A GRÉCIA DE AGORA E A MITOLOGIA GREGA, POR JÚLIO MARQUES MOTA – INTRODUÇÃO AOS TEXTOS DE EDWARD HUGH E PHILIPPE LEGRAIN – II

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 (continuação)

2. O pharmakos figura central no pensamento mítico-religioso da Grécia antiga

2.1. Introdução: reflexões à volta do pharmakos

O azar pode levar a descobertas interessantes… eis-nos aqui precisamente com uma noção que não conhecia, o pharmakos, figura grega equivalente ao que chamos de bode expiatório, figura esta que pode ser ligada com as reflexões actuais em torno da Grécia e da Europa, sobre as reflexões à volta da saída da Grécia da zona euro, uma saída, organizada ou desorganizada, a corresponder à sua expulsão ou até à sua morte. Falamos então da pressão feita sobre a Grécia, conduzida pelo BCE às ordens dos desejos de violência do senhor Schauble com este senhor a alimentar o imaginário alemão e a ser alimentado por ele. A questão posta pela Grécia, a vitima, e pela imperial Alemanha, o agente da punição, assim como pelo silêncio e pelo apoio dado à pressão alemã sobre a Grécia pelos restantes parceiros da zona euro, tudo isto nos reenvia á figura do pharmakos, uma figura enquadrada pelo imaginário grego, à punição, à expulsão, à “limpeza” da cidade, da polis, e ao papel de Apolo, o deus da purificação, através da morte ou da expulsão da cidade do individuo que a cidade considere como sendo o bode expiatório, o pharmako, o individuo que é suposto representar e incorporar o mal na cidade. Com uma diferença de fundo, o pharmako é agora a Grécia, a cidade é agora a União Europeia, o agente que comanda a punição é a Alemanha.

Mas limpeza e purificação, associados ao pharmakos reenviam-nos aos anos das trevas de década de 1930, relembra as questões de raça, relembra as questões ligadas à cruz gamada ou suástica, que foi encontrada em Rhodes pelo alemão Heinrich Schliemann. Como se assinala no texto muito curto sobre a cruz gamada, acima apresentado como texto nº 1 :

” O símbolo teve um ressurgimento no final do século XIX, depois de um extenso trabalho arqueológico desenvolvido pelo famoso arqueólogo Heinrich Schliemann. Schliemann descobriu a cruz gamada no local da antiga Tróia, mas a cruz gamada foi utilizada para uma guerra bem pior que mil vezes as guerras de Troia. Este ligou-a imediatamente com formas semelhantes encontrados na cerâmica, na Alemanha e especulou que era um “significativo símbolo religioso dos nossos remotos antepassados.”

Vem tudo isto a propósito dos dois textos referidos que vamos editar sobre a política verdadeiramente assassina da Alemanha relativamente à Grécia, mas que é uma política assumida pela Europa como um todo; um dos textos é uma entrevista dada por Legrain, ex-assessor de Durão Barroso a um jornal espanhol e um outro de Edward Hugh, em que este levanta a questão da Grécia estar a servir de bode expiatório à Europa, sendo certo que a ideia de que bode expiatório tem um equivalente bem mais rico ou complexo na cultura grega da antiguidade que dá pelo nome de pharmakos.

No quadro dos pharmakos e do ritual de sacrifício inerente que era praticado na Grécia antiga, fazendo parte da sua mitologia, um único individuo pode carregar sob os seus ombros com uma falta colectiva. Com efeito, os mitos, evocando a necessidade de se recorrer a um pharmakon dão uma fundamental importância à culpabilidade da cidade como um todo e não tanto ao indivíduo. É impossível identificar o autor da transgressão, a contaminação é colectiva. O movimento consiste por conseguinte em carregar um indivíduo com uma falta colectiva e eliminá-lo da cidade, pela morte ou pela expulsão. A ironia desta acção é flagrante quando se considera que o pharmakon é escolhido porque marginal e, por conseguinte, provavelmente podendo mesmo não ter tomado parte na falta do grupo.

Procurámos na sequência deste texto relações entre a Grécia antiga, a Grécia do pensamento mágico-religioso, o mesmo é dizer o tempo da barbárie, com a situação de hoje da Grécia face à Europa e face à Alemanha. Ignorante sou, disso não tenho nenhuma dúvida, mas o texto de Hugh aguçou-me o apetite e quis saber mais alguma coisa quanto à eventualidade de haver relação, equivalência para melhor dizer, entre o que se passa hoje e os tempos de barbárie que antecederam a democracia ateniense. E os paralelos são dramáticos quando nos deparamos com comportamentos de hoje a fazer lembrar a pré-civilização helénica, onde seria normal em dadas circunstâncias a prática de sacrifícios humanos, através do ritual dos pharmakos, e com tudo o que daí decorria como, por exemplo, a ideia de purificação da cidade, hoje do país, hoje da Europa.

