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REFLEXÕES EM TORNO DO MASSACRE DE PARIS, EM TORNO DO CINISMO DA POLÍTICA OCIDENTAL – SENADO FRANCÊS – COMISSÃO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS, DEFESA E FORÇAS ARMADAS – AUDIÇÃO DO GENERAL VINCENT DESPORTES SOBRE O PROLONGAMENTO DA OPERAÇÃO CHAMMAL NO IRAQUE – I
Selecção, tradução, notas e montagem de Júlio Marques Mota
COMPTES RENDUS DE LA COMMISSION DES AFFAIRES ETRANGERES, DE LA DEFENSE ET DES FORCES ARMEES
Debate em sessão pública sobre o prolongamento da operação Chammal no Iraque – Audição do general de divisão Vincent Desportes, professor associado em Sciences Po Paris
A comissão ouve o general de divisão Vincent Desportes, professor associado em Sciences Po Paris, no quadro de uma audição em sessão pública sobre o prolongamento da operação Chammal no Iraque, em conformidade com o artigo 35 da Constituição.
17 de Dezembro de 2014
Jean-Pierre Raffarin, presidente. Nós prosseguimos os nossos trabalhos relativos ao debate, que se processam em sessão pública no próximo 13 de Janeiro, sobre o prolongamento da operação Chammal.
Meu general, estou muito feliz de o receber. O senhor é ao mesmo tempo general e professor, conhecer a sua palavra interessa-nos por conseguinte particularmente. Preocupamo-nos pela situação. Teríamos dificuldade em recusar autorizar a continuação da intervenção, no entanto a simples continuidade põe-nos problemas, nomeadamente no que se refere aos critérios enunciados pelo Livro branco de 2008. Quereríamos ter o seu ponto de vista, exactamente antes de ouvir o Ministro da Defesa.
General Vincent Desportes, professor associado em Sciences Po Paris. – Antes de regressarmos aos critérios de avaliação das operações externas, creio que é necessário dizer, afirmar e repetir sem fraqueza: “Daech delenda est”. Tenhamos força de Catão, o Antigo.
Daech é hoje o grande perigo. Não temos certamente os meios para tudo ao mesmo tempo, de todo que não temos. As ameaças devem ser priorizadas, devemos mesmo estar dispostos a aceitar alguns compromissos em relação às menos escaldantes: no mundo real, num contexto de recursos e de meios limitados, a nossa política só pode ser uma política realista.
“Daech delenda est”… mas não poderemos espalhar o sal sobre o solo do Iraque e da Síria. Será necessário pelo contrário torná-los em campos férteis para novas sementes.
“Daech delenda est”… e no entanto a sua questão continua a ser fundamental: ninguém tem aqui qualquer duvida de que é necessário destruir Daech, mas devemos nós participar nesta destruição?
Uma palavra sobre Daech, primeiro.
Não duvidemos da realidade da ameaça directa para os nossos interesses vitais, entre os quais o nosso território e a nossa população. Daech é o primeiro movimento terrorista a controlar também um vasto território (35% do território iraquiano, 20% do território sírio). Que representam 200 000 Km ² (ou seja o equivalente à Aquitânia, Midi-Pyrénées, Languedoc-Roussillon, de PACA e Rhône-Alpes reunidos) e uma população de aproximadamente 10 milhões de pessoas. Este território é imperfeita mas realmente “administrado” por “uma ordem islâmica”, feita de crueldade e de extorsões. Daech dispõe de um verdadeiro “tesouro de guerra” (2 mil milhões de dólares de acordo com a CIA), de rendimentos massivos e autónomos, sem nenhuma comparação com o que dispunha Al-Qaïda. Daech dispõe de equipamentos militares numerosos, rústicos mas também pesados e sofisticados. Mais do que um movimento terrorista, confrontamo-nos com um verdadeiro exército enquadrado por militares profissionais.
Qual é o doutor Frankenstein que criou este monstro? Afirmemo-lo claramente, porque isso tem as suas consequências: são os Estados Unidos. Por interesse político a curto prazo, há outros actores – de que alguns se mostram como sendo amigos do Ocidente – outros actores pois, que por complacência ou por vontade deliberada, contribuíram para esta construção e para o seu reforço. Mas os principais responsáveis são os Estados Unidos. Este movimento, que tem uma muito forte capacidade de atracção e de divulgação da violência, está em clara expansão. É poderoso, mesmo se for marcado de profundas vulnerabilidades. É poderoso mas será destruído. É certo. Não tem outra vocação que não seja a desaparecer.
A questão é de o fazer desaparecer antes que o mal se torne irreversível, antes que as suas brasas dispersas transformem este início de fogo num incêndio universal. É necessário agir, de maneira forte e determinada, com todos os países da região.
É necessário agir, mas quem deve agir?
Antes de avançar na minha análise, quereria, como também a Comissão o deseja, estudar alguns dos critérios retidos como guia para estas audições. Abordarei primeiro o critério da capacidade “de análise exacta do contorno espácio-temporal e financeiro de um envolvimento”. Este critério está em profunda oposição com a própria natureza da guerra.
