A IDEIA – O GRUPO DO CAFÉ GELO E A PIRÂMIDE – Entrevista a Carlos Loures – por António Cândido Franco

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Nota – Na foto: CL em 1961, Esta entrevista conduzida por António Cândido Franco foi publicada no número duplo 73/74 da revista de Cultura Libertária A IDEIA, Outubro de 2014.

003[Carlos Loures nasceu em Outubro de 1937 e fez parte da geração que tomou o café Gelo como abrigo na segunda metade da década de 50 do século XX e nos primeiros anos da seguinte. Coube-lhe a responsabilidade de coordenar, com Máximo Lisboa e Sena Camacho, este apenas no segundo número, os três números da revista Pirâmide (1959-1960), uma das manifestações escritas do Café Gelo e uma das raras publicações do surrealismo em Portugal. Quando se fala da geração do Café Gelo o testemunho de Carlos Loures é pois intorneável. Quisemos registar o seu depoimento, que acreditamos valioso para a história da época. O registo deve ser complementado com o testemunho escrito que o autor deu a Daniel Pires (Dicionário da imprensa periódica literária portuguesa do século XX (1941-1974), vol. II, 1.º tomo, 1999, pp. 361-62) e que foi já referido no número anterior desta revista por Manuel Simões. Carlos Loures estreou-se com um livro surrealista, Arcano Solar (1962), mas fez depois uma obra marcada pelo realismo. A assinalar a viragem ficou polémica com Mário Cesariny no Jornal de Letras e Artes (1966).]

Fez 20 anos em 1957, numa altura em que a tertúlia do Café Gelo se reunia já na parte ocidental do Rossio. Porquê a sua chegada ao grupo?

Guiando-me pelas datas das dedicatórias em livros, a mais antiga é de Cesariny, Alguns mitos maiores…, Julho de 1958; a segunda, datada de Setembro de 1958, é de Ernesto Sampaio em Luz Central. Em 1959, 60, 61, há muitos livros dedicados. Creio que terá sido já em 1958 que fui apresentado ao grupo, talvez na Primavera. Em Maio, estive com Ernesto Sampaio na campanha de Delgado e já nos conhecíamos do Gelo. Julgo ter sido o João Fernandes Gonçalves quem me apresentou ao Cesariny e a outros elementos do “grupo”. E levanto uma questão – não sei se será correcto designar por “grupo”, aquele conjunto de pessoas que bebia café no Gelo.

Qual era o papel de Cesariny nos encontros?

O Cesariny era a incontestada personalidade tutelar. Numa época em que a homofobia não era considerada uma posição politicamente incorrecta, em que o termo nem sequer existia, toda aquela comunidade, maioritariamente hetero, nutria um profundo respeito por Mário Cesariny de Vasconcelos.

 Como era o Luiz Pacheco que conheceu nesse tempo?

O Luiz Pacheco era, aos olhos dos mais jovens, a imagem viva da transgressão. Empregado na Inspecção de Espectáculos, lembro-me de o ver de gravata que era um adereço obrigatório para quem trabalhava em “locais respeitáveis”. Pois o Pacheco, engravatado e penteadinho, aparecia por vezes, vindo do emprego, com sapatilhas…

Que lembranças tem de Raul Leal, que viria a morrer em 1964?

Um homem perdido num labirinto, ou melhor, Raul Leal parecia-nos perdido, mas nós é que nos perdíamos no seu labirinto. Ele percorria-o com grande segurança. O paracletianismo, o Terceiro Reino Divino, o advento do Quinto Império, era um sistema filosófico, religioso, científico… de que se afirmava profeta. Enunciava tudo de memória. Era uma figura desfasada do conjunto, pois a posição política dominante era progressista e Raul Leal defendia um plano de salvação do mundo em que os norte-americanos assumiam um papel preponderante. Uma tarde, quando Raul Leal, como quem acciona um gravador, começou a recitar a sua prédica, o João Rodrigues, levantou-se e saiu. Passada uma boa meia hora reentrou e do cimo da escada da 1º de Dezembro ouviu e comentou – “Ah, ele ainda vai na serpente…” – e voltou a sair.

Pedro Oom aparecia nas reuniões do grupo? E Manuel de Lima?

