2. ALFABETIZAÇÃO
Não consigo ser um bom professor de fonética, o meu jeito de falar ora aos repelões, ora arrastado, à moda de Alfama, atrapalha tudo, o Tareco já não sabe de que terra é. Eu a rir com os desatinos do zingarelho falante, mas a Dolores a meter travão às quatro rodas:
– Isto assim não pode ser! Vou convidar o Prof. Pena Cunha para nos dar uma ajuda.
Convida e aí vem o linguista, também gramático afamado. E o dinheiro dos japoneses a correr, sempre a correr…
O Pena Cunha fica dias e dias a conversar com a Dolores e o Samurai. Ele a badalar, o Samurai a dedilhar o teclado e a Dolores a traçar símbolos cabalísticos. Depois resolvem chamar-me. Querem que o Tareco tenha minha voz. Eu vou. Desconfiado, mas vou. Outra vez frente ao gravador eu leio as cábulas:
Á como em gato, como em pá
 como em cama, cana, fazer
É como em pé, como em ferro
E como em sede, corre, regar
Ó como em cola, como em pó
Ô como em força, morro
I como em vir, como em bico
I como em pai, feito
U como em bambu, como em azul, como em sul
U como em correr, como em morar
U como em pau, como em água
B como em branco, como em ambos
e por ai fora até
Z como em azar, como em casa.
Depois a Dolores convida um outro gajo barbudo e gorducho. Tanto, que os seus alunos até o chamam de Barriga de Bicho. É o Dr. Luís Lebre, está sempre a aparecer na televisão, e o seu apelido anuncia a agilidade que não tem e nunca teve, ao que suspeito.
Encosto o ouvido à porta do barracão e apanho as filigranas do Dr. Sabão: fonema, sintagma, código, mensagem, signo, símbolo, rema, glossemática, referente, ícone, índice, semiofania, entropia, metalinguística.
A Dolores acaba por lhe dar uma corrida em pelo, a miúda tem alergia ao verbo que puxa ao complexo. Do que ela precisa é de ideias e palavras que de imediato possam agir ou interferir sobre coisas concretas.
– Sua ignorante! (diz, como despedida, o Barriga de Bicho, enquanto empina a pança).
Ainda estive para lhe acertar umas lambadas mas deixo passar em branca nuvem, para não turvar os ambientes.
Está a ser muito difícil a alfabetização do Tareco. O Pena Cunha é que tem uma paciência de Job e eu com ele. Sob a sua orientação, fico quatro meses a ler verbetes para o Tareco. E um dia a Dolores diz-me:
– Pai, o Tareco já tem a tua voz. Já a vou enquadrando na estrutura da nossa língua. Já leu todo o Cândido de Figueiredo, o Moraes e outros calhamaços mas ainda não consegue relacionar o nome com o nomeado. Conhecimentostem ele, e muitos. Mas a falar é como se fosse um garoto de 3 para 4 anos.Chegou a tua vez, Pai. Faz de conta que ele é teu neto. Fala com ele, tempaciência. O Tareco precisa ouvir a tua voz, para corrigir a dele, que também é a tua. Faço-me entender? Tem calma que ele aprende depressa. Está programado para aprender depressa.
Eu em brasas para ver no que ia dar a geringonça. De mansinho, aí vem o Tareco.
-Bom dia, Vô.
– Vai mas é chamar avô ao camandro!
– Camandro não consta na minha memória. Eu pedo explicação.
– Eu pedo, sua besta? Eu peço, eu peço… Não podes falarmelhor?
– Eu podo.
-Podas o quê? A rama dos teus cornos? Eu posso, eu sei, sua lata ferrugenta. Não fazes melhor do que isso?
– Eu tomo atenção, eu fazerei melhor.
-Valha-nos a Senhora da Agrela, não há santa como ela.
-Agrela não consta na memória. Peço explicação.
– Pedes explicação? Mas que tom imperativo… Não sabes pedir por favor?
– Por favor, eu peço explicação.
– Bravo, Tareco. Não é fazerei, é farei.
– Entrada satisfatória. Estou a recapitular os verbos irregulares. Não é fazerei, é farei.
– Isso mesmo. E como é que de repente soubeste o que era certo?
– Eu sube porque registo tudo.
-Mas que grande calisto, é só bacoradas. Raios de te partam, não é sube é soube. Sabes que mais, Tareco? Vai dar uma curva!
Pôs-se em movimento. Percorreu um alongado ziguezague pelo quintal eoutra vez se colocou à minha frente.
-Eu já dei.
– O quê?
– Uma curva. Vossa Excelência gostou?
Falar, o emplastro até já fala, parece um papagaio. E pensar? Será que alguma vez ele vai dar uma para a caixa?
(continua)
TARECO( 2) – por Fernando Correia da Silva – Estrolabio, 20 de Fevereiro de 2011
Ver em:
http://estrolabio.blogs.sapo.pt/1060138.html