Porque, desde que o mundo é mundo, nunca ninguém pôde “encomendar” uma guerra. O sonho do político, é a intervenção em força, rápida, pontual, que sidera. É o mito cem vezes desmentido “de ataque e passe o problema a outros -hit and transfer”, do choque militar que conduziria directamente ao resultado estratégico e, num mundo perfeito, a passagem por retransmissão a alguns exércitos vassalos imediatamente aptos e desejosos de assumirem eles mesmos as responsabilidades. Enfastiado! Os calendários ideais (do tipo “Esta operação vai durar seis meses”) têm sido sempre desmentidos pelo que Clausewitz chama “a vida própria ” da guerra. A guerra pertence à ordem do que é vivo, não é um objecto, é um sujeito. Portanto, nunca se espere poder “encomendar uma guerra”: será ela a impor o seu calendário e as suas evoluções. Isto tem sido sempre assim: ligo o que digo a três estrategas que inscrevem no tempo eterno esta característica incontornável da guerra. 400 anos antes de Cristo, evocando a guerra do Peloponeso, Tucídides afirma que “a guerra nunca se desenvolve de acordo com um plano previamente estabelecido”. No século XV, Machiavel considera, pelo seu lado, que, se “entra em guerra quando se quer, sai-se quando se pode ”. Há alguns anos, um oficial de cavalaria que conhece melhor a guerra que ninguém por tê-la sofrido na sua carne e tê-la praticado a todos os níveis, estou a falar de Winston Churchill, afirma nas suas memórias, “ nunca pense, nunca, nunca que uma guerra pode ser fácil e sem surpresas; (…) o homem de Estado que cede ao demónio da guerra deve saber que, logo que o sinal seja dado, ele deixa de ser o mestre que controla a política mas sim o escravo de acontecimentos imprevisíveis e incontroláveis”.
Tem toda a razão! Peguemos em dois exemplos recentes. Quando os Estados Unidos se lançaram na segunda guerra do Golfo em 2003, não sabem o que esta vai arrastar consigo, 11 anos mais tarde, ou seja, uma terceira guerra do Golfo. Quando a França decide parar os tanques líbios em frente de Benghazi em 2011, não sabe que isso vai levá-la a intervir no Mali em 2013 e por muitos anos nos terrenos da região Sahel –Saará.
Da primeira batalha à “paz melhor” que ela pretende criar, há sempre um longo caminho caótico que só pode ter sucesso muito mais tarde, a longo prazo, com esforço e perseverança. Por conseguinte, quando se entra em guerra, é necessário ter os recursos necessários a que chamo “de profundidade estratégica” – noção fundamental – para poder “seguir” (no sentido do jogo de póquer) e de se poder adaptar… o que temos sido sempre incapazes de fazer na repúblico Centro-Africana, por exemplo.
Quero insistir ainda um pouco sobre este problema do número, porque é um problema crucial. Está directamente ligado ao conceito de resiliência. Resiliência em cada crise e resiliência global. Nenhuma das nossas intervenções pode produzir os seus efeitos no tempo curto, mas a nossa capacidade “de resiliência pontual” é muito fraca: mal se chegue, quer-se logo partir. É pior ainda quando se trata de ser necessário um tempo longo e, no entanto, é mesmo necessário intervir face às ameaças externas.
Em suma, qualquer que seja o exército considerado, estamos envolvidos acima das situações operacionais de referência, ou seja, em que cada exército está a gastar o seu capital sem ter o tempo de o regenerar. Temos forças insuficientes em volume. Para compensar, tanto ao nível táctico como ao nível estratégico, fazemo-las rodar a um ritmo muito elevado que as desgasta fortemente. Ou seja, se esta sobre-utilização continuar, o exército francês estará na situação do exército britânico sobre-utilizado no Iraque e o Afeganistão e será obrigado durante alguns anos a parar as suas intervenções e a regenerar o seu capital “internamente”. O esforço considerável produzido hoje em proveito das intervenções tem repercussões fortes e mensuráveis sobre as forças na metrópole e, em especial, em termos de preparação operacional.
O sentido das responsabilidades exige torcer definitivamente o pescoço ao mito da guerra curta. Afastemos definitivamente os falsos sonhos sempre invalidados “de first in, first out” e “hit and transfert”. Isto não funcionou nem para os Americanos no Iraque, nem para nós no Mali. De resto o “hit and run” não é um factor de estabilidade: nós estamos já na quinta operação “Murro na mesa” na República Centro-Africana, 34 anos depois de ter efectuada a primeira operação, Barracuda em 1979. Uma operação que dura não é necessariamente uma operação em que nos estejamos a enterrar !
De resto o Livro branco de 2008, pelo menos de maneira teórica, efectivamente levou em conta esta necessidade. Postula que: “as fases de estabilização podem estender-se ao longo de vários anos ” ou que “estas operações se inscrevem no tempo longo” e avança que “a aptidão a durar” é um factor fundamental da eficácia dos exércitos.
