Selecção e tradução de Júlio Marques Mota
8. União Bancária: uma receita para o desastre
Thomas Fazi – A união bancária devia servir para quebrar o círculo vicioso entre bancos e Estados. No plano dos factos, está a determinar o oposto .
Thomas Fazi, Unione bancaria: una ricetta per il disastro
Eunews, 5 de Fevereiro de 2016
No dia 1º de Janeiro de 2016 entrou oficialmente em vigor a união bancária europeia, um sistema de vigilância e uma resolução bancária a nível europeu. A criação de união bancária representa, em termos de regulamentação, o êxito mais significativo de crise – “uma mudança de regime mais do que uma simples maquilhagem institucional”, como escreve Christos Hadjiemmanuil da London School of Economics num exaustivo estudo sobre o argumento – e há um vasto acordo sobre o facto que “mesmo na sua actual forma incompleta [a união bancária] é o maior sucesso político da União europeia em termos estruturais desde que começou a crise financeira”. Um olhar mais atento, no entanto, mostra uma exposição que a união bancária – pelo menos na sua forma actual – é apenas a última fase do processo de ajustamento assimétrico a que temos vindo a assistir ao longo destes em anos na Europa. Uma fase que poderia fixar o último prego sobre o caixão do euro.
Nas suas intenções iniciais, a união bancária devia servir “para quebrar o círculo vicioso entre bancos e os Estados”, mutualizando os custos fiscais das resoluções bancárias. Este foi o resultado do tardio reconhecimento por parte dos decisores políticos europeus quanto à natureza não orçamental – seja ela bancária ou monetária – “da crise das dívidas soberanas” na zona euro. Quando em 2012 a crise da dívida atacou dois países, a Espanha e a Irlanda, que nos anos precedentes à crise tinham registado entre os dois rácios défice/PIB e dívida/PIB mais baixos de toda a União, os governantes europeus foram forçados a reconhecer que deixar a gestão das crises bancárias nas mãos de cada um dos Estados-Membros individualmente – não deixaria aos políticos nacionais outra escolha que não seja a de financiarem os resgates bancários com os recursos orçamentais nacionais – o que tinha feito subir a dívida pública de certos países (especialmente os da periferia da zona euro que nos anos precedentes à crise tinham sido objecto de massivos afluxos de capital e em que estes, por seu lado, tinham contribuído para a criação de enormes bolhas especulativas) para níveis insustentáveis. Isto tinha gerado perigosos desequilíbrios que agora se arriscavam a minar a estabilidade da zona euro como um todo.
Por conseguinte, apesar das políticas europeias “anti-crise” permaneceram solidamente ligadas ao dogma da austeridade orçamental (por razões políticas mais que económicas, como argumentei no meu livro, The Battle for Europes), reconhecia-se a necessidade de uma profunda mudança na política europeia em matéria de resoluções bancárias, com o fim de aliviar individualmente os países do peso fiscal das operações de resgate dos bancos, e de pôr fim à fragmentação das condições bancárias e monetárias ao longo das fronteiras nacionais. A instituição de um fundo de resolução publico comum – uma “protecção orçamental ” – para a zona euro como um todo era considerada como essencial a um tal objectivo. O pré-requisito para a mutualização dos custos de resgate, não obstante, era a transferência das competências em matéria de supervisão e a resolução bancária das autoridades nacionais para o BCE.
Foram estas as condições que levaram os dirigentes europeus, a 29 de Junho de 2012, a afirmar explicitamente a necessidade de quebrar “o círculo vicioso entre bancos e Estados”, acrescentando que “ uma vez criado um mecanismo único de supervisão dependente directamente do BCE, o MEE poderá, sob decisão regular, passar a recapitalizar directamente os bancos em dificuldade “.
