Selecção e tradução por Júlio Marques Mota
Os meios de comunicação social andam a enganar a opinião pública sobre a guerra na Síria
Stephen Kinzer, The media are misleading the public on Syria
Boston Globe, 18 de Fevereiro de 2016
A cobertura da guerra síria será lembrada como um dos episódios mais vergonhosos da história da imprensa americana. Relatórios sobre a carnificina na antiga cidade de Aleppo são a ilustração mais recente do que acabo de afirmar.
Há três anos que militantes violentos têm controlado Aleppo. O seu governo começou logo com uma onda de repressão. Começaram imediatamente a distribuir avisos à população do tipo: “Não mandem os vossos filhos para a escola. Se o fizerem, ficaremos com as suas mochilas e vocês com os seus caixões. ” Depois, destruíram fábricas, esperando que os trabalhadores desempregados não teriam outra alternativa do que tornarem-se combatentes ao lado deles. Eles têm trazido máquinas roubadas para a Turquia para as venderem aqui.
Este mês, as pessoas em Aleppo viram finalmente alguns sinais de esperança. O exército sírio e seus aliados conseguiram empurrar estes combatentes islâmicos para fora da cidade. Na semana passada, recuperaram a principal estação produtora de energia. O fornecimento regular de electricidade será em breve restabelecido. Espera-se assim que o medo instalado por estes militantes na cidade esteja a desaparecer.
Militantes fieis à sua formação, estão a provocar enormes estragos enquanto são forçados a fugir da cidade pelas forças do Exército russo e sírio. “Os rebeldes ditos moderados apoiados pelos turcos e pelos sauditas regaram os bairros residenciais de Aleppo com misseis não guiados e frascos de gás”, escreveu um morador Aleppo nos media sociais. Um analista a viver em Beirute, Marwa Osma, perguntou: “O Exército Árabe da Síria, que é dirigido pelo presidente Bashar Assad, é a única força no terreno, em conjunto com os seus aliados, que está a lutar contra o ISI – será então que querem enfraquecer o único sistema que está a combater contra o ISIS ? “
Isso não se encaixa com a narrativa de Washington. Como resultado, uma grande parte da imprensa americana está a relatar o oposto do que está realmente a acontecer. Muitas reportagens sugerem que Aleppo foi durante três anos ” uma das zonas libertadas”, mas agora está a ser empurrada para trás e a cair na miséria.
Os americanos estão a ser informados de que a via virtuosa na Síria é a luta contra o regime de Assad e dos seus parceiros russos e iranianos. Devemos ter esperança de que uma justa coligação constituída por americanos, turcos, sauditas, curdos, e pela “oposição moderada” irá vencer .
Esta situação é um complicado absurdo, mas os americanos não podem ser responsabilizados por acreditarem nisto. Nós temos quase nenhuma informação verdadeira sobre os combatentes, sobre os seus objectivos ou sobre as suas tácticas. Muita culpa do que se está a passar deve-se ao comportamento dos nossos meios de comunicação.
Sob uma enorme pressão financeira, a maioria dos jornais, revistas e redes de televisão americanas têm reduzido drasticamente o seu corpo de correspondentes estrangeiros. Tantas notícias importantes sobre o mundo de agora vêm de repórteres sediados em Washington. Nesse ambiente, o acesso e credibilidade dependerá da aceitação de paradigmas oficiais. Os repórteres que cobrem a Síria estão em linha com o Pentágono, o Departamento de Estado, a Casa Branca, e os think tank (grupos de pressão) “especializados”. Depois de uma viagem neste carrocel bem sujo eles sentem que cobriram todos os lados da história. Esta forma de estenografia gera o paleio que são afinal as notícias publicadas sobre a Síria.
Surpreendentemente, os bravos correspondentes na zona de guerra, incluindo americanos, pretendem enviar relatórios que se opõem aos relatórios publicados pelos jornalistas sediados em Washington. Com grande risco para a sua própria segurança, esses repórteres estão esforçar-se perigosamente para encontrar a verdade sobre a guerra na Síria. As suas reportagens muitas vezes iluminam a escuridão criada pelo pensamento único. No entanto, para muitos consumidores de notícias, as suas vozes perdem-se na cacofonia. Estes mesmos relatórios feitos sobre o terreno são muitas vezes esmagados pelo consenso de Washington.
Os repórteres sediados em Washington dizem-nos que uma força potente na Síria, a Frente al-Nusra , é composta de “rebeldes” ou “moderados”, e que isto não que é a marca da Al-Qaeda local. A Arábia Saudita é retratada como estando a ajudar os combatentes da liberdade quando na verdade a Arábia Saudita é um dos principais patrocinadores do ISIS. A Turquia tem estado desde há anos consecutivamente a fazer funcionar “ratline” (linhas de passagem) para os combatentes estrangeiros que desejam participar nos grupos terroristas na Síria, mas uma vez que os Estados Unidos querem permanecer no lado bom da Turquia, ouvimos falar muito pouco sobre isto. Nem estamos sempre a lembrarmos-nos que, embora queiramos apoiar os secularmente endurecidos combatentes curdos, a Turquia quer é matá-los. Tudo o que a Rússia e o Irão façam na Síria é descrito como negativo e desestabilizador, simplesmente porque são eles que o estão a fazer – e porque essa é a linha oficial em Washington.
Inevitavelmente, este tipo de desinformação tem manchado a campanha presidencial norte-americana. No recente debate em Milwaukee, Hillary Clinton afirmou que os esforços de paz das Nações Unidas na Síria foram baseados “num acordo que ela negociou em Junho de 2012 em Genebra.” Exactamente é o oposto do que é verdade. Em 2012, a secretária de Estado Clinton juntou a Turquia, Arábia Saudita e Israel, num esforço bem sucedido para matar o plano de paz da ONU de Kofi Annan porque este teria apoiado o Irão e teria mantido Assad no poder, pelo menos temporariamente. Ninguém no estágio de Milwaukee sabia o suficiente sobre isto para a corrigirem .
Os políticos podem ser perdoados por distorcerem as suas acções passadas. Os governos podem também ser desculpados por andarem a promover a narrativa que acreditam ser a que mais lhes convém. Os jornalistas, no entanto, devem permanecer à parte dos círculos das elites no poder e das suas puras falsidades. A crise actual pôs bem à luz do dia o seu falhanço total neste plano.
Os americanos são considerados os ignorantes do mundo. Nós somos, mas assim são também as pessoas de outros países. Se as pessoas no Butão ou na Bolívia não compreendem a situação na Síria, daí, no entanto, não vem grande mal ao mundo . A nossa ignorância é mais perigosa, porque nós agimos sobre o mundo. Os Estados Unidos têm o poder de determinar a destruição de nações. Pode fazê-lo com o apoio popular, porque muitos americanos – e muitos jornalistas – estão contentes com a história oficial. Na Síria, esta é: “Lute contra Assad, Rússia e Irão ! Junte-se a nós, aos turcos, aos sauditas, aos curdos, para apoiar a paz! “Esta narrativa está espantosamente longe da realidade. Ele também é susceptível de vir a prolongar a guerra e condenar mais sírios ainda ao sofrimento e à morte.
Stephen Kinzer is a senior fellow at the Watson Institute for International Studies at Brown University. Follow him on Twitter @stephenkinzer.
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