Schengen e a crise europeia das migrações1/
Tradução de Júlio Marques Mota e revisão de Joaquim Feio
Domenico Mario Nuti, Schengen e la crisi europea delle migrazioni/1
Eticaeconomia, 4 de Maio de 2016
Schengen e a crise europeia das migrações[1]
Domenico Mario Nuti na primeira parte de um artigo que terá continuação no próximo número de Menabò analisa a evolução, as vantagens e os custos da eliminação das fronteiras internas no espaço Schengen (1985), que considera meritório mas prematuro e incompleto, com desvantagens agravadas pela divergência dos países membros e pelas políticas de austeridade. Nuti documenta seguidamente as crescentes pressões migratórias que em 2015 levaram diversos países a restabelecerem controlos, muros e barreiras.
1. A Área de Schengen
No dia 14 de Junho de 1985 a França, a Alemanha e o Benelux assinavam o Tratado de Schengen, abolindo os controlos de fronteiras e tratando toda a Área como um único país. Inicialmente o Tratado não era uma parte das estruturas da Comunidade, faltando-lhe o consentimento dos outro cinco membros, mas foi depois incorporado nas leis da União com o Tratado de Amsterdão (1997). Gradualmente aderiram outros 21 países, compreendendo mesmo 4 membros da EFTA que não pertencem à UE: hoje a Área Schengen tem uma população superior a 400 milhões de pessoas
Em princípio, tratava-se de uma excelente iniciativa, vista a poupança de tempos e do custo dos transportes para passageiros e para as mercadorias. Um estudo recente da Bertelsmann Stiftung (Fundação Bertelsmann) considera o custo decorrente da desintegração da Área Schengen em €470 mil milhões a €1400mil milhões ao longo da próxima década (cerca de 10% do PIB anual dos 28 países da UE) devido ao aumento dos preços de importação de 1% a 3%. Estas estimativas poderão ser exageradas mas, sem dúvida, o colapso de Schengen nas condições actuais de estagnação económica teria um impacto recessivo sobre o desenvolvimento da União, com repercussões globais.
As regras de Schengen prevêem controlos de fronteira temporários no caso de emergência, por um período de 2 a 6 meses, e uma suspensão do Tratado por um período até 2 anos por razões de ordem pública. A partir do verão de 2015 diferentes membros da Área de Schengen, sujeitos a crescentes pressões migratórias sem precedentes, recorreram unilateralmente à reintrodução de controlos, muros e barreiras e diferentes níveis de meios repressivos.
2. A crescente pressão migratória.
No meio século entre 1960-2010, os migrantes internacionais, definidos como os residentes num país diferente daquele em que nasceram, representavam uma proporção relativamente estável da população mundial de cerca de 3%. Neste período a globalização em 1970 tinha feito subir a quota de exportações mundiais relativamente ao PIB global para os 8% (como nas vésperas da Primeira Guerra Mundial), e seguidamente fazia-a crescer continuamente para os 24% em 2000, para se situar hoje, apesar de ligeiras inflexões intermédias, em cerca de 30% do PIB global. Subsistiam em contrapartida obstáculos significativos ao movimento internacional dos trabalhadores, sobretudo para os pouco qualificados; nisto a globalização corrente diferia radicalmente da globalização dos anos de 1850-1914, quando as migrações internacionais, praticamente não sujeitas a restrições, alcançavam os 10% da população mundial com quotas das exportações sobre o PIB global muito inferiores aos valores de hoje (também porque se tratava de uma imigração de conquistadores e de trabalhadores ao seu serviço, sem a possibilidade de oposição aos recém chegados por parte das populações autóctones).
