Selecção e tradução de Júlio Marques Mota
A verdadeira natureza de Erdogan
Alexandre del Valle
Ensaísta e editorialista. Autor, entre outras publicações, de: La Turquie dans l’Europe, un cheval de Troie islamiste? ( A Turquia na Europa, um cavalo de Troia islamita?, edit. Les Syrtes, 2003) ; Le Complexe occidental. Petit traité de déculpabilisation, Éditions du Toucan, 2014; Le Chaos syrien. Printemps arabes et minorités face à l’islamisme, Dohw éditions, 2015.
La vraie nature de Monsieur Erdogan
Politique Internationale, nº 148, Verão de 2015
(conclusão)
…
Megalomania ou sonho de califado neo-otomano?
Atingido pela loucura das grandezas, Erdogan fez-se construir à sua medida um palácio presidencial imperial de 200 000 metros quadrados e 1150 divisões.
Inaugurado em Outubro de 2014, perto de Ancara, o palácio de mármore branco, Ak Saray (estilo “néoseljoukide”), teria custado 500 milhões de euros. O presidente turco recentemente eleito aí acolheu em grande pompa o seu homólogo palestino Mahmoud Abbas – protegido por uma fila de honra de militares vestidos com uniformes dos dezasseis Estados que já conheceu a Turquia durante a sua História. Uma mensagem forte enviada aos nacionalistas, aos panturquistas e aos islamitas (17). A este palácio acrescentam-se outros projectos neo-imperiais desmedidos: a construção de um terceiro aeroporto em Istambul que se chamará Recep Tayyip Erdogan (uma universidade e uma campo de futebol têm já o seu nome); e a edificação de duas novas supermesquitas em Istambul: uma na Praça Taksim (verdadeira provocação para os liberais e laicos); a outra com uma capacidade de 30 000 lugares que estará virada sobre o Bósforo desde a colina de Camlica, visível desde toda a cidade. Erdogan já anunciou o seu desejo de ser aí enterrado, como outrora os sultões.
Mas para ser o equivalente moderno de uma sultão, o líder turco procura, desde que acedeu às funções supremas, reforçar as prerrogativas constitucionais da sua presidência, de momento reduzidas a funções bastante simbólicas e bem menos largas que as funções de um primeiro ministro. Para esse efeito, contava sobre uma vitória nas eleições legislativas dr 7 de Junho de 2015 para rever a Constituição (oficialmente para adaptá-la “ às normas europeias de democracia”), o que exigia reunir dois terços dos votos no o Parlamento. Mas, pela primeira vez desde 2002, o partido de Erdogan não ganhou a maioria absoluta. O projecto de revisão da Constituição destinado a criar um regime presidencialista à sua medida foi, por conseguinte, parado imediatamente. O AKP teve que enfrentar uma mobilização sem precedentes da oposição liberal, curda, de esquerda e laica, nomeadamente desde as manifestações massivas da Praça Taksim na Primavera de 2013. Num contexto tenso (marcado por um atentado à bomba perpetrado aquando de uma reunião no dia 5 de Junho de 2015), o partido curdo HDP (Partido popular democrático) de Selahattin Demirtas excedeu largamente o limiar fatídico 10 %, dando-lhe assim a sua entrada no Parlamento com 80 deputados. Teve êxito em mobilizar em redor dele outras tendências da oposição: laico-progressistas, Arménios, Alévis, movimentos feministas, etc. para além dos Curdos progressistas do HDP. Convém recordar que o primeiro partido de oposição face ao AKP é o Partido republicano do povo (CHP), kemalista-laico, muito fortemente anti-islamita, que totalizou 25,1 % dos votos, à frente do Partido de Acção Nacionalista (MHP-direita dura), forte nos seus 16 % dos sufrágios, seguidamente o HDP com (13 %) dos votos.
Com efeito, se Recep Tayyip Erdogan – que detesta como todos os islamitas os ideólogos laicos e “ímpios” de Mustafa Atatürk (este aboliu o véu , a chária e o sultanato-califado em 1924) – estava muito agarrado a esta revisão porque ela ter-lhe -ia permitido fazer saltar os últimos ferrolhos kemalistas que impedem o AKP de re-islamizar de maneira profunda e definitiva o país, a Constituição actual, forjada pelos militares em 1982, proíbe nomeadamente os partidos islamitas e garante de maneira estrita o carácter laico da justiça e do Estado. Com efeito, este assalto final falhado contra o modelo militar e kemalista inscrevia-se na sequência lógica do processo da “ des-kemalização ” lançado pelo AKP a partir dos anos 2000 com o processo “Ergenekon”.
