidir ao semestre italiano da União Europeia. As eleições europeias de maio em Itália, dariam de seguida ao PD de Renzi 40% dos votos, mas uma percentagem igualmente significativa de 40% de abstencionistas, legitimando em parte o seu papel de Primeiro-Ministro e de chefe do partido mais votado. Prosseguia assim com os melhores auspícios a acção económica do governo, embora com muitos problemas.
Cuneo fiscale
O bónus de 80 euros para os trabalhadores por conta de outrem durante 8 meses em 2014 não foi estrutural, foi financiado com cortes na despesa pública e aumentos dos impostos, e também com coberturas incertas; excluiu as categorias sociais mais necessitadas, o trabalho temporário e os trabalhadores autónomos emquem se concentra a precaridade, os desempregados, os reformados, os que já se encontram na pobreza ou em risco de pobreza. Não se quis intervir sobre as deduções fiscais e taxas marginais sobre os rendimentos para reintroduzir a necessária progressividade no sistema fiscal, embora o governo disponha do instrumento “delega fiuscale”. A redução do Irap (Imposta regionale sulle attività produttive – Imposto regional sobre as actividades produtivas) prevista em cerca de 10%, em 2014 e 2015, de modo generalizado para todas as empresas acabou por revelar-se incerto devido a coberturas desadequadas, entre entradas sobrestimadas de transacções financeiras e uma intenção de despesa não verificada. Os efeitos destas intervenções sobre a economia foram nulos, confirmando as perplexidades que, a propósito, o Banco de Itália tinha manifestado sobre as coberturas e os efeitos sobre o consumo das famílias e investimento das empresas. O Def de abril de 2014 ainda previa um crescimento do PIB de 0.8% em 2014, induzido por investimentos privados e exportações, ao passo que continuava a diminuição do investimento público. Era o legado espiritual de Saccomanni-Letta, embora com a assinatura de Padoan-Renzi. Enganadoras previsões, como se previa, e aliás tinham avisado o FMI, a OCDE, o BCE, a CE. Continua a depressão: o PIB de 2014 diminui 0,3% relativamente a 2013, as exportações líquidas enfraquecem, devido à contenção das importações, os investimentos públicos baixam, os investimentos privados continuam a cair apesar da descida do Irap, e o consumo privado estagna apesar dos 80 euros (do cuneo fiscale). O rendimento volta ao nível de 2000, após 7 anos de crise.
Jobs Act 1.0
Em vez de introduzir o contrato com garantias crescentes, desmatando ao mesmo tempo a floresta das tipologias contratuais, e consequentemente eliminando o actual supermercado, preferiu-se os contratos a prazo e estágios de formação, dando uma má resposta à exigência de simplificação. Com o decreto Poletti, a simplificação foi assumida como liberalização e menos formação, e o contrato a tempo indeterminado arrisca tornar-se de contrato predominante a contrato residual. Estas medidas, de resto, são análogas às que, desde o final dos anos de 1990, aliaram doses crescentes de desregulamentação do mercado de trabalho à progressiva estagnação da produtividade do trabalho.
Política industrial
Esta diz respeito às medidas económicas ainda não postas em prática, a não ser que se considere que seja sinónimo das privatizações de que Lettta se comprometera com a Comissão Europeia em novembro de 2013 para tornar aceitável a sua Lei de Estabilidade. A partir do governo Renzi nunca foram elaboradas ideias para uma política industrial para os sectores estratégicos, quer os tradicionais/maduros, quer os inovadores, para operar inovações nos processos e nos produtos, na organização e na qualidade do trabalho, nas tecnologias verdes e no conhecimento, para a protecção e salvaguarda do território, factores cruciais para para combater a estagnação da produtividade que trava tanto a competitividade com o aas remunerações dos trabalhadores. São necessários investimentos públicos. Não chega a redução do cuneo fiscale, apesar de esta poder ter sido mais bem pensada para orientar as empresas para investimentos em inovação e investigação. Mas o governo nem isto quer fazer, porque não acredita na política industrial mas apenas na via salvífica da reposição da confiança no mercado, e sobretudo nos investimentos estrangeiros.
