CARTA DO RIO – 60 por Rachel Gutiérrez

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Já contei aqui que o filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto costumava reler todos os anos, em suas férias, o Grande Sertão: Veredas, do nosso Guimarães Rosa. E eu confesso que já li quatro vezes Água Viva, de Clarice Lispector, assim como li muitas vezes o saborosíssimo A Cidade e as Serras, do grande Eça de Queiroz.  Romances costumam ser enfeitiçantes e alguns são inesgotáveis. Esse é o caso de muitos livros da Comédia Humana, de Balzac, os de Stendhal ou todos os sete volumes de À La recherche Du Temps perdu (Em busca do Tempo perdido), de Proust. Conheci um médico que chegava ao último volume, O Tempo reencontrado e, sem descansar voltava ao primeiro, para ler tudo de novo.

Lembro também a delícia que foi, se não me engano no final dos anos 1980 do século passado, descobrir um “Proust moderno”, o irlandês Lawrence Durrell, com seu Quarteto de Alexandria, onde em cada volume os mesmos fatos são contados de quatro pontos de vista diferentes, como no filme japonês Rashomon, e o protagonismo passa de um para outro dos principais personagens envolvidos numa intriga bastante emaranhada, situada no Egito durante a Segunda Guerra Mundial. Tenho muita admiração por essas inteligências capazes de criar universos inteiros, personagens inesquecíveis, acontecimentos extraordinários, enfim, histórias realmente apaixonantes, que continuam a alimentar muitos roteiros de cinema.

Recentemente, revendo na TV um filme feito com o esmero característico da BBC, de Londres, me dei conta de que a protagonista do famoso romance, que eu lera na adolescência, Jane Eyre, de Charlotte Brontë (1816-1855), sobre quem visivelmente se inspirou Daphne Du Maurier (1907-1989) para criar a protagonista e narradora de Rebecca, a mulher inesquecível, é, paradoxalmente, bem mais “moderna” do que sua sucessora.

Aliás, o romance e a personagem de Bronte já haviam inspirado uma escritora brasileira, que acusou de plágio Daphne Du Maurier. Trata-se de Carolina Nabuco (1890 – 1981), que tentou provar na justiça que havia escrito e publicado o seu A Intrusa antes da Rebecca de Du Maurier, e que esta poderia tê-lo lido numa tradução francesa. Não é isso, porém, que vem ao caso agora, mas uma comparação que não pude deixar de fazer entre Jane Eyre e a personagem sem nome que narra e protagoniza o drama no livro (e no filme) Rebecca. Ora, o sobrenome  de Jane tem o mesmo som da palavra inglesa air, que significa ar. Me ocorreu então que o próprio som do sobrenome da heroína de Charlotte Bronte sugere liberdade, expansão, abertura. Jane é, de fato, uma moça destemida, determinada, corajosa e diríamos até ousadamente livre diante da rigidez e dos preconceitos da época em que sua peripécia é dramaticamente vivida. Já a doce, frágil e tímida personagem de Daphne Du Maurier não é mais, como Jane, uma mestra e governanta com várias habilidades e talentos, inclusive para a pintura, mas a humilde acompanhante de uma velha dama ricaça, que a maltrata, e que vai se apaixonar por um homem poderoso e rico cujo nome muitas vezes repetido é – não haveria um simbolismo nisso? – Max, Maxim (ou Maximilien) de Winter. (E sabemos que winter significa  inverno!) . Acho que isso tudo e muitos outros pormenores dariam uma divertida tese, na qual eu gostaria de provar que em termos de emancipação feminina Jane Eyre está muito mais próxima das feministas do nosso tempo do que a narradora do livro Rebecca de Du Maurier, que lhe é muito posterior. O livro de Charlotte Bronte é de 1847 e o de Daphne Du Maurier é de 1938, quase um século depois.

É bem possível que, como entendia Carl Gustav Jung, não existam coincidências, mas sincronicidades no fluxo de nossas inquietas consciências nesta travessia tantas vezes misteriosa que é a vida. Eu andava, pois,  pensando sobre  o privilégio de possuir uma exuberante imaginação criadora como é o caso dos que escrevem ficção, e especialmente romances, quando meu amigo André Vallias, poeta, tradutor de Heine e web designer de grande talento, me enviou uma notícia sobre a primeira romancista brasileira: a maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917), em quem eu nunca ouvira falar.

A maranhense é tão pioneira do gênero romance, em nossas letras, quanto o fluminense Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), autor de A moreninha, publicado em 1844. Além disso, o romance Úrsula, de Firmina dos Reis, que veio à luz em 1859, apenas quinze anos depois do de Macedo, foi considerado o primeiro romance abolicionista do Brasil.

Mulata, filha bastarda, a corajosa escritora que nasceu na Ilha de São Luis, viveu principalmente na cidade de São José de Guimarães onde, aprovada num concurso, tornou-se professora primária, função que exerceu por toda a vida. Em 1880, causou grande escândalo ao fundar uma escola gratuita para meninos e meninas num povoado chamado Maçaricó. No Maranhão e em plena era vitoriana, compreende-se que a escola tenha sido fechada três anos depois. Além de romances, Firmina escreveu contos, poesia e música. Em 1888, compôs o Hino da Libertação dos Escravos.

Temos interessantes escritoras no Brasil do século XIX e do início do século XX e, entre elas, muitas hoje esquecidas como Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), extraordinária contista e autora de peças teatrais. Seria bom que ao nos preocuparmos com os direitos da mulher também nos empenhássemos em divulgar sua contribuição literária e artística.

 

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  1. Trata-se de Carolina Nabuco (1890 – 1981), que tentou provar na justiça que havia escrito e publicado o seu A Intrusa antes da Rebecca de Du Maurier, e que esta poderia tê-lo lido numa tradução francesa. Carolina Nabuco NUNCA escreveu nenhum livro com o título de A intrusa. Esse livro foi escrito por Júlia Lopes de Almeida.

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