O texto que vos apresento sobre o pharmako pode ser considerado como denso mas, sinceramente, é uma leitura que vos aconselho para percebermos até que ponto o que se passa hoje tem equivalente no mundo da barbárie, no mundo do pensamento mágico-religioso do tempo das trevas.

Como exemplo que acabo de afirmar, uma das variantes do pharmako era o apedrejamento, ou lapidação. Sobre o apedrejamento e em síntese pode-se ler no texto abaixo: .

“Porquê a lapidação? Esta escolha explica-se amplamente ao considerar-se, por exemplo, a frase que conclui o ritual em Abdère: “e então é lapidado pelo rei e pelos outros até que seja expulso para além das suas fronteiras” . A lapidação garante sobretudo a expulsão do pharmakos; é essencial expulsar o pharmakos da cidade. É a sua eliminação “política” que geralmente importa, e não a sua eliminação física. A morte do pharmakos, provavelmente frequente, não é indispensável, mas a sua expulsão “fora das fronteiras” é-o. Nesta perspectiva, a lapidação é a punição absolutamente adequada: lapidar alguém, é afastá-lo à custa de lhe atirarem pedras de modo que a pessoa não se possa manifestar mais, matando ou não as pedras que a este foram atiradas. A mesma intenção pode ser lida no salto do alto da falésia em Leucade: deixa-se ao pharmakos que é atirado para o vazio uma fina possibilidade de sobrevivência cobrindo-o de uma espécie de paraquedas em plumas, e dispõem-se sobre o mar vários barcos prontos para o transportar “fora das fronteiras” ( se o infeliz, por muita sorte, sobreviver ao salto (!) . Além disso, a lapidação é, por excelência, uma punição colectiva; em Abdère: “pelo rei e pelos outros” – que, à letra , significa “o conjunto da comunidade de Abdera[1] , com a autoridade política à sua frente ” – lapidam o pharmakos. Acrescentar-se-á e também que nenhum membro da comunidade se pode sentir como o responsável de uma eventual morte do lapidado, dado que ninguém sabe qual é a pedra mortal. A lapidação é um pouco comparável ao pelotão de execução do mundo moderno, com uma bola de pólvora seca [ de modo que cada um possa duvidar de quem é que matou] que é suposto desculpabilizar o grupo. Segundo esta descrição do apedrejamento, é necessário, correlativamente, que toda a gente participe porque recusar atirar pedras significa estar certo de não ser responsável e envolvido no que está a acontecer. Recusar participar seria mesmo um acto anti-social.”

Ora imagine-se o Conselho da Europa em Bruxelas em Fevereiro ou agora mais recentemente em Riga onde os parceiros da Grécia mostraram que não devem nada à boa-educação e ao respeito pelos outros. Está ainda presente na memória de todos nós os relatos internacionais sobre o comportamento altamente agressivo de certos Estados como o de Portugal, o de Espanha, o de Itália, etc. Todos em conjunto a atirarem pedras à Grécia, aqui a cumprir, felizmente a não assumi-lo como o fazia o antigo governo, o papel de bode expiatório da Europa, o papel de pharmakos. Todos a fazerem isso, todos a dizerem que não é verdade, todos a afirmarem ao mesmo tempo que não são a Grécia! Edward Hugh vai mesmo mais longe e diz-nos que se a Grécia, como situação não existisse, teria que ser inventada porque ela faz falta a esta Europa completamente falida de valores, porque permite que todos digam alto e bom som: nós não somos como a Grécia, nós não somos a Grécia.

Um quadro já bem antigo ilustra esta situação:

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Não me quero prolongar nesta introdução e nos paralelos entre o mundo selvagem que está a ser imposto na Europa e a selva do tempo das trevas. Um exercício que deixamos ao leitor ao lerem esta colecção, mas garantidamente os paralelos são muitos.

Pesado, incómodo, seguramente é assim, o segundo texto que vos apresento como introdução aos textos de Legrain e de Edward Hugh.

(continua)

[1] Abdera é uma cidade do mundo grego antigo (na Trácia, na zona onde está Tessalónica).

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