Jobs Act 2.0
A introdução do contrato com garantias crescentes ocorrerá sem a diminuição das tipologias de contratos de trabalho não padronizados. O novo contrato acresce à multiplicidade de existente, expandindo o “supermercado”. Para o novo contrato faltam variações das garantias crescentes, calendarização da sua introdução, prazo final de transformação em contrato-padrão. A novidade relevante já ocorreu, eliminando a “condicionante” no contrato a prazo e permitindo prorrogações ad libitum através da modificação da actividade desenvolvida. Por outro lado, procedimentos, até recentes, que incentivam a redução de contribuições evidenciam escassa eficácia na criação de novos empregos, favorecendo pelo contrário a substituição de contratos. A diminuição de contribuições com prazo fixo no terceiro ano e não vinculada ao aumento do emprego, juntamente com a indemnização crescente por despedimento, arrisca transformar à nascença o novo contrato com garantias progressivas num continuum infinito de múltiplos contratos a prazo. Por outro lado, a extensão dos estabilizadores sociais é ilusória. De facto, não se precisa quais as potenciais categorias de trabalhadores abrangidas, nem a duração da cobertura, ou os recursos disponíveis. Não são protegidas as categorias mais débeis: são excluídas áreas significativas de trabalho parasubordinato e independente. O nexo previsto entre duração dos estabilizadores e antiguidade de serviço reproduz o dualismo que se quer eliminar. O modelo welfare to work presta-se a riscos previsíveis de trabalho forçado, em troca de um subsídio e não de uma relação de trabalho. Sabemos que um sistema de protecção económica universal precisa de 10 a 20 mil milhões anuais. Isto deveria articular-se com políticas activas de mão-de-obra, campo em que Itália dispende recursos económicos e humanos exíguos relativamente à média europeia. O gap entre recursos disponíveis e necessários é colossal e não permite de facto a flex-security que se desejava introduzir. A migração da protecção de um trabalhador das garantias sobre o posto de trabalho para as garantias de mercado narrisca-se a ser na verdade altamente ilusória para muitos dos potenciais beneficiários.
A Lei de estabilidade de 2015
Em outubro de 2014, a Nota al def 2014 fotografou simplesmente o estado de depressão, tornou credíveis as previsões do PIB de 2014, suscitou reticências às de 2015, tanto mais que o Banco de Itália considerou que o crescimento previsto, embora modesto, peca por demasiado optimismo. Este é o pnto de partida da Lei de estabilidade de 2015. Mas esta parece mais uma aposta do que um programas económico de governo. Não só se efectua uma redistribuição da procura entre componente pública e componentes privadas, sem garantir uma procura acrescida, mas nais relevante é ter-se uma substituição da procura certa por uma procura incerta. O governo anuncia uma grande acção de confiança colectiva dirigida a famílias e a sobretudo empresas, com o refrão de menos impostos sobre o trabalho. Joga-se tudo na retoma dos animal spirits dos empresários apoiados por um governo que pretende des-legislar sobre tudo e mais alguma coisa, do Sblocca Italia ao Jobs Act. Devr-se consumir e investir tudo o que se aforrou durantes os anos de crise, talvez recorrendo ao endividamento se for necessário, e se os bancos o consentirem. As empresas deveriam empregar inúmeros trabalhadores com o discount, graças a contribuições iguais a zero e à facilidade de despedimento num prazo de três anos; garantirá o contrato com garantias crescentes previsto do Jobs Act 2.0. A política económica do governo alimenta-se da desconfiança relativamente à função do estado e precisamente à esfera pública como sujeito institucional capaz de manter em tensão a procura efectiva. Keynes está arrumado no sótão. A sua ideia era que o Estado interviesse para fazer coisas que os privados não fazem, e durante a crise são muitas as coisas que os privados não fazem: investir, por exemplo. Mas para Renzi o Estado deve retrair-se, mesmo durante a crise, e deixar fazer aos privados. O problema é a filosofia de fundo que guia a acção do governo. O próprio Jobs Act é o espelho fiel das políticas do governo: “Nós criamos as condições para o crescimento, vós dais-nos uma ajuda com o investimento”. Mas deixar hoje a solução dos problemas aos chamados “capitães corajosos” é uma aventura perigosa. Faria sentido se tivéssemos um capitalismo de “vistas largas”, mas a indústria italiana há anos que dá provas de ter “vistas muito curtas”. Ao mesmo tempo, enquanto o governo prevê para 2015 um crescimento de 0,6%, a OCDE prevê uns magros 0,2%.