Durante a fase de construção da união bancária, não obstante, há pois qualquer coisa que mudou: “a centralização da supervisão foi efectuada em modo rápido e decidido, mas entretanto a sua premissa ( a criação “de um mecanismo de protecção orçamental” para a resolução dos bancos) foi praticamente abandonada“, escreveu Christos Hadjiemmanuil. Num ano, a Alemanha e os seus aliados obtiveram:
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a exclusão de qualquer sistema partilhado de tutela dos depósitos
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a manutenção de um efectivo poder de veto nacional sobre a utilização de recursos fiscais comuns;
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a provável exclusão dos chamados “ legacy assets” – ou seja de dívidas acumuladas antes da criação da união bancária – de qualquer sistema de recapitalização, na base do facto que isso equivaleria uma mutualização ex- post de falências passadas em matéria de supervisão nacional (a questão comum permanece em aberto);
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a coisa mais importante, uma hierarquia muito rígida sobre a distribuição dos encargos visava assegurar que (a) o emprego dos fundos públicos para as resoluções bancárias devia ser evitado em todas as circunstâncias, excepto nas mais urgentes (e de qualquer modo circunscritas o mais possível), pela aplicação de um rígido sistema de resgate interno dos bancos, dito bail-in ; e (b) que a principal responsabilidade fiscal para as resoluções bancárias permanece situada a nível nacional, tendo em conta que os recursos fiscais comuns devem ser considerados apenas como um meio de última instância.
“Essas políticas levaram a uma abordagem europeia para a resolução de bancos, que se baseia essencialmente em duas traves mestras: o bail-in através de entidades privadas e a exclusão, excepto em circunstâncias extremas, de qualquer assistência governamental”, observa Hadjiemmanuil. Em suma, quando um banco está em apuros- ele é uma entidade privada – isto é, é sobre os accionistas e sobre os detentores de obrigações subordinadas, e, em segunda circunstância, é também sobre os portadores de títulos seniores e sobre os depositantes com mais de 100.000 euros que são descarregados as perdas e os eventuais custos de recapitalização.
Só então, se as contribuições privadas não forem suficientes – e, em qualquer caso, sob condições estritas – pode o fundo de resolução única (SRF) do mecanismo de resolução única (SRM) assumir a sua participação. Para além dos problemas decorrentes do mecanismo de repartição dos encargos bancários previstos da união bancária – que examinaremos mais tarde – a SRF tem muitos problemas que lhe próprios. O fundo será financiado pelas contribuições do sector bancário e será gradualmente formado no espaço de oito anos a partir de 1 de Janeiro de 2016. O seu montante total deverá atingir pelo menos 1% da quantidade de depósitos protegidos de todas as instituições de crédito abrangidas pela união bancária, um valor estimado em cerca de 55 mil milhões de euros. Salvo circunstâncias excepcionais, a contribuição do fundo será limitado a 5% do total do passivo do banco. Isto significa que, em caso de crise bancária severa, a contribuição SRF iria mostra-se quase que seguramente inadequada (especialmente durante o “período de construção” do Fundo).
Se, esgotados os instrumentos de resolução acima citados, um banco continuar a estar descapitalizado então o respectivo país pode exigir a intervenção do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), também chamado de fundo de resgate, através do novo instrumento de recapitalização directa dos bancos (instrumento directo de recapitalização, DRI). O modo pelo qual o instrumento é realizado, no entanto, levanta muitas dúvidas sobre a sua funcionalidade prática. Como sublinha Hadjiemmanuil, as “regras DRI levantam barreiras importantes quanto à utilização desta importante ferramenta em situações em que a recapitalização por fundos públicos é justificada.”
Um dos aspectos mais problemáticos do instrumento é a sua precedência , relativamente à recapitalização directa dos bancos, dada a recapitalização indirecta dos mesmos através do MEE, pela via de um empréstimo do governo nacional de referência. A menos que este tipo de assistência não implique uma drástica deterioração das perspectivas orçamentais do país em causa, considera-se a sua utilização como preferível à utilização de DRI. Em todos os outros casos, deve ser o mesmo governo nacional a fornecer o apoio financeiro necessário para os seus bancos com problemas, recolhendo os recursos necessários a partir dos mercados financeiros ou, na pior das hipóteses, pedindo ajuda ao MEE .
