FRATERNIZAR – CONCÍLIO VATICANO II ENCERROU HÁ 50 ANOS Mas o que lhe fizeram depois? – por Mário de Oliveira – (seguido de post-scriptum)

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O calendário diz que o Concílio Vaticano II encerrou há 50 anos. A realidade actual da igreja católica e dos povos pergunta, Mas o Concílio Vaticano II aconteceu mesmo? O que lhe fizeram depois, para que apenas o calendário registe o evento, quando deveria ser a realidade eclesial e o viver dos povos, de então para cá, que no-lo deveriam dizer-cantar-celebrar? O papa João XXIII surpreende tudo e todos, quando anuncia ao mundo, ainda antes de à Cúria romana, a convocação de um Concílio em Roma que tire a igreja do bolor das sacristias e, na peugada de Jesus, a Luz dos povos, ela seja, à sua medida, luz dos povos também. Os bispos, convocados para o Concílio apresentam-se, na sua maioria, em Roma, na convicção de que vão numa de turismo apenas por semanas, alguns meses, no máximo. A própria Cúria, apanhada de surpresa, faz o tudo por tudo para tomar as rédeas do Concílio, desde a primeira hora.

Para aqueles cardeais eunucos, no topo da pirâmide eclesiástica, a igreja era referida como a sociedade perfeita, paralela à sociedade civil imperfeita, progressivamente laica, secular, pecadora. Se necessidade havia de conversão, era por parte da sociedade, não da igreja de Roma. Havia, por isso, que precaver-se para não deixar a igreja ser contaminada pelo mundo. Porém, Jesus, a Luz dos povos e do mundo, sem dúvida, muito mais importante para eles do que a igreja, já nem debaixo do alqueire se encontrava. Era, é, o grande desconhecido dos povos. E a igreja era, sobretudo, treva. Ou, se se preferir, holofote que cegava os povos. Tudo se resumia à Cúria, com o papa, no topo dos topos do mundo, e à hierarquia, no topo dos topos de cada diocese. O exemplo mais acabado de papa, nesse então, era a dinastia dos Pios, nomeadamente, Pio X, Pio XI e Pio XII. Fechados na fortaleza do Vaticano. Sem qualquer ponte para o mundo dos povos. Inclusive, sem língua para comunicar com eles, uma vez que o latim, língua mais do que morta para os povos, era a única que o Deus da igreja católica entendia e a única em que, pelos vistos, se expressava. Tal como nos idos da Bíblia hebraica, só entendia e comunicava via hebraico.

Desconhecia de todo a Cúria, bem como os papas e os bispos residenciais em todo o mundo que a Ruah, ou o Sopro/Espírito maiêutico de Deus que nunca ninguém viu, é como o Vento. Ouvimos a sua voz, não sabemos de onde vem, nem para onde vai. E sempre que sopra, ora tsunami, ora brisa, nada fica como estava antes da sua passagem. Nem o próprio papa João XXIII faz ideia, quando convoca o Concílio, que não é ele quem o convoca, mas a Ruah, o Vento. É o Vento/Ruah que desencadeia o processo e João XXIII nunca mais tem mão nele. O Concílio não seria o que ele e sua Cúria queriam que fosse. Seria o que o Vento/Ruah de Deus que nunca ninguém viu queria que fosse. Valeram, nesse então, os bispos oriundos do chamado Terceiro Mundo, uns periféricos em relação à Europa, estilo bispos pé descalço, que se fizeram acompanhar a Roma de equipas de teólogos, como seus assessores. Teólogos dos pobres, não da corte. Teólogos que já haviam feito a experiência de que o Deus que nunca ninguém viu jamais se dá a conhecer nos palácios do poder, nas Cúrias romanas e diocesanas, nos templos e santuários, marianos ou outros. Por esses sítios, só se encontra Deus, o do poder, ele próprio, omnipotente, omnisciente, omnipresente, com tudo de cruel, de tirano, de sádico, absolutamente inacessível aos povos. O horror e o terror por antonomásia.

Quando se iniciam as sessões, ninguém em Roma e na Europa sonha que o Concílio iria ser o tsunami e a brisa que veio a ser. Tsunami, porque, à medida que avança, derruba os poderosos clérigos eunucos dos seus tronos, assim como os seus braços seculares direitos e esquerdos, os poderosos ditadores dos mútiplos estados europeus e ocidentais. Brisa, porque ergue da sua milenar condição de escravos e de roubados da voz, da vez e dos teres, os povos do chamado Terceiro Mundo. À medida que avança o Concílio, avançavam também os povos do Terceiro Mundo. Roma e o Ocidente vêem-se de novo a braços com uma imparável invasão. Não como a dos sanguinários bárbaros, mas a dos povos empobrecidos e oprimidos, desde há séculos. Não vão propriamente os povos – e esse é o primeiro falhanço estrutural do Vaticano II – mas os bispos assessorados pelos teólogos que, então, já faziam teologia com os pobres. Uma teologia que remete para o Deus que nunca ninguém viu e que só se dá a conhecer nos povos empobrecidos, roubados de tudo o que lhes pertence por direito e até da voz e da vez. Bastaria, por isso, à Cúria substituir esses bispos por outros, assessorados por outros teólogos, frequentadores da corte e das mesas dos ricos, para que o estado da igreja católica viesse a ficar ainda pior do que antes do Concílio. É exactamente isso que veio a suceder e continua ainda hoje a suceder, mesmo sob o mediatizado pontificado do actual papa Francisco.