Semestre europeu
O governo italiano parece festejar a decisão do programa Juncker sobre o Fundo Europeu para os Investimentos (Efsi) que transforma em três anos 21 mil milhões de euros em 315-410 mil milhões com um efeito de alavancagem do mercado de 15-20 mil milhões, o que soa a magia. É falso que isto seja “um genuíno New Deal europeu”. Dos 21 mil milhões, 16 vêm de fundos europeus, de que só 8 são garantidos por financiamentos já existentes (Horizon, Connecting Europe, fundos que sobraram do orçamento), e 5 do BEI. De seguida, o mercado faria o milagre de multiplicação dos pães e dos peixes. Enquanto se corta o orçamento plurianual para um valor abaixo de 1% do PIB europeu, reabre-se o tema dos investimentos mas sem mencionar os Eurobonds. Para que fossem credíveis os 300 mil milhões era necessário que o BCE comprasse obrigações, no mesmo montante, emitidas pelo Fundo, por sua vez garantidas pelos estados da Eurozona, dado que não existe um verdadeiro orçamento público europeu. Além do mais, seria necessário uma “monetarização” da dívida dos estados que se comprometessem a apoiar (directamente) o plano de investimento. Seria preciso pôr na ordem do dia duas intervenções ainda mais ambiciosas: o plano PADRE (reestruturação das dívidas públicas dos países-membros no que excede os 60%, com compra por parte do BCE, e transformação em títulos sem juros pagos no longo prazo com proventos oriundos da seignorage de cada país), e um subsídio europeu de desemprego que substituísse progressivamente as medidas nacionais. O Banco Central Europeu lança avisos de alarme, anuncia intervenções não convencionais, clama por uma política orçamental adequada, mas a Comissão Europeia está prisioneira de uma ideologia e repudia Keynes, quando a Europa perdeu 1000 milhares de milhões de euros na crise. Charles Wyplosz declarou: « O plano não fará nada pelo crescimento. É só uma desculpa para continuar a levar a cabo políticas de austeridade. Achamos desconcertante que as autoridades europeias se recusem a implementar uma verdadeira expansão orçamental ». O governo Renzi talvez tenha seguido uma estratégia errada. Em primeiro lugar, assegurou o total respeito das condições europeias por parte da Itália, de seguida solicitou margens residuais de flexibilidade do orçamento garantindo em contrapartida reformas estruturais (o Jobs Act) que terão efeitos depressivos, por fim negociou cortes na Lei de Estabilidade no valor de 4,5 mil milhões de euros, sem que por tal a Comissão Europeia tenha assegurado um parecer positivo definitivo adiando-o para a avaliação de Março de 2015 porque subsiste o « risco de não conformidade » com o Pacto de Estabilidade. Negociar a baixa não parece ser a estratégia ganhadora, se o resultado for não ter margem para uma política de crescimento em Itália, e tão-pouco para uma acção credível para investimentos públicos na Eurozona.
Conclusão
O balanço da acção do governo ao fim de 10 meses é muito magro. Não esperávamos milagres porque os problemas são tantos, mas decerto com proclamações não se vai a lado nenhum. Se, além disso, contabilizamos os erros, para que tinha sido posto de sobreaviso, não se pode declarar isento de culpas. Na verdade, o melhor seria Virar já a página ! se não quisermos em 2015, na Itália e na Europa, ir contra uma parede. Para evitar isto, seriam precisas fortes medidas económicas. E seria precisa mais democracia. Na Europa são precisas medidas para uma reestruturação das dívidas dos países da União com uma intervenção do BCE, para uma séria política de investimentos públicos com fundos próprios do orçamento europeu que devia aumentar até 3-5% do PIB comunitário, para uma harmonização fiscal com vista a uma redução das vantagens nas tributações nacionais que produzem evasão fiscal e movimentos dos capitais e dos lucros entre países que partilham a mesma moeda, para introduzir uma segurança social universal, a começar por um subsídio de desemprego para quem não tem trabalho e um rendimento mínimo garantido para quem corre risco de pobreza ou para quem já é pobre.
Em Itália, são necessárias medidas para uma política redistributiva, a começar por uma intervenção no sistema fiscal que introduza progressividade e um combate estrutural na evasão fiscal, para uma requalificação na despesa pública que alie um corte nas despesas improdutivas e tóxicas com maiores investimentos em inovação, investigação, instrução, tecnologias verdes, para a salvaguarda do território e do património natural, medidas para combater o desemprego inclusivamente com um plano de serviço cívico.
Não se trata de políticas futuristas. São medidas económicas concretas de interesse colectivo que podem promover crescimento e sustentabilidade, para retomar a via de um bem-estar colectivo à escala supranacional que evite o fim traumático da Europa e o colapso de Itália.
(16 de dezembro de 2014)
[1] Agradecemos ao colega de profissão e amigo de longa data, Joaquim Feio da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, a revisão atenta da tradução deste texto.
[2] Nota de Tradução. Solicitámos ao economista Mario Pianta (Università degli Studi di Urbino “Carlo Bo” ) que nos desse uma explicitação curta do conceito cuneo fiscal. Ei-la :
cuneo fiscale (fiscal wedge) é a diferença entre o custo do trabalho total para as empresas e o salário líquido dos trabalhadores e nesta diferença estão o imposto directo sobre os trabalhadores, a contribuição para as reformas e outros encargos fiscais.
Nos últimos anos a política tem sido a de reduzir o cuneo fiscal baixando o custo para as empresas sem com isso aumentar o salário líquido, em que as cargas passam para o campo da fiscalidade geral.
________
Ver o original em:
http://www.sbilanciamoci.info/Sezioni/globi/Governo-bilanci-di-fine-anno-27612