Neste último caso, ao Estado-Membro que fez o pedido, obviamente, não lhe serão poupadas as temidas condicionalidades da Troika, “incluindo, se necessário, as que estão ligadas às políticas económicas gerais do país membro envolvido.” Por outras palavras, os países que forem forçados a pedir a ajuda do MEE para recapitalizar os seus bancos provavelmente serão forçados a aplicar as mesmas medidas de austeridade e de ajustamento estrutural – os cortes nos subsídios sociais, os cortes de salários, etc. – que têm sido impostos nestes últimos anos aos Estados que receberam ajuda financeira do fundo.
Curiosamente, mesmo no caso (raro) que um banco esteja autorizado a obter o DRI, antes que ele possa receber a injecção directa de liquidez do fundo comum, o governo requerente deve fornecer a quantidade necessária para que o rácio de capitalização do banco se situe ao limite legal de 4,5%, ou se o banco já atingiu o limite legal, deverá entrar com, um montante equivalente a 10-20% do total com que entra o MEE . Como refere Hadjiemmanuil, isso significa que, sob as regras atuais a principal responsabilidade orçamental para as acções de apoio público a favor dos bancos com problemas continua a pesar sobre os governos nacionais:
Mesmo se um governo está na posição nada invejável de ter que financiar a recapitalização de um ou mais dos bancos sistemicamente importantes, e seja muito fraco orçamentalmente para o fazer sem um apoio externo, a recapitalização estará, como é regra, a cargo do governo, com o MEE relegado a um papel da assistência indirecta, sob a forma de credor. Quanto ao DRI, dadas as regras extremamente rigorosas estabelecidas para a sua utilização (e a que se adiciona a aprovação por unanimidade do conselho de administração da MEE), este instrumento provavelmente não será utilizado, excepto em circunstâncias muito excepcionais. E mesmo assim, vai ser o governo do Estado-Membro envolvido em ter de arcar com grande parte dos encargos financeiros – e isso apesar do facto de não ser responsável pela supervisão dos seus bancos!
De modo mais geral, mesmo o FMI expressou dúvidas sobre o mecanismo previsto, observando que “o recurso à resolução centralizada pode não ser suficiente para lidar com a crise dos grandes bancos”. O montante total que o MEE será capaz de desembolsar para a recapitalização de qualquer banco foi definido como “apenas” 60 mil milhões de euros (embora se diga que o limite é flexível). Trata-se mais ou menos do mesmo montante que deve ser recolhido de capitais privados pelo SRM. Embora pareça uma grande soma, e em alguns aspectos é claro que é uma grande soma, mas no entanto não passa de uma gota no oceano em comparação com os balanços dos principais bancos europeus. A zona euro tem um sector bancário muito grande, com activos no valor de mais de três vezes o PIB anual da união monetária, concentrados principalmente nas mãos de um certo número de mega-bancos, cuja recapitalização exigiria imensos recursos. Para se ter uma ideia , o balanço médio dos 15 e dos 30 grandes bancos da UE (EUR 800 e 1300 mil milhões, respectivamente) ou seja de 13 a 21 vezes maior que o limite imposto para a recapitalização dos bancos. Esses bancos não são apenas demasiado grandes para falir; são também demasiado grandes para serem salvos.
A falha de qualquer um deles – mesmo supondo que isso não vai desencadear uma crise sistémica mais ampla – exigiria a mobilização de enormes recursos financeiros. Isso também é demonstrado pela recente crise, com alguns grandes bancos a necessitarem de intervenção pública para mais de 100 mil milhões de euros.
À luz de tudo isso, ainda se poderia especular que o mecanismo de resgate interno, bail-in, é um passo em frente em relação aos mecanismos de resgate dos últimos anos, uma vez que limita a carga para os Estados e com ele a “socialização” das perdas bancárias. A principal coisa que temos de perceber bem, é que o resgate interno, o bail-in, é certamente uma ferramenta útil para ter na mão, e em muitos casos poderia, sem dúvida, ser preferível a uma ajuda do governo. No entanto, isso teria de ser decidido caso a caso. Os problemas surgem quando os Estados-Membros são obrigados a recorrer ao resgate interno como o principal método de resolução bancária, independentemente das potenciais consequências que isso pode ter, da natureza dos problemas dos bancos, do mais amplo ambiente macroeconómico, etc. No entanto, este é precisamente o que a união bancária prescreve.
Isto é especialmente verdade à luz da assimetria profunda que existe entre os sistemas bancários da UE, que são eles próprios um reflexo dos desequilíbrios sociais e macroeconómicos mais amplos entre o centro e a periferia. Daí os recentes testes de resistência do BCE terem mostrado que os bancos com deficiências de capital mais elevadas estão situados nos países periféricos: Itália, Grécia, Portugal, Irlanda e Chipre. Os problemas de solvabilidade, portanto, parecem situar-se principalmente nos bancos dos países da zona euro mais atingidos pela crise económica. Não se trata de um resultado surpreendente: vários estudos têm demonstrado que existe uma relação clara entre o desempenho macroeconómico pró-cíclico e a dinâmica dos rácios de adequação de capital dos bancos. Isto é evidente a partir do enorme e crescente volume dos créditos de má qualidade nesses países, que são uma consequência directa das políticas de austeridade seguidas nos últimos anos e, é claro, a principal razão pela qual os bancos periféricos não passam nos testes de resistência do BCE .
Isto leva-nos à situação paradoxal onde está hoje a Itália. Os bancos italianos saíram-se relativamente bem durante a crise financeira, e, portanto, não tiveram necessitado de ajuda pública durante a crise (ao contrário dos bancos em muitos outros países). Desde então, como resultado do colapso socioeconómicos sem precedentes devido à crise, por sua vez resultado da austeridade imposta pela UE, os balanços dos bancos italianos degradaram-se progressivamente, e hoje – depois de sete anos de crescimento constante de maus empréstimos – os bancos italianos estão a enfrentar uma crise sistémica sem precedentes
A gravidade da situação explica porque é que a Comissão Europeia – depois de uma negociação de um ano e, apesar de as regras da união bancária – autorizou o Governo italiano a prosseguir com a criação de um banco ruim em que se descarregam os créditos de má qualidade na posse dos bancos. Infelizmente, trata-se de um acordo muito por baixo, que não resolve nenhum dos problemas fundamentais do sistema bancário italiano; Na verdade, os bancos descapitalizados do nosso país (assim como os de outros países da periferia) não poderão passar sem ter de recorrer permanecer á intervenção de capital externo ou, na verdade, ao bail-in (se não mesmo ao seu encerramento). À luz do afrontamento não resolvido entre o capital do centro da zona euro e o da periferia ( ver o trabalho de Emiliano Brancaccio sobre este tema ), poder-se-ia assumir que a união bancária irá resultar numa escalada do processo de “centralização” do capital bancário na Europa , ou seja, um confronto definitivo entre os capitais mais frágeis localizados principalmente no sul da Europa e os capitais mais fortes localizados predominantemente na Alemanha. Isso ocorre porque a união bancária, tal como está definida, não diminui, mas antes sublinha a assimetria existente no sistema bancário da zona euro.
As novas regras sobre o resgate interno, bail-in, fazem com que os países mais fracos se tornem ainda mais susceptíveis de entrarem numa crise de pânico e de se provocar uma corrida aos bancos. E não há razão para não acreditar que este processo esteja já em curso, se continuarmos os saldos no TARGET2 – uma excelente medida de fluxos de capital dentro do euro – é claro que os países periféricos estão a ter uma fuga massiva de capitais para os países do centro. Não é errado supor que isso se deva ao facto de que os depositantes nos países periféricos estão a levar as suas disponibilidades em dinheiro para o exterior por medo de iminentes resgates internos, de confiscos, de falências bancárias, e assim por diante. Quase oito anos depois do rebentamento da crise financeira o pesadelo europeu continua financeira.
Tradução feita a partir da versão italiana.
Thomas Fazi, publicado por Eunews, Unione bancaria: una ricetta per il disastro. Texto disponível em: http://www.eunews.it/2016/02/05/unione-bancaria-una-ricetta-per-il-disastro/50004
Disponível igualmente em versão inglesa.
THOMAS FAZI, versão inglesa publicada por Open Democracy, The EU’s banking union: a recipe for disaster, texto disponível em:
https://www.opendemocracy.net/can-europe-make-it/thomas-fazi/eus-banking-union-recipe-for-disaster