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Consideremos, adrede, os desvios duma viagem sempre pautada pelo perigo da experiênciaque enriquece. Notadamente, a vivência de um ensino com ressonâncias gurdjieffianas, ministrado pelo poeta austríaco Max Hölzer, numa escola onde se professa a submissa escravidão da alma, e que Telmo quase execra em páginas de alusão, dadas à luz da novidade na tardia Viagem a Granada[8]. Mas já antes, em 1987, numa entrevista ao Correio da Manhã[9], deixara entrever quão séria e violenta fora a ruptura com o ensino daquele mestre.
Dir-se-á que o filósofo arrepia aqui caminho, indo ao encontro da obra projectada pelo mestre, movimento cedo encetado com a Gramática Secreta da Língua Portuguesa, que, com ser o seu livro mais genial, é também o mais difícil entre quantos escreveu.
Contínuo e permanente elogio do pensamento filosófico criacionista, tal como Telmo o entende pelo exercício da razão poética segundo os ditames da Gramática Secreta, nessa conversa jornalística se verbera a inefabilidade a que, pelo prisma da ilusão, se não o da presunção, se permite votar o místico que julgou intuir a verdade. Por outro lado, fica por apurar se, ao castigar ali o esperanto, não tem António Telmo sob mira análoga espécie de linguagem artificial: a que Gurdjieff propugnava à margem de uma naturalidade que só a prévia dedução da gramática sagrada permite enfim garantir; e resta também saber se, quando afirma, em tese geral, que a substituição de operações mentais por operações maquinais virá enfraquecer as faculdades que servem o espírito humano, não estará o filósofo visando (ao menos num plano subconsciente, que o contexto evidente nos deixa entrever), em sua tecnicidade estrita, virtualmente egocêntrica, os exercícios que geram benefícios. A mestria etimológica do jogador que Telmo sempre foi espelha-se no modo como, tendo em vista o desenvolvimento da imaginação activa que o livro e a leitura possibilitam[10], defende que o ensino, nas escolas públicas, seja ocidentalizado (neologismo que significativamente se forma por oposição ao verbo orientar) para a libertação do espírito, ministrando adequadamente os primeiros exercícios da razão poética.
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O que mais impressiona na introdução télmica aos três livros de Pascoaes é a ambiência cripto-judaica que, pela kabbalah, impregna todo esse seu escrito. Desde logo, no inequívoco parágrafo inicial: Portugal e o seu arquétipo, tal como nos é possível concebê-lo através do que na sua situação geográfica é símbolo num espelho e também da sua história no que ela tem de secreta ou fantástica, mas sobretudo através da língua onde os fonemas formam o arco que lança a flecha do sentido, é o que essencialmente conspira na poesia de Pascoaes para abater o espírito que nega.[11]