Já para o fim da década de 2000 encontra-se uma ligeira tendência das migrações a acelerarem, de forma mais acentuada para as migrações do Sul para o Norte. Nos países de OCDE a quota dos imigrantes internacionais atinge os 4,6% da população em 1960 e chega aos 10,9% em 2010, quase inteiramente graças à imigração dos países em desenvolvimento. Esta aceleração acentuava-se sucessivamente. Em 2015 os migrantes que chegam à Europa vindos principalmente do Médio Oriente e da África excediam os fluxos migratórios do último pós-guerra. De acordo com os dados do Frontex, a agência europeia que desde 2004 assiste os membros de Schengen a controlar as suas fronteiras externas, nos primeiros onze meses de 2015 cerca de 1550 mil pessoas tentavam cruzar irregularmente as fronteiras externas da UE, um recorde histórico em relação aos 282 mil emigrados entrados na Europa no decorrer de todo o ano de 2014. De acordo com os dados da Organização Internacional para as Migracões (OIM))/UNICEF cerca de 20% da totalidade dos migrantes que entravam pelo mar eram constituídos por menores não acompanhados. Segundo a EASO (European Asylum Support Office), boletim de Novembro-Dezembro de 2015, nos primeiros dez meses de 2015 foram apresentados na UE para cima de 1 milhão de pedidos de protecção internacional, com números em constante crescimento até Abril. De acordo com a OIM em 2015 chegaram à Europa 177.207 migrantes pelo mar, e para além das 3771 pessoas que foram assinaladas como mortas ou desaparecidas no Mar Mediterrâneo; em 2016 até 20 de abril estima-se que chegaram à Itália, à Grécia, a Chipre e à Espanha 180.245 migrantes, embora os refugiados, mortos e desaparecido se estimem em 1232 no mesmo período.
É verdade que em 2015 e até meados de Fevereiro de 2016 um número ainda maior de sírios tinha sido acolhido, segundo a Bertelsmann Stiftung (Fundação Bertelsmann) na Jordânia (640.000), no Líbano (para cima de 1 milhão) e na Turquia (2.6 milhões); enquanto o Paquistão e o Irão tinham acolhido várias centenas de milhares de migrantes respectivamente do Afeganistão e do Iraque. Mas isto não reduz o problema europeu, tanto mais quanto as más condições dos emigrados nestes países de acolhimento inicial e a sua degradação mais cedo ou mais tarde acabam por contribuir para a pressão migratória sobre a Europa.
Esta intensificação das pressões migratórias na Europa a meio da década corrente deve-se a uma pluralidade de causas. Os refugiados que têm pedido asilo têm aumentado por causa da existência e continuação de conflitos e de perseguições: no Iraque e na Síria sobretudo, mas mesmo no Afeganistão, Líbia, Eritreia e Somália e noutros países do norte de África. Até 2014 considerava-se que os refugiados representavam cerca de 15-20% dos migrantes internacionais, mas desde 2014 até hoje têm aumentado rapidamente e para níveis superiores aos das deslocações de população verificadas no fim da Segunda Guerra Mundial. Os fluxos de refugiados foram agravados por erros políticos da União Europeia, que Branko Milanovic (num post publicado em Social Europe, em maio de 2015) atribui a uma combinação de incompetência e de arrogância, como foi nos casos do derrubamento do regime de Kadafi, do ultimato feito ao anterior governo da Ucrânia, e da gestão da crise grega.
Os migrantes económicos, por sua vez, foram aumentando dada a maior possibilidade de emigrar, anteriormente impedida pelos regimes autoritários do bloco soviético e das ditaduras norte-africanas e asiáticas; a diferença criada e crescente entre o rendimento nos países desenvolvidos e o dos países em via de desenvolvimento, sobretudo ponderado pela probabilidade de emprego (aproximadamente 1 menos a taxa de desemprego), que na teoria tradicional das migrações (ilustrada por exemplo, pelo modelo de Harris-Todaro) é o motivo principal das migrações. Além disso houve uma crescente e sempre mais rápida divulgação de informações sobre a dimensão de uma tal diferença elevada e crescente, ou mesmo a percepção exagerada de uma tal diferença de rendimento por parte de migrantes potenciais que têm uma visão demasiado optimista das oportunidades de emprego e de rendimento que se abrem para eles e para os seus filhos no país de imigração. A isto acresce a diferença, efectiva ou percebida como tal, dos benefícios líquidos oferecidos nos países de destino pelos mecanismos de apoio do Estado Providência e a sobrestimação da sua sustentabilidade perante a migração em massa; as tendências demográficas amplificam o impacto da diferença de rendimento, por exemplo como no caso da população sub-sariana destinada quase a crescer quase seis vezes até ao ano de 2100.
