NO CORAÇÃO DAS TREVAS, AS GRANDES INSTITUIÇÕES INTERNACIONAIS, E NÓS À PROCURA DA LUZ AO FUNDO DO TÚNEL COMO SAÍDA PARA A CRISE? IMPOSSÍVEL – 3. PORQUE É QUE A FIRMEZA DE BRUXELAS CONTRA A ESPANHA E PORTUGAL É UM ENORMÍSSIMO ERRO – por ROMARIC GODIN

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Uma série sobre o caminho da agonia do capitalismo

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Selecção, tradução e nota introdutória de Júlio Marques Mota

La tribune

 

Porque é que a firmeza de Bruxelas contra a Espanha e Portugal é um enormíssimo erro

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Romaric Godin, Pourquoi la fermeté de Bruxelles contre l’Espagne et le Portugal est une erreur majeure

La Tribune, 7 de Julho de 2016

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A Comissão inicia os procedimentos de sanções contra Portugal e Espanha.

(Crédits: Reuters)

 

A Comissão europeia lançou o procedimento de sanções contra a política orçamental da Espanha e Portugal. Uma decisão tomada sob a ameaça da Alemanha e que está carregada de riscos para a UE e para a zona euro.

Como terá sido difícil tomar esta decisão! Previsto para terça-feira 5 de julho, o parecer da Comissão europeia sobre a trajetória orçamental da Espanha e Portugal foi finalmente publicado com um atraso de dois dias. Prova dos tormentos incríveis por que o executivo europeu terá passado, apanhado entre o martelo e a bigorna. O martelo, é a Alemanha que, desde há vários dias já não hesita em tornar pública a sua posição e a sua irritação no que diz respeito a uma Comissão julgada demasiado laxista e que, pela voz do seu ministro das Finanças Wolfgang Schäuble não hesita sequer em propor “procurar um caminho mais curto” para Bruxelas impor “o respeito das regras”. A bigorna, é o risco de forçar Portugal e a Espanha a efetuar um outro apertar do parafuso chamado austeridade orçamental mesmo no momento em que, após o Brexit, a hora está para o reaparecimento do risco financeiro e económico e em que se evoca “uma renovação” da integração europeia com mais solidariedade.

A caminho das sanções

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Durante dois dias, circularam as informações mais contraditórias. A imprensa portuguesa assegurava que Bruxelas mostrar-se-ia magnânima, a imprensa espanhola falava da abertura de um procedimento de sanções. Ainda aqui, é o reