DIA DA GALIZA – 17 de Maio

A Galiza é o verdadeiro «país irmão» de Portugal. Ali nasceu a nossa língua comum, o português, com cujos vocábulos Fernando Pessoa construiu o coração da sua pátria. No próximo domingo, toda a nossa edição é dedicada à Galiza, à sua história, à sua literatura. Ernesto V. Souza, um argonauta da Corunha, dirige a edição – nela colaboram galegos, portugueses e gente de outras nações peninsulares, nossos vizinhos. Não esqueçamos uma verdade – os amigos podemos escolhê-los – vizinhos e irmãos, não. Que tal, ter irmãos e vizinhos como amigos?

Vamos até sábado, 16 de Maio, dedicar este espaço horário a uma antecipação do DIA DA GALIZA – o artigo que se segue explica o porquê da data. Um galego e um português, escreveram-no

 

ROSALÍA DE CASTRO E O REXURDIMENTO – por Carlos Durão e Carlos Loures

 

É frequente o recurso antonomástico a epítetos como «a língua de Cervantes» para designar o castelhano ou «língua de Camões» para referir o português. Se nos quisermos referir à variante galega do português, embora do ponto de vista puramente filológico, haja outros nomes a mencionar, o de Rosalía de Castro é o mais citado. O galego é «a língua de Rosalía de Castro». Após séculos de aculturação, de assimilação do galego ao castelhano, foi dela que partiu o impulso de relançar o galego como língua literária. Com Manuel Curros Enríquez, Eduardo Pondal e outros, fundou o movimento galeguista do Rexurdimento. Foi com ela que a cultura galega começou a reencontrar-se com a sua língua – a língua galega, a língua portuguesa, a língua galego-portuguesa.

Falar da língua portuguesa, implica falar do idioma que nasceu na província romana da Galécia e que a partir do latim vulgar se foi construindo. No século IX era já um idioma diferenciado das demais línguas novilatinas. No século XIII, além de ser falada em Portugal, era idioma de cultura na corte de Afonso X de Leão e Castela. Falar do português é falar do galego e dizer galego-português é redundante, pois estamos a falar, não de duas componentes da mesma língua, mas de dois segmentos temporais de um mesmo idioma. O português é indissociável da sua raiz galega; actualmente o galego prolonga-se e respira através do português.

Mas há 150 anos atrás, no berço da língua, na Galiza, o idioma estava desde o século XV relegado para a condição de dialecto rural. Neologismos castelhanos foram tomados de empréstimo e integrados, a fonética castelhana invadira a pureza do galego genuíno – o vernáculo foi-se perdendo. Pode dizer-se que a língua, na sua forma escrita, estava extinta. Aqui, intervém um factor chamado Rosalía de Castro e os seus Cantares, livro publicado em 17 de Maio de  1863. Os Cantares são o sinal mais luminoso do ressurgimento da cultura nacional. É considerado o primeiro livro escrito em galego moderno. Em muitos dos poemas, Rosalía fez a recolha de cantigas tradicionais, denunciando a miséria, a pobreza, a emigração forçada a que estavam submetidos os galegos para sobreviver naqueles anos do século XIX. Rosalía é, sem sombra de dúvida, a figura cimeira do movimento galeguista. Em Portugal, Antero de Quental e Teófilo Braga saudaram com entusiasmo a publicação desta obra.

Em 1880, saiu a colectânea Follas novas, que pode considerar-se, em parte, como uma sequência dos Cantares Galegos – alguns poemas têm evidente afinidade com a linha costumista da anterior. O restante reflecte um espírito poético de conteúdo profundo, político e metafísico, embora sempre ligado à melancólica nostalgia e às raízes telúricas que caracterizam toda a sua obra.

Para além de um prodigioso talento, a escritora revelava também uma cultura apurada e um conhecimento actualizado da evolução literária. Como diz Basílio Losada, «não é correcta a visão de Rosalía como aldeã inculta que só por um milagre de sensibilidade consegue encontrar algumas fórmulas expressivas renovadoras. Rosalía recebera a cultura média de uma rapariga da burguesia provinciana do seu tempo» Sem incorporar na sua bagagem intelectual os conhecimentos que lhe permitissem abordar de forma sistemática o problema da identidade nacional, a sua inteligência e a sua intuição souberam situar no idioma o coração da pátria galega.

A figuras insignes como a de Ricardo Carvalho Calero se deve o trabalho científico que permitiu reconstruir a identidade da língua galega, provando que ela está viva no português actual. Mas foi de Rosalía de Castro que partiu a iniciativa de reacender o orgulho pátrio nas chamas de uma língua que, há mais de um milénio, nasceu em terras da Galiza.

E concluímos com um Poema a Luís de Camões, de Rosalia de Castro

Desde as fartas ribeiras do Mondego,
desde a Fonte das Lágrimas,
que na bela Coimbra,
as rosas de cem folhas embalsamam,

do Minho atravessando as águas mansas
em misteriosas asas,
de Inês de Castro, a dona mais garrida,
e a mais doce e mais triste enamorada,
do grão Camões que imortal a fez
cantando as suas desgraças,
de quando em quando a acarinhar-nos vêm
eu não sei que saudades e lembranças.

Lá deu seu fruto a planta abençoada
com sem igual pujança.
Daqui o germen saiu, sabe-o Lantanho
e a sua torre dos tempos afrontada.
Talvez por isso – ó desditosos – sempre
convosco foi o germen da desgraça:
Tu, pobre dona Inês, mártir do amor
e tu Camões da inveja empeçonhada.
Pesam dos génios na existência dura
Tanto a fama e as glórias quanto as lágrimas.

A que cantaste em peregrinos versos,
morreu baixo o poder de mãos tiranas.
Tu acabaste olvidado e na misériae hoje es glória da altiva Lusitânia,
ó poeta imortal, em cujas veias
nobre sangue galego fermentava!

Esta lembrança doce,
envolta numa lágrima,
manda-te desde a terra
onde os teus foram nados
uma alma dos teus versos namorada

Segundo Ernesto Guerra da Cal, este poema foi originalmente publicado no “Almanach das senhoras para 1885, Lisboa, 1884, pp. 125-7, e é talvez o último poema galego publicado em vida dela; o topónimo Lantanho é aqui o antigo solar dos Caamanhos, supostos antepassados do Camões; outras tradições situam-no em Noia, outras ainda em Baiona.

 

1 Comment

  1. Curiosamente a temática camoniana vinha muito a propósito do tricentenario de Camões festejado por todo o Portugal por iniciativa republicana.

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