Carlos, Carlos, meu amigo, só agora recebi (como era de esperar) a tua carta. Junto a nota para o Artaud. Quanto ao espaço do Ponent: penso que deves escrever tu: quanto a mim depois se verá.
Aliás, sem des-ou-modéstias (merda): um texto como o já publicado no XVIII (insisto para que obrigues o tal Vidal a mandar-mo), é mais importante que qualquer poema minha. Dixit. Ou melhor: se queres razões, dou estas por boas: um poema não é poesia – tem-na (quando a tem); um texto pode dispor à poesia, abri-la – como se faz às melancias para sugar. Ensinem-se as bestas aos canivetes – e depois se lhes dê melancia. Ou não se ensinem – bata-se-lhes. Olha, não sei. Mágica e dogmaticamente afirmo: escreve tu. Conta como aqui se morre. Principalmente. Como morrem aqueles que sabem que tal coisa lhes vai acontecendo.
Forte escreveu aprovando a sua colaboração e pedindo (com que eu concordo) que se ponha violência e raiva mas que se não façam mais avisos aos distraídos. Concordo com esta última sugestão por razões com as quais penso que estarás de acordo e penso não serem bem as do Forte: entre elas creio ser de acabar com a publicidade gratuita que a Pirâmide tem feito aos revolucionários que nada revolucionam (Artaud), excepto improvavelmente a quantidade de açúcar a pôr na beberagem literária do Café Gelo.
Parto depois de amanhã, regresso no dia 25. Procura entabular com o J. Henrique; mas põe-te de aviso – o tipo, embora bom, tem nervos de interna de freiras: hiper-neurótico.
Vou fazer com que a carta siga hoje. Abraça-te o
teu do coração
Manuel de Castro
NOTA [de Carlos Loures]
Relendo esta carta de há mais de 50 anos, uma dúvida me assalta – por que motivo o Manuel me escreveu em Junho de 1961? Trabalhava na RTP e duas ou três vezes por semana, vinha no fim da tarde até ao Restauração. Por ali parava um grupo de que faziam parte Alfredo Margarido, Edmundo de Bettencourt, Renato Ribeiro, Manuel de Castro, eu e outros, menos assíduos, como Cândido da Costa Pinto. No final desse ano, saí da RTP e fui para a Gulbenkian, sendo colocado em Vila Real. Portanto, 1962 seria um ano mais lógico para a carta. Mas há certamente uma explicação que, mais de meio século depois, é difícil de encontrar.
O artigo a que o Manuel se refere foi publicado em 1960 no número XVIII da Ponent. Fazendo uma análise à situação da poesia em Portugal – movimentos e tendências, revistas e antologias, eu dava como nomes mais relevantes os dos jovens Alexandre O´Neill, António Ramos Rosa, Natália Correia, Egito Gonçalves, Papiniano Carlos, Manuel de Castro, Herberto Helder e António José Forte. Note-se que se hoje tivesse de fazer uma lista para aquele ano de 1960, talvez só acrescentasse um nome – Daniel Filipe. Em 1963, o Manuel publicava o poema “Balada” na Ponent [n.º 27/28, 1963], numa tradução de Fèlix Cucurrull.
Dois aspectos ressaltam da carta de Manuel de Castro – uma afectividade (que era recíproca) e que começou por uma sucessão de conflitos, e a falta de paciência que ele manifestava (e que muitos sentíamos) para com atitudes elitistas que alguns poetas exibiam como valor ético, como superioridade moral. Após Abril de 74, o «grupo do Gelo» espalhou-se pelo leque político; na sua maioria aderiu a movimentos de esquerda; mas houve quem preferisse o partido herdeiro da União Nacional; claro que isso em nada belisca a qualidade das suas obras. Porém, leva-nos a pensar como é vasto o campo semântico da palavra liberdade, tão usada por todos nos seus poemas.
MANUEL DE CASTRO EM CATALÃO
POR FÈLIX CUCURULL
BALADA
Com en un viatge que no mena en lloc
la meva vida transcorre entre fredes
lloses
greument perdut
greument
vaig cercar la noble soledat
escriure la llibertar; el somni
viure un personatge incorrupte
entre fredes lloses la meva faç
– solitud en la superficies plana
de la mar –
lliurat durant un temps a la voracitat de les ombres
la veu de les quals es va extingint
la veu de calç de les quals
habita la vida de tanta miseria i buidor que ens soporta
l’amor s’esmunyí de la rel
fins al dia de l’home comú
de la mentida comú
de la nostra per ara irremeiable covardia
sense pau
i tabi i lent es fou descomponent
el nostre mal
tot just,
a nivell d’aigua voga el meu rostre
entre fredes lloses entre fredes
i humides plantes marítimes
que vibren lleugerament cantant
en fregar la meva faç morta
entre fredes lloses entre fredes
mans indiferents
en l’aigua transparent i molt quieta
transpassa el lívid buf de la mort
escombrant les fredes lloses les fredes
mans que en cobreixen la faç
amb un moviment preparat i solemne
el núvol vola estrafet i gèlid
sobre el rostre a flor d’aigua entre fredes
lloses
entre fredes
eternas
sepultures
[revista Ponent, n.º 27/28, Primavera/Verão de 1963, pp. 34-35]