A NOSSA RÁDIO “E Deus Criou o Mundo”: proselitismo abraâmico na rádio pública – (2) – por Álvaro José Ferreira

 

 

O CRISTIANISMO

Por: Agostinho da Silva

O primeiro texto pagão que nos fala dos cristãos é uma carta que Plínio o Moço, então governador da Bitínia, província romana da Ásia Menor, enviou a Trajano, no ano 112, a comunicar-lhe que tinha mandado prender um certo número de pessoas que se reuniam de madrugada para entoar hinos a Cristo; não há na carta de Plínio nenhuma referência, nenhuma garantia da existência histórica de Jesus; apenas se fala da existência de cristãos, mais de um século depois do nascimento de Cristo. Por 115, data que se pode pôr como a mais recuada possível, compõe Tácito os Anais e no livro XV, parágrafo 45, conta que Nero, desejoso de fazer calar os boatos que o davam como incendiário de Roma, apresentara como culpados os cristãos, cujo nome, escreve o historiador, vinha de Cristo que, no tempo de Pilatos, principado de Tibério, sofrera suplício; para um certo número de críticos, a passagem foi interpolada no texto de Tácito por um cristão; parece, no entanto, que é difícil pôr em dúvida a autenticidade da frase; sendo ela autêntica, tem que se discutir donde veio a informação a Tácito; é difícil assegurar que a tenha colhido nos arquivos, parecendo o mais provável que os pontos essenciais relativos à vida de Cristo já fossem por essa altura bastante conhecidos de todos; os cristãos, pela época em que Tácito escrevia, tinham a sua comunidade de Roma bem organizada e os textos evangélicos já deviam ter-se fixado; pelo menos, é difícil apontar o texto de Tácito como garantia absoluta da existência histórica de Jesus. Suetónio, que publicou as suas Vidas dos Doze Césares cerca de 121, escreve no capítulo 21 da Vida de Cláudio que o imperador expulsou de Roma os judeus que andavam em frequentes tumultos, por instigação de Cresto; podendo admitir-se que Cresto seja Cristo, havia a dificuldade de ser dado como contemporâneo e promotor, presente, dos tumultos: essa dificuldade põe-se de parte porque os cristãos acreditavam que Jesus estava com eles e era natural que um pagão interpretasse ou exprimisse mal essa crença; sabe-se também que houve conflitos entre judeus e cristãos e é talvez a essa questão que Suetónio se refere; em todo o caso, o texto nada prova sobre a existência de Cristo: a prova é toda da existência dos cristãos, cerca de vinte anos depois da data tradicional da morte de Jesus, e de que eles se davam com discípulos de Cristo. Dos historiadores judaicos, sabemos que Justo de Tiberíade, nascido por volta do ano 30, não fazia a mais pequena referência a Jesus; Flávio Josefo (37?-100?) fala de Cristo nas Antiguidades Judaicas, entre a narrativa dos tumultos de Jerusalém e a deportação para a Sardenha de quatro mil judeus (18,3,3); declara que Jesus era mais do que um homem, por praticar actos maravilhosos, que foi o Messias, que ressurgiu ao terceiro dia, que viveu segundo as profecias; como Flávio Josefo depois de escritas estas linhas se não converteu ao cristianismo, como o texto se insere entre duas narrativas de carácter diferente, como, por outro lado, sabemos que o texto de Flávio Josefo foi trabalhado pelos cristãos, é empresa arriscada a de defender a autenticidade do parágrafo; um texto da mesma obra, 20,9,1, em que se menciona um irmão de Jesus chamado Cristo, é talvez mais difícil de pôr de parte, podendo, no entanto, defender-se que se trata de uma interpolação. O relatório de Pilatos e a carta de Lêntulo que se costumam citar como garantia da existência de Cristo não têm nenhuma espécie de autenticidade histórica.
Dos textos cristãos temos de considerar em primeiro lugar os Actos dos Apóstolos, que devem ter sido compostos nos princípios do século II e cujo carácter lendário não deixa tomá-los, pelo historiador, que tem naturalmente uma atitude diversa da dos crentes e igualmente respeitável, como testemunhos seguros e insuspeitos. Nas Epístolas de S. Paulo, que teria, segundo parece, sido contemporâneo de Jesus, há poucos informes sobre Jesus: o que interessava a S. Paulo, verdadeiro fundador da nova religião, não era o Jesus que nascera na Galileia, pregara entre os judeus e viera acabar a Jerusalém; o que o prende é o Cristo que morre para salvar o género humano e que ressurge para voltar à plena glória; é o princípio da substituição do Jesus terrestre pelo Cristo teológico e místico que só pode interessar à história de S. Paulo ou dos doutrinários que se seguiram. Os outros textos apostólicos têm, de um modo geral, o mesmo carácter: o Jesus histórico é visto através do que pensam os Apóstolos depois da morte e da ressurreição do seu Mestre; além de tudo, o facto de se terem mantido durante muito tempo sob a forma oral deve ter prejudicado a autenticidade de muitos pontos. Quanto aos Evangelhos, que são os documentos essenciais, temos de os dividir em dois grupos, porque o Evangelho segundo S. João difere totalmente dos Evangelhos segundo S. Marcos, S. Mateus e S. Lucas; é uma elaboração culta, toda repassada de teologia e de misticismo, de alguns dos dados fornecidos pelos outros Evangelhos; a aproximação ou tentativa de aproximação com doutrinas gregas, de modo a tornar mais fácil a assimilação do cristianismo, é patente em todo o texto; de resto, o Evangelho segundo S. João menciona muitos episódios que não aparecem nos outros Evangelhos, contradita-os em pontos em que os três textos estão de acordo e apresenta-nos um Jesus de carácter bastante diferente do Jesus dos outros Evangelhos: é um Jesus eterno, pronto para o culto, semelhante ao que nos aparece nas Epístolas de S. Paulo. Os restantes três Evangelhos são chamados Sinópticos porque é possível dispô-los de maneira que as narrativas coincidam, embora haja também algumas dissemelhanças; mas, na verdade, é mais importante o que têm de comum; é difícil marcar-lhes uma data de composição, parecendo como mais provável que tenham sido escritos entre cinquenta e cem anos depois da morte de Cristo; devem ter sido redigidos fora da Palestina e o texto é pouco seguro, porque entre a altura em que foram escritos e a época em que entraram no cânone e, portanto, se estabilizaram devem ter decorrido uns cem anos; é quase certo ainda que houve um Evangelho primitivo e que os nossos actuais Evangelhos não são mais do que redacções ou recensões desse texto único, segundo S. Marcos, S. Mateus ou S. Lucas; o que mais se aproximaria do Evangelho protótipo, o que nos aparece como mais antigo, é o de S. Marcos; é provável também que S. Mateus e S. Lucas tenham trabalhado sobre S. Marcos: tenderiam a prová-lo os desenvolvimentos, comuns aos dois, sobre episódios narrados em S. Marcos com simplicidade e rapidez; seria então necessário admitir que os dois evangelistas tinham ao seu dispor um outro texto, o dos Discursos ou Ditos de Jesus. Os Evangelhos não canónicos e os textos apócrifos são, ou secundários em relação aos canónicos, ou de pura fantasia.

 

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