EDITORIAL – Desplante

logo editorialNo deplorável espectáculo das touradas, em que os chamados aficcionados pagam para assistir ao martírio de um inocente animal, há uma fase da fiesta em que o touro, perdido muito sangue e confuso, pois a campina onde estava habituado a deambular foi substituída por este cerco de luzes, ruídos e odores que não compreende, fica imóvel*. Perturba-o, sobretudo, a dor crescente que o vai tomando e o enfraquecimento de um corpo que não responde como antes às ordens que o cérebro lhe dá. Há uma fase, dizíamos, em que o toureiro, sabendo que o animal está perturbado, quer demonstrar ao público a sua coragem. Na tonta linguagem tauromáquica, chama-se á ousadia do diestro dar un desplante –  passa as mãos pelos cornos do touro, ajoelha em frente ao animal, exibe a a coragem inútil de quem põe a vida em risco por nada.

No mundo da politica, os diestros sentem, por vezes, que podem dar un desplante. O «animal» está debilitado, confuso, apanhado entre fogos cruzados … Nesta fase final do mandato, causticado o povo no seu conjunto, particularmente a classe média, com o poder de compra brutalmente reduzido, é submetido a uma informação que denuncia a corrupção que avassala o partido opositor e que tenta provar que os sacrifícios eram inevitáveis, exaltando a coragem que houve em assumir uma política impopular para bem de todos.

O eleitorado, na sua esmagadora maioria, só conhece três posições – não votar, votar no partido do governo ou no seu opositor. As alternativas que os partidos mais pequenos lhe apresentam, surgem como fantasias – votar na utopia é voto inútil. E este raciocínio leva à rotatividade, ao bipartidarismo, em que dois partidos, dois gémeos idênticos com roupas diferentes, se revezam na tarefa de manter os seus donos comuns na posse do poder.

Com desplante, a ministra das Finanças admite (ou anuncia?) novo corte nas pensões de reforma. O voto dos pensionistas deveria ser compatível com este novo anunciado roubo. Mas o animal, «embora continue vivo, já não existe, entrou num sonho que é só seu, entre a vida e a morte».

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*No  2º volume dos « Cadernos de Lanzarote», José Saramago transcreve um seu artigo publicado na Cambio 16 e de que aqui reproduzimos excertos: «O touro entra na praça […] veio em alegre correria, como se, vendo aberta uma porta para a luz, para o sol, acreditasse que o devolviam à liberdade. Animal tonto, ingénuo, ignorante também, inocência irremediável, não sabe que não sairá vivo deste anel infernal que aplaudirá, gritará, assobiará durante duas horas, sem descanso […]atravessa a correr a praça, olha os “tendidos” sem perceber o que acontece ali, volta para trás, interroga os ares, enfim arranca na direcção de um vulto que lhe acena com um capote, em dois segundos acha-se do outro lado, era uma ilusão, julgava investir contra algo sólido que merecia a sua força, e não era mais do que uma nuvem […] Dele se espera que tenha força suficiente, brandura, suavidade, para merecer o título de nobre. Que invista com lealdade, que obedeça ao jogo do matador, que renuncie à brutalidade […] Terei medo pelo toureiro quando ele se expuser sem defesa diante das armas da besta. Só mais tarde perceberei que o touro, a partir de um certo momento, embora continue vivo, já não existe, entrou num sonho que é só seu, entre a vida e a morte».

1 Comment

  1. Muito oportuna e perfeitamente adequada essa comparação entre o touro “que já não existe” e o povo imerso no sonho da perplexidade diante dos descalabros dos políticos. Entre nós, no Brasil, está acontecendo a mesma coisa.
    Abraço solidário, Carlos Loures. .

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