Além disso os imigrantes obtêm o acesso automático e gratuito ao capital social no seu sentido mais lato (independentemente do modo em que for definido, como veremos mais adiante). A simples passagem do tempo permite aos migrantes potenciais poupar para financiarem o custo da viagem da emigração mesmo com um rendimento estagnado ou até em declínio. A gradual redução dos custos de transporte, e o fornecimento de transportes relativamente pouco dispendiosos ainda que arriscados e incertos, por parte de passadores e transportadores ilegais, contribui para a pressão migratória. Ainda mais forte é o efeito de diáspora das migrações precedentes, graças ao qual os migrantes potenciais contam com o apoio de pais e de amigos já emigrados com êxito; estes processos em cadeia reduzem o custo e o risco das migrações. Por fim, mas não mais importante, está realmente o abrandamento dos controlos de fronteira na sequência da crescente integração dentro da União Europeia (precisamente com o Tratado de Schengen, de 1985), e o baixo risco de se ser descoberto e penalizado no caso dos migrantes não autorizados caso cheguem ao destino.
3. A progressiva suspensão de Schengen
Por causa destas pressões migratórias, vários países do espaço Schengen reintroduziram controlos, barreiras e medidas de repressão, forçando países vizinhos a introduzi-los também para evitar a acumulação de migrantes no seu território.
No verão do 2015 a Hungria fechava as suas fronteiras com a Sérvia, a Roménia e a Croácia. A Eslovénia levantava barreiras na fronteira com a Croácia. No fim de agosto de 2015 Angela Merkel adoptava unilateralmente uma política “de fronteiras abertas” para os refugiados sírios, convidando-os a virem para a Alemanha independentemente do primeiro país da UE a que tivessem chegado. As mudanças posteriores de posição tiveram o efeito de acelerar ainda mais as migrações por medo de ulteriores restrições.
A Dinamarca restabelecia o controlo de passaportes na fronteira com a Alemanha, com a Suécia, que criou então os mesmos controlos sobre todos aqueles que vinham da Dinamarca. A França fechava o campo de migrantes em Calais, a chamada jungle (selva) onde viviam mais de 5000 residentes à espera de poderem vir a alcançar o Reino Unido por ferry ou através do Túnel em camiões, comboios ou mesmo a pé; a população residente no campo resistiu com violência ao seu encerramento. A Bélgica reintroduzia controlos na fronteira com a França para impedir que os migrantes expulsos de Calais se deslocassem ao longo da sua costa. A Áustria construía um muro na fronteira com a Eslovénia e fixava um tecto máximo de 80 requerentes de asilo por dia. Em 2015 os emigrantes que da Turquia passavam por mar para a Grécia aumentou 20 vezes em comparação com 2014. Reforçadas as fronteiras entre a Macedónia e a Grécia que, depois, foram completamente encerradas, transformando a Grécia num enorme campo de refugiados, num enorme warehouse of souls – num enorme “armazém de almas” (Tsipras).