O Pedro Oom não aparecia ou aparecia muito raramente. Foi já a partir de 1972 ou 1973 que tive um convívio grande com ele e nos envolvemos, juntamente com um grupo de que fazia também parte o Forte e o Adriano de Carvalho, num projecto de uma comuna, uma espécie de falanstério. Ideia do Pedro. Almoçávamos semanalmente num restaurante da Rua João Crisóstomo e íamos aperfeiçoando o projecto. Chegámos a ir ver terrenos. Mas houve o 25 de Abril, o Pedro morreu e a comuna não foi por diante. O Manuel de Lima, sim, aparecia. Tocava na orquestra de um dos teatros do Parque Mayer. Era muito formal, muito contido – um contraste absoluto com a sua escrita.

Havia relações com Natália Correia?

Não me lembro de ver a Natália no Gelo. O Manuel de Lima, o Cesariny, o Pacheco, eram pessoas com quem ela convivia. Fui-lhe apresentado em Alfama, num arraial de Santo António e raramente tive ocasião de a ver depois.

Que recordação tem de Manuel de Castro, a quem dedicamos parte deste número da revista A Ideia?

Um grande amigo com quem tive alguns conflitos, mas também uma grande, uma profunda estima. Os conflitos tinham a ver com uma certa animosidade contra o facto de, sendo um recém-chegado ter tido o descaramento de editar uma revista – era uma animosidade que todos os membros do grupo, mais ou menos, manifestavam. O Manuel, mais do que os outros, verbalizava-a. Mas aos poucos foi diluindo-se e mesmo depois do anátema lançado pelo Cesariny, a amizade manteve-se e em alguns casos aumentou – casos do Forte, do Virgílio Martinho, do Pacheco e do Manuel. Visitávamo-nos e lembro-me de um almoço memorável em minha casa perto de Carcavelos, com o Renato Ribeiro, o Benjamim Marques e o Manuel de Castro e as respectivas companheiras.

E o Ernesto Sampaio desses anos que impressão lhe deixou?

Uma grande cultura e uma grande delicadeza. E uma inusitada posição de esquerda militante. Inusitada porque a recusa liminar do neo-realismo, como se sabe, vinculado a uma corrente política, levava Cesariny a assumir uma postura mais “aristocrática”, condenando o salazarismo, mais pela sua estupidez do que pela sua crueldade social e política. Pois Ernesto Sampaio, talvez o mais erudito frequentador da tertúlia, assumia a sua posição antifascista sem se preocupar com a opinião dominante. Aliás, essa posição de esquerda, sendo ali minoritária, não era única – o Forte, o Virgílio Martinho, entre outros, compartilhavam-na.

Como avalia a obra de João Rodrigues, outro membro do grupo?

Um grande talento, um grande sentido de humor. Um desenhador de grande subtileza e ironia.

Não se pode falar do grupo do café Gelo sem trazer à conversa a revista Pirâmide (1959-1960), onde o grosso dele colaborou. O Carlos foi um dos responsáveis da publicação. Como surgiu a ideia de a fazer?

A juventude tem o direito a uma certa ignorância, a ignorância é arrogante, a arrogância é imprudente. Para quem tinha vinte anos, com a presença de tantos escritores num grupo, era evidente que a publicação de uma revista se impunha. Ainda ninguém formulara a ideia e, lembro-me de em conversa com o Cesariny, na presença do Forte e do Virgílio Martinho (por acaso, não no Gelo, mas creio no Terminus), lhes dei conta do projecto que já tinha formulado com o Máximo Lisboa – o de reunir numa revista a colaboração de toda aquela gente. Não tínhamos sequer ideia de que título devíamos pôr e foi o Cesariny quem se lembrou de Pirâmide pelas evidentes ligações do surrealismo ao esoterismo da civilização egípcia.

Como foram as relações da revista com a censura?

Não houve relações. Na verdade, escudados na forma legal de “publicação não periódica editada pelos autores”, não fomos incomodados. Não faltaram denúncias e apelos à intervenção policial, mas o aparelho repressivo tinha mais com que se preocupar. Os intelectuais do regime sabiam descodificar e pôr a nu a praxis que, em alguns textos, existia sob a tessitura formal. Mas a Censura e a PIDE sabiam que as pessoas em geral eram incapazes de proceder a essa hermenêutica.

Houve ligações da revista com o jornal Planície, de Moura, em que o Carlos também colaborou?