Roma estremece perante este inesperado facto. E o papa que convoca o Concílio não o consegue concluir. O Concílio tem de prolongar-se no tempo e o papa João XXIII não dura o bastante para acompanhá-lo até ao fim. Paulo VI, homem da corte, por isso, tímido perante os povos, sobretudo, perante os empobrecidos e excluídos de tudo e perante as mulheres duplamente exploradas, oprimidas, representa o primeiro travão institucional ao Vento/Espírito de Deus que nunca ninguém viu. Ainda assim, foi possível fazer aprovar na aula conciliar documentos que, aplicados no interior da igreja católica, representariam uma pequena grande revolução antropológica-teológica. E com ela, nunca mais a igreja seria o que havia sido nos 16 séculos de Cristandade. O problema era praticar essa pequena-grande revolução, depois de encerrado o Concílio.

E a pergunta que hoje, 50 anos depois, se levanta é, Mas houve mesmo Concílio Vaticano II? O que lhe fizeram então, que ninguém o vê praticado? Assim formulada, a pergunta vale como inequívoca constatação de que o Concílio nunca passou dos documentos à prática eclesial, pastoral. E sem práticas outras, tão pouco há igrejas locais outras, igreja católica outra. Mais uma vez tem de se reproduzir, aqui, o que o Evangelho Segundo João (3, 19-21) regista, “A luz vem ao mundo, mas os homens [do poder], cardeais da Cúria romana incluídos, preferem a treva à luz, porque as suas práticas são más. Todo o que tem más práticas odeia a luz e não se faz próximo da luz, para que as suas práticas não sejam condenadas. Quem, ao contrário, pratica a verdade faz-se próximo da luz, e assim fica claro que as suas práticas prosseguem as mesmas de Deus” E a razão é óbia – As suas práticas são más”. Em lugar de acolherem-festejarem a Luz, odeiam-na, matam-na.

O primeiro papa, pós-Vaticano II, a odiar, matar a luz dos povos que é Jesus que, por momentos, brilhou no Concílio Vaticano II e, oficialmente, pôs fim a 16 séculos de Cristandade, foi o cardeal Wojtyla, oriundo da Polónia, que escolheu o nome de João Paulo II. Um nome sob o qual esconde o que realmente viria a ser num dos pontificados mais longos da história da igreja. Dava a entender que seria uma síntese de Paulo VI e de João Paulo I, mortalmente envenenado ao fim de 33 dias de pontificado, por ser um praticante do Vaticano II. Na verdade, passou à história como o papa mais assassino do Vaticano II. Aliás, foi escolhido pela Cúria para realizar esse sujo papel. Nada na Cúria se faz ao calha. Tudo é feito com conta, peso e medida. Na aula conciliar, Wojtyla tinha sido um dos poucos bispos que votaram contra os documentos mais estruturantes do Concílio, como, por exemplo, o documento “Lumen gentium”, Luz dos Povos. Foi logo escolhido para ser o assassino n.º 1 do Vaticano II. Para tanto, chama de imediato a Roma o teólogo Ratzinger, faz dele cardeal Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, e estabelece com ele uma mafiosa aliança de sangue: tu ocupas-te do assassinato dos teólogos e da teologia dos povos empobrecidos e eu ocupo-me dos espectáculos pão e circo que as multidões empobrecidas tanto gostam, quando não há quem as cure-resgate das causas da sua pobreza-miséria imerecida.

A dupla prolongou-se anos e anos, como as pilhas duracel. João Paulo II foi papa até dizer Basta!, quando já metiam dó aqueles directos de desolação pré-estado de coma, de fazer chorar as pedras, mas tudo programado para resultar. E resultou. Ratzinger que lhe veio a suceder na cúpula das cúpulas da igreja, como recompensa pelos serviços prestados, passa à história como o assassino dos teólogos e da teologia dos povos empobrecidos e do Deus que nunca ninguém viu e se dá a conhecer neles, uma avassaladora realidade que faria implodir a Cúria romana. Nem sequer com o papa Francisco que lhe sucedeu, depois da metódica renúncia de Bento XVI ao exercício das funções, que não ao título de papa emérito, com todos os direitos de papa titular, inclusive, o de residir até à morte no Vaticano. Pode o papa Francisco pensar que retomou e está a prosseguir o Concílio Vaticano II, mas não está. O Vaticano II que o Vento-Ruah de Deus que nunca ninguém viu fez acontecer está defintivamente morto. Assim como Jesus, a luz dos povos. E sempre que o Vaticano II se levanta, aqui e ali, é logo cercado, silenciado, desacreditado, ostracizado, nos seres humanos, seus prosseguidores, que lhe dão visibilidade. Quando mudamos de ser-viver e de Deus?

http://www.jornalfraternizar.pt

 

P.S.

Sou presbítero-jornalista, um dos filhos do Vaticano II e sei quanto custa a audácia de o praticar no meu ser-viver histórico, todo fragilidade humana desarmada. Dos clérigos assassinos do Concílio, não tenho nada a esperar que não sejam desprezos e calúnias de toda a espécie. Não frequento os templos da idolatria, como Jesus, a luz dos povos, não frequentou, pelo contrário, sempre denunciou, denuncia. É no mundo dos povos e dos pobres que sou presbítero-jornalista. Sem nunca ser do mundo do poder, como são todos os que, depois de ordenados presbíteros, passam a funcionar como sacerdotes do Deus que se vê nos palácios do poder, a começar pelos do Vaticano, nas catedrais e nos santuários de idolatria. Dói-me o coração pelos meus irmãos que assim me tratam. Nada, porém, que os clérigos seus antepassados já não tenham feito, paradigmaticamente, a Jesus, o filho de Maria, a luz dos povos e do mundo.

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