Nestas condições, é bem evidente que a delimitação do espaço e do tempo, a avaliação e o controlo dos custos têm que ser vistos como irrealizáveis. Este sonho pode ser útil em termos de comunicação política, mas o seu próprio discurso não deve ser uma ratoeira para enganar o político.
Como completar utilmente a grelha de avaliação 2008?
Quereria primeiro utilizar algum do meu tempo para recordar que é habitual chamar a doutrina Powell, admirada no seu tempo e seguidamente esquecida com este último, depois da sua mentira pública, face a todo o mundo, no dia 5 de Fevereiro de 2003.
Esta “doutrina” foi definida ao desencadear-se a guerra do Golfo em 1990. Resume-se a uma série de perguntas:
– Há interesses vitais em jogo?
– Os objectivos alcançáveis foram definidos?
– Os riscos e os custos foram objectivamente analisados?
– Todas as outras opções não-violentas foram esgotadas?
– Existe uma estratégia de saída que permite evitar ficar-se atolados?
– As consequências da intervenção foram avaliadas?
– O povo americano apoia esta acção?
– Temos um apoio real da Comunidade Internacional?
Esta grelha é muito incompleta, mas é clara e poderia ainda ser muito útil e servir de exemplo aos nossos responsáveis executivos.
Pelo meu lado, diria que toda e qualquer intervenção deve respeitar os grandes princípios estratégicos. Citarei cinco:
Primeiro princípio: só nos devemos envolver se pudermos influenciar ao nível estratégico. Se não, utilizam-se as nossas forças sem capacidade de influência, fica-se sobretudo desacreditado e não se ganha nada em imagem. É o caso da Grã-Bretanha no Iraque e o Afeganistão; acabou por se retirar sem glória depois de literalmente ter utilizado os seus exércitos até à exaustão. É o caso da França no Afeganistão: conduziu-se aí “uma guerra americana” sem influência estratégica global, sem influência sobre o decurso das operações, sem influência sobre a direcção da coligação. Ao contrário, a Líbia e o Mali – e a operação Barkhane a partir daí – tiveram um efeito profundo sobre a percepção da França no mundo e pelos seus parceiros.
Segundo princípio: só se deve intervir onde haja sentido “ estratégico”. Ou seja quando a nossa acção visa a preservação dos nossos interesses, e está à altura das nossas responsabilidades… e é também do nosso interesse porque a França é grande no mundo, em especial pelo seu lugar no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Mas este lugar é-lhe contestado todos os dias, e é necessário que o defenda, que o legitime todos os dias. E só o pode fazer pela sua capacidade de gestão útil das perturbações do mundo. O que, de passagem, impõe absolutamente a necessidade de garantir a nossa capacidade de agir como “nação-quadro” e de “entrar em primeiro”. Não duvidemos: o nosso lugar entre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas e a nossa influência nos negócios do mundo estão primeiramente assentes sobre a nossa capacidade em agir de maneira concreta nas crises (capacidade e credibilidade).
Terceiro princípio: é necessário definir objectivos que sejam alcançáveis.. Serval, no Mali, é um caso exemplar: os objectivos fixados pelo Presidente da República, entre os quais, o resultado final procurado, foram claros e, pelo menos inicialmente, compatíveis com os meios disponíveis. No Afeganistão, os objectivos derivaram muito rapidamente e excederam os meios de que a coligação dispunha (em termos de tempos e capacidade de controlo do espaço terrestre em especial).
Quarto princípio: só se deve intervir quando a acção encarada é compatível com os meios disponíveis, imediatamente e a prazo. Aqui o contraste entre o Mali e o Afeganistão, mas também entre o Mali e RCA, é impressionante. No entanto o Livro branco de 2008 era claro sobre este ponto. Recordava que “o critério do número – efectivos e equipamentos – continua a ser relevante e não pode inteiramente ser compensado pela qualidade (…), continuando a ser um factor determinante” independentemente do meio. O Livro branco de 2013 fala “de volume de forças suficientes”. Nos factos, a operação Serval era uma aposta extremamente arriscada, cada um sabe-o bem, devido ao muito fraco volume de forças aí envolvidas, conjugado a uma grande vetustidade da maioria dos equipamentos utilizados. A operação Sangaris é uma operação que falhou : a operação foi inicialmente considerada “siderante ” mas falhou. Seguidamente, a recusa de encarar a realidade conjugada à nossa falta de meios impediu a adaptação da força à realidade do terreno e à utilização imediata dos 5 000 homens que eram indispensáveis.
Quinto princípio: não se deve nunca “dar o primeiro passo sem estar a encarar o último”. A fórmula é de Clausewitz: dois séculos mais tarde continua a estar sempre actual. Isto quer dizer, ter uma estratégia de saída: e opor-se-á aqui e muito facilmente ainda o Mali e RCA. Isto quer dizer que é necessário avaliar sem ideologia, sem cegueira, as consequências de uma intervenção, sobretudo se não se tiver a intenção de ir até ao fim.