Retorno ao processo Ergenekon
Este processo, que permitiu lançar na prisão um grande número de personalidades anti-islamitas, tem o nome de um pequeno grupo acusado de ter urdido “uma conspiração” contra o Estado. De acordo com as autoridades turcas, este pequeno círculo compreendia ultranacionalistas, antigos oficiais nostálgicos dos regimes militares, os kemalistas partidários “do Estado profundo” e os intelectuais laicos, dos quais certas grandes figuras da imprensa turca. Na realidade, o poder da rede teria sido expresso de forma exagerada a fim de criar um pretexto destinado a reduzir ao silêncio os oponentes ao Islão político. Entre as pessoas presas, podemos citar Nedim Sener (18) ou o célebre jornalista Ahmet Sik, bem conhecido pelo seu combate contra as organizações conspiracionistas que vivem infiltradas no Estado. Pode-se também mencionar a detenção, em Istambul, em Janeiro de 2014, do antigo chefe de Estado-maior (2008-2010) do exército turco, Ilker Basbug, acusado ter estado na origem da criação de 42 sítios Internet de propaganda antigovernamental. Já, em Janeiro de 2008, outro oficial de elevada patente, o general Küçük, tinha sido preso. Ironia da história: entre os militares condenados pelos tribunais figuram os oficiais que tinham encarcerado Erdogan em 1997 por “incitamento ao ódio religioso”, depois proíbe o seu partido, o Fazilet partisi, antepassado do AKP.
Regressão do Estado de direito e da liberdade de expressão
No dia 8 de Julho de 2014, o Tribunal europeu dos direitos do homem (CEDH) condenou a Turquia por de ter mantido os jornalistas Nedim Sener e Ahmet Sik em detenção provisória durante mais de um ano sem motivo “relevante”. Estes últimos, que são acusados de terem revelado informações de interesse público sobre o processo dito Ergenekon, incorrem numa pena até quinze anos de prisão (19). Na Turquia, mais de 80 jornalistas estão atrás das grades por delitos de opinião, 500 outros estão expostos de maneira recorrente a processos judiciais. Esta situação cria um clima de medo difuso e gera uma verdadeira autocensura nos meios de comunicação social e nos partidos políticos da oposição
A Turquia ocupa o 154º lugar em 180 posições na classificação mundial de 2014 da liberdade de imprensa estabelecida por Repórteres sem fronteiras (20). No seu estudo mundial Índice democrático 2010, o Economic Intelligence Unit (EIU) descreveu a Turquia como um país “ de regime híbrido” (21). No que respeita à Internet, Facebook ou Twitter, o governo de Ancara é apontado regularmente a dedo pelo Tribunal europeu dos direitos do homem e pela Comissão de Bruxelas que lamentam as violações da liberdade de expressão e de e divulgação, ao considerar a Turquia como um dos países mais restritivos no mundo neste domínio. Mais de 6 000 sítios Internet foram fechados desde 2009. YouTube permaneceu inacessível durante dois anos. Esta censura tem às vezes também finalidades teocráticas: assim, os tribunais turcos ameaçaram fechar Facebook se as páginas que contêm “insultos” à imagem do profeta Mahomet não fossem retiradas dos servidores. A justiça turca bloqueia regularmente sítios julgados “ofensivos” para o Islão. Depois do atentado de 7 de Janeiro de 2015 em Paris, tinha proibido a divulgação sobre a Net das caricaturas de Maomé publicadas por Charlie Hebdo. Sempre em nome da “defesa do Islão”, o pianista turco Fazil Say foi condenado em 2013 a dez meses de prisão com pena suspensa por “infracção aos valores religiosos”. O seu crime? Ter publicado uma série de tweets julgados “ insultuosos ” para com o Islão
Uma outra maneira de pôr na ordem os seus opositores passa “pela taxa subjectiva” (22) que o ministério das Finanças impõe desde 2007 aos actores económicos recalcitrantes. O grupo de imprensa (laico) Dogan, por exemplo, foi condenado a uma multa de mais de 3 mil milhões de dólares em Setembro de 2009. O grupo, que ganhou todos os processos contra o governo junto do Conselho de Estado (Danistay), teve que entrar na ordem e moderar a mão dos seus jornalistas mais irreverentes para com o poder.
A deriva absolutista de Erdogan não poupou a potente confraria islâmica do Fethullahci. Forte de vários milhões de simpatizantes através do mundo, a sua figura tutelar é Fethullah Gülen, iman místico exilado aos Estados Unidos desde 1999 a fim de escapar às contínuas perseguições da justiça turca que o acusa pelas suas actividades anti-laicas (foi liberto em 2008). Gülen está à frente de uma muito forte rede de escolas que difundem o Islão e a cultura turca em numerosos países e que é apoiado pela holding mediática do diário Zaman. Preconiza a reconciliação entre a fé islâmica, o capitalismo, o liberalismo e a democracia e mantem boas relações com os Estados Unidos, os meios judaicos e com Israel. A confraria é acusada de se estar a infiltrar-se na administração, na política, na polícia e no aparelho judicial. Aquando da sua reeleição em 2011, Erdogan tinha recebido o seu apoio, com base numa oposição comum ao exército e ao “ Estado profundo” kemalista. Mas quando estoiraram as manifestações da Primavera 2013, a confraria denunciou a deriva autoritária do poder. Com efeito, ela entrou em guerra contra Erdogan depois da supressão “do dershane”, os estabelecimentos de apoio escolar privados de que o movimento tira uma boa parte dos seus rendimentos.
“Em represálias”, a confraria teria suscitado, em Dezembro de 2013, um vasto golpe de rede anticorrupção lançado pelo procurador de Istambul, Zekeriya Öz (próximo dos gulenistas). Cinquenta e seis pessoas foram colocadas em prisão preventiva entre os quais os filhos de três ministros, o presidente da câmara municipal (AKP) do bairro (islamita) de Fatih, em Istambul, burocratas e homens de negócios ligados ao sector da construção civil. Uma vertente importante do inquérito referia-se a vendas ilegais de ouro ao Irão, à violação do embargo internacional. Um homem de negócios iraniano, Reza Zarrab, terá estado no centro das transacções ocultas ligadas a estas vendas através do banco público turco Halk Bank. Dois outros inquéritos visavam tráficos cometidos aquando dos concursos para realizar obras públicas que implicam a Administração do habitat colectivo (TOKI) (23). A justiça suspeitava também da Fundação turca para o serviço dos jovens e da educação (Turgev), cujo filho de Erdogan, Bilal, é um dos seus líderes. Uma guerra das escutas seguiu-se entre o poder AKP e a confraria Gülen. A mais controversa relata uma conversação entre Bilal e o seu pai, que o aconselha a esconder 30 milhões de euros… Depois, o governo fez desaparecer as provas comprometedoras e procedeu a purgas na polícia e no aparelho judicial (24).
Em forma de conclusão
Estes obstáculos ao Estado de direito, aos direitos do homem e à liberdade de expressão obrigaram os responsáveis europeus a tirar as conclusões que se impõem. O Comissário ao Alargamento Stefan Füle declarou “seguir com preocupação as recentes acções da polícia contra os jornalistas” e apelou ao governo turco “ para alterar a sua legislação a fim de melhorar significativamente o exercício da liberdade da imprensa”. Em Março de 2011, já, antes mesmo da “primavera turca”, o Parlamento europeu tinha publicado o mais severo dos relatórios de etapa sobre a Turquia.
Certamente, Ancara não conta virar as costas à União Europeia, que continua a ser o seu primeiro parceiro económico. Em 2013, a parte da UE nas importações turcas atingia 36,70 % e 41,52 % para as suas exportações. Ainda que ela não acredite verdadeiramente, a Turquia permanece oficialmente no caminho da adesão. Os líderes europeus devem contudo compreender que esta não trocará os seus interesses estratégicos e os seus valores identitários contra o supranacionalismo europeu e o individualismo ocidental, nos quais a Turquia vê uma ameaça para a nação e para a religião. Aos olhos de Erdogan e do seu partido, a integração na UE não é um fim em si mas um meio que permite desmontar o velho sistema kemalista militar hostil aos islamitas e ao comércio livre. Com efeito, a União Europeia, com o seu “pacote de reformas legislativas” imposto em 2003 à Turquia no âmbito do processo de negociação com o propósito da adesão, exigiu e obteve a abolição do poder político do Conselho de segurança nacional (MGK) que outrora era controlado por militares e que lhes permitia fazer barragem às leis e aos governos islamitas (25). Sem estar a esquecer, evidentemente, o maná financeiro dos fundos estruturais – de vários milhares de milhões de euros por ano. Em todo o caso, se por acaso a Turquia se juntar um dia à UE, fá-lo-á da mesma maneira que a Grã-Bretanha antes dela – com as suas próprias condições, ou seja, em função dos seus interesses nacionais e identitários. E retirar-se-á – da mesma maneira que os Britânicos serão tentados talvez a fazê-lo- desde que eles não vejam os seus interesses completamente satisfeitos e que Bruxelas lhes resista. aos seus pedidos de derrogações
O mesmo se passa quanto à adesão à NATO: a Turquia mostrou desde as guerras do Iraque e, mais ainda, através do seu estranho jogo na Síria com os jihadistas e em Gaza com o Hamas, que ela não respeita o princípio de solidariedade atlântica senão quando este lhe é vantajoso. Acreditar que este país é “ocidental” sob pretexto de que é membro da NATO e que é “europeu” porque bate à porta da UE constitui um erro de análise por parte de numerosas instâncias de decisão ocidentais que confundem a identidade civilizacional do Ocidente (26) com considerações económicas, estratégicas ou institucionais. Um erro de que se espera não se venham a arrepender…
Alexandre del Valle, La vraie nature de Monsieur Erdogan. Texto disponível em:
http://www.politiqueinternationale.com/revue/read2.php?id_revue=148&id=1411&search=&content=texte
________
(17) Cada um destes soldados de museu simbolizava um dos dezasseis “impérios” da história turca, dos nómadas Xiongnu da Mongólia (IIº século antes de Cristo.) até aos Otomanos (1299-1923), passando pelos Mongóis e pelos Seldjoukides. De acordo com um deputado da oposição, Ali Demirçali, a nota de electricidade do palácio (de 18 de Dezembro de 2014 a 21 de Janeiro de 2015) ter-se-ia calculado em 410.276 euros! A presidente do sindicato das câmaras dos arquitectos e dos engenheiros de Ancara, Tezcan Karakus Candan, avalia as despesas de manutenção anuais da construção em 37,5 milhões de euros.
(18) Ahmet Sik (jornalista de investigação, autor de numerosas obras e sindicalista de reputação) e Nedim Sener (intelectual de oposição de língua francesa, ex-coordenador do sítio Oda TV e jornalista para o diário turco Posta) permaneceram encarcerados, tal como 106 outros jornalistas e escritores, durante 375 dias por terem utilizado a sua actividade mediática e editorial a favor da presumida organização terrorista “Ergenekon”. Entre o dia 18 de Fevereiro e o dia 3 de Março de 2011, uma grande parte dos outros colaboradores do sítio odatv.com próximos de Sener foram igualmente presos. Com efeito, os jornalistas foram punidos por terem coberto de maneira crítica o processo Ergenekon. Nedim Sener recebeu o Preço da liberdade da imprensa 2013 do Comité para a protecção dos jornalistas. Num acórdão do dia 8 de Julho de 2014, o Tribunal europeu dos direitos do homem condenou a Turquia por de ter violado os direitos e as liberdades destes dois jornalistas de investigação.
(19) Em maio de 2014, Ahmet Sik foi recompensado pelo Prémio mundial da liberdade da imprensa UNESCO Guillermo Cano. Quanto a Nedim Sener, foi laureado em 2010 pelo Instituto internacional da imprensa.
20) Cf. http://rsf.org/index2014/fr-index2014.php. Ler também o relatório de inquérito de RSF: Meios de comunicação social e justiça em Turquia: “Um livro não é uma bomba! ”, 16 de Junho de 2011.
(21) o EIU (Economist Inteligência Unit ) classifica os países em quatro categorias: democracias perfeitas, democracias imperfeitas, regimes híbridos e regimes autoritários. A Turquia pode ser qualificada de regime híbrido.
(22) Fonte de temor para a comunidade económica e para as instituições democráticas, “a taxa subjectiva” é uma espécie de punição política na forma de correcção fiscal. Instaurada pelo ministério das Finanças em 2008, sobre decisão de Erdogan e do AKP, visa a fazer calar ou arruinar os responsáveis económicos que não partilham as opiniões do poder islamita. É assim que o muito célebre grupo de imprensa Dogan foi condenado a pagar uma multa de mais de 3 mil milhões de dólares em Setembro de 2009, embora tivesse ganho todos os processos contra o governo AKP junto do Conselho de Estado turco. Vejam-se : Cf. « Inquiétudes venues de Turquie à la veille des élections législatives », Question d’Europe, no 208, 6 juin 2011 ; http://www.robert-schuman.eu/fr/questions-d-europe/0208-inquietudes-venues-de-turquie-a-la-veille-des-elections-legislatives
(23) O filho do antigo ministro do Ambiente, Abdullah Oguz Bayraktar, alguns responsáveis do ministério bem como o presidente da câmara municipal AKP do distrito de Fatih, Mustapha Demir, foram considerados suspeitos por terem falsificado estes mercados públicos.
(24) 6.000 polícias entre os quais os prefeitos de polícia e 20 procuradores foram transferidos. O Alto Conselho dos juízes e dos procuradores (HSYK) encarregado de nomear os altos magistrados é colocado sob o corte de despesas pelo ministério da Justiça. O controlo do Estado sobre a nomeação dos juízes e dos procuradores foi ratificado pela lei do 15 de Fevereiro.
(25) Veja-se Jean-Louis Balans, « Armée et politique en Turquie ou la démocratie hypothéquée », Pouvoirs, 2005/4 (no 115), pp. 55-72.
(26) Veja-se Alexandre del Valle, Le Complexe occidental, Éditions du Toucan, 2014.
________
Ver o original em:
http://www.politiqueinternationale.com/revue/read2.php?id_revue=148&id=1411&search=&content=texte