Colaborei por ser amigo e colega do Afonso Cautela. Relações entre a Pirâmide e a Planície não chegou a haver. Creio que o Cautela era um dos autores que prevíamos para um número quatro que nunca chegou a sair.

Alfredo Margarido colaborou em Pirâmide (3) com uma nota sobre Edmundo Bettencourt. Conheceu-o no Gelo?

O Margarido não parava no Gelo, ou ia lá muito raramente. Creio que foi o Manuel de Castro quem mo apresentou. Era a tertúlia do Restauração. Tornámo-nos muito amigos.

 Edmundo de Bettencourt também aparecia? Que recordações tem dele?

Foi a primeira pessoa que me falou no José Afonso. Uma pessoa de uma cultura brilhante e que era de uma modéstia comovente.

 Como vê as obras de Virgílio Martinho e de António José Forte, dois importantes colaboradores de Pirâmide e dois do Gelo?

Poeticamente muito diferentes. Com toda a subjectividade que a apreciação implica, diria que o António José Forte era um grande poeta e que a obra de Virgílio Martinho, resulta sobretudo de um esforço de militância literária e política.

 Qual o lugar de Herberto Helder, outro importante colaborador da sua revista, na poética do grupo?

O grande talento do Herberto era uma evidência. Logo no primeiro livro (O Amor em Visita) se viu que era um grande poeta e, embora não houvesse tronos, o Herberto era um elemento do grupo, merecedor de grande respeito e que se caracterizava pelos discursos irados que fazia à mesa do Gelo. O seu talento era evidente, mas não se supunha que iria construir uma obra tão consistente. Na minha opinião, o Herberto é o mais importante poeta português – pós Pessoa (e não me estou a esquecer de ninguém). Seria bom para a história do surrealismo português integrá-lo na corrente. Porém a sua poesia é demasiado excelente para ser acorrentada. Respondendo sucintamente à pergunta – não, ninguém supunha que o Herberto viesse a assumir a posição que assumiu. Alguém disse (não me recordo quem) que ele gastava o talento em conversas de café. E parecia ser verdade. Parecia.

 José Carlos González foi um dos do Gelo, além de ter colaborado na Pirâmide com uma colagem de palavras. Como o recorda?

Tinha graça, era um blagueur. Cantava bem. Orgulhava-se da sua ascendência galega. Mas a partir de Ísis ou o Cérebro da Noite, não li mais nada dele. Sei que teve uma actividade importante na organização de espólios de diversos escritores, mas, a partir de fins de 1961, quando saí de Lisboa, deixámo-nos de nos dar.

Quer lembrar mais alguém?

Sim. O Granjeio Crespo. O Gonçalo Duarte e o João Vieira que tinham o atelier num andar de cima. O Saldanha da Gama, o João César Monteiro que por ali aparecia raramente. O João Fernandes Gonçalves e o Benjamim Marques, meus ex-colegas do Ateneu. O Vasco de Castro, com quem me encontro, embora sem grande frequência…

O que me pode dizer do D’ Assumpção, dos raros plásticos a colaborarem n’ A Pirâmide (n.º 2) – ao que lembro nem sequer o João Rodrigues ou o Benjamim Marques lá aparecem?

Já referi a animosidade que a edição da Pirâmide provocou entre a generalidade dos frequentadores do Gelo. Embora com pequenas tiragens, a revista causou sensação no meio literário nacional. Esse sucesso provocou uma irritação ainda maior. O “golpe” que o Pacheco liderou contra a direcção exercida pelo Cesariny no primeiro número, radicalizou a animosidade dos mais fiéis “cesarinistas” e trouxe-nos um acréscimo de apoio do grupo politicamente mais radical. O João Rodrigues nunca escondeu a sua oposição frontal à revista – com alguma razão acusava-nos de indefinição. O Benjamim Marques manteve uma posição idêntica – quando a revista já não se publicava, juntou-se ao nosso grupo – aos que, tendo como base a tertúlia do Restauração, já não se acolhiam à sombra do surrealismo – embora sem rejeitar. Se a revista tivesse continuado, tenho a convicção de que o Benjamim se teria juntado a nós – Renato Ribeiro, Manuel de Castro, Forte, Virgílio, Herberto, Margarido, Bettencourt…

O D’ Assumpção estava à margem das pequenas guerras. Convidámo-lo e ele aceitou. Fui ao Porto “promover” o número 2 da revista e numa reunião em casa de Jaime Isidoro apareceu o D’ Assumpção que estava a viver episodicamente por ali, lembro-me que na Rua da Torrinha. Houve um grande silêncio, porque, quase coincidindo com a publicação da revista, fora-lhe atribuído o Prémio de Pintura do SNI. O facto de o ter aceitado transformou-o num leproso. Todos o ignoraram. À falta de melhor, veio direito a mim e eu não tive coragem para não lhe falar. Fingindo não ligar ao nosso diálogo, os ouvidos estavam atentos. Tendo eu dito qualquer coisa no género – “Você podia ter-nos avisado de que tinha concorrido”, o D’ Assumpção explode em soluços dizendo repetidamente “Os senhores é que são os puros, eu sou um traidor” (não sei se as palavras foram exactamente estas – o sentido, sim). Eu não sabia o que fazer, não fui capaz de lidar com a situação. O Forte salvou-me. Abraçou o D’ Assumpção e ralhou-lhe – “Não faças fitas pá. Não és nenhum traidor, és é maluco”.

Quem era Marcelo Sousa que fez a capa dos dois primeiros números de Pirâmide e se responsabilizou pela orientação gráfica dos dois?

Marcelo Sousa nada tinha a ver com o Gelo. Estudante de Arquitectura, pertencia a uma tertúlia que se encontrava no Pão de Açúcar, um café da Alameda, e que por vezes derivava para o Império ou para o Continental, onde se jogava xadrez. Foi uma prova de força – quisemos demonstrar que embora os artistas plásticos do Gelo não tivessem aderido, não nos faltavam recursos. Cesariny, que ensaiava as primeiras incursões na pintura, teria feito a capa do primeiro número. Mas os seus trabalhos exigiriam selecções de cor, impressão a quatro cores – viviam da cor. Isso encareceria o custo de execução gráfica de uma forma incomportável para as nossas finanças.

 Na primeira página do terceiro número de Pirâmide informa-se que um quarto número está já no prelo com colaboração de Vieira da Silva, Rosa Colaço, Natália Correia, António José Forte, José Manuel Simões e Isidore Ducasse. Que sucedeu para o quarto número, então no prelo, nunca aparecer? Ainda conserva esse material?

Não chegámos a reunir o material e, provavelmente, não teríamos conseguido obter tudo o que estávamos a prometer. Lembro-me que a Natália disse ao Pacheco que colaboraria e a Vieira da Silva mandou um recado no mesmo sentido por alguém ligado ao grupo de Paris (João Vieira, Gonçalo Duarte…). Os outros nomes estavam mesmo assegurados – incluindo o Isidore Ducasse…

 O que foi (e é) para si a geração do grupo do Café Gelo?

Bem, vou explicar a reserva que coloquei à designação de “grupo”. Note que se tratava de várias gerações e de várias opções estéticas. De posições políticas variadas, embora maioritariamente anti-salazaristas. Mas até gente de extrema-direita por ali parava, como, por exemplo, o Goulart Nogueira, do Tempo Presente, a revista dirigida por Fernando Guedes e que provocatoriamente se despedia por vezes com a saudação fascista. Não se pode ver o Gelo como a Academia de Platão onde se ia aprender. Houve um núcleo mais consistente. O Herberto, o Forte, o Virgílio Martinho, o Ernesto Sampaio… Mas se virmos bem, poeticamente nada têm a ver uns com os outros. Acho que todos eles teriam feito os seus percursos, sem o Gelo. No Gelo, dormitava-se, discutia-se política, lia-se um poema acabado de escrever, lia-se o jornal… havia grandes silêncios. E o discurso do divino Paracleto que Raul Leal não se fazia rogado para debitar. Ao fim da tarde, aparecia o Luiz Pacheco, com o seu saco de livros que vendia (e oferecia) e era sempre um momento especial, a tal nota de transgressão que o Pacheco trazia colada.

Como num aeroporto se cruza gente com vários destinos, o Gelo foi o ponto de encontro de pessoas que queriam ir para lugares diferentes. Criar uma obra “um dia destes” e, entretanto, tecia-se o tédio, o desespero… desespero que para alguns foi até ao suicídio. Como num aeroporto, várias salas de embarque. Aviões com destinos diversos…

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