A UE prometia à Grécia €700 milhões em 3 anos (dos quais 300 milhões em 2016 para assistência de emergência aos migrantes); propostas alternativas de redução parcial da dívida grega em troca de assistência aos emigrados eram recusadas, embora razoáveis, por medo de um possível risco moral. Em novembro de 2015 a UE tinha atribuído €3mil milhões à Turquia para a levar a reter pelo menos temporariamente os migrantes, mas três meses depois 2000 migrantes por dia passavam ainda para a Europa; em 20 de Março de 2016 a UE e a Turquia chegaram a acordo de modo que a partir de 4 de Abril a Turquia retomasse da Grécia os emigrantes que não apresentavam pedido de asilo ou cujo pedido tinha sido rejeitado, na condição que os membros da União Europeia retomassem igual número de sírios enviados pela Turquia; as ajudas da UE atingiam €6 milhares de milhões a que se devem acrescentar outros benefícios como o acesso de cidadãos turcos à UE sem necessidade de visto (o que, por sua vez gerará um afluxo de curdos turcos para a Europa). Pode chegar-se à conclusão que este acordo viola as regras das Nações Unidas, mas a UE é suficientemente poderosa para não se preocupar com isso desde que possa contar com a complacência dos seus juízes (Rowthorn 2016). O acordo poderia tornar-se a base de acordos futuros para controlar os fluxos migratórios e os repatriamentos. O encerramento da rota dos Balcãs naturalmente reactivava a via mediterrânica para a Itália (através da Albânia ou do Mediterrâneo meridional) para Chipre e para Espanha, levando a Áustria a fechar a fronteira do Brenner com a Itália assim como a fronteira com a Hungria. Para mais amplas informações sobre este ponto veja-se a precedente versão inglesa deste post.
Segundo um think-tank alemão, o fluxo de refugiados na Europa em 2016 é estimado entre 1,8 e 6,4 milhões, e este último número, o pior cenário, compreende uma percentagem elevada de migrantes vindos do norte de África. Uma recente sondagem da Gallup indica que 32% da população total da Africa Subsaariana, equivalente em termos absolutos a 308 milhões de pessoas em 2015, projectados para 685 milhões em 2050, emigraria de modo permanente para a Europa se para tal tivesse oportunidade. Sem contar com os imigrantes potenciais do Médio Oriente e do sudeste asiático.
As barreiras recentemente introduzidas expiram a 13 de Maio de 2016, e poderão ser prorrogadas por outros 18 meses, depois do que Schengen terá oficialmente acabado.
Domenico Mario Nuti, Schengen e la crisi europea delle migrazioni/1. Texto publicado na revista eticaeconomia-menabò, fundada por Luciano Barca. Texto disponível em: http://www.eticaeconomia.it/
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[1] Tradução de Júlio Marques Mota e revisão de Joaquim Feio.
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Curriculum Vitae et Studiorum
[Domenico] Mario Nuti is Professor of Comparative Economic Systems, University of Rome “La Sapienza”. E-mail address: nuti@dep.eco.uniroma1.it. Blog “Transition”: http://dmarionuti.blogspot.com/ He graduated in Law (Rome 1962), was a Fellow of the Polish Academy of Sciences in 1962-63 where he worked with Oskar Lange and Michael Kalecki, and obtained his PhD in Economics at Cambridge, England (1970), under the supervision of Maurice Dobb and Nicholas Kaldor. Formerly Fellow of King’s College, Cambridge (1965-79); Professor of Political Economy and Director of the Centre for Russian and East European Studies, University of Birmingham (1980-82); Professor of Economics, European University Institute, Florence (1982-90). President of the European Association for Comparative Economic Studies, 2001-2002. Author of numerous publications mostly on comparative economic systems, in particular on the economics of employee participation, the reform of Soviet-type systems and their post-communist transformations. Economic Adviser to the European Commission, DG II, on central eastern Europe (1990-93). Consultant to the World Bank and other international economic organisations. Specialist Adviser to the House of Lords European Communities Committee (1993-1994). Economic Adviser to the Polish Government within the European Union PHARE Programme (1994-1997; 2002-2003). Economic adviser to the Presidential Administration of Belarus, under World Bank (1998) and EC sponsorship (1999). Economic adviser to the Presidential Administration of Uzbekistan, within the European Union TACIS Programme (1999-2000). A Festschrift Volume in his honour, Transition and Beyond, edited by Saul Estrin, Grzegorz W. Kolodko and Milica Uvalic was published by Palgrave Macmillan, London 2007. FOR AN UPDATE AND THE DOWNLOAD OF PUBLICATIONS, SEE http://sites.google.com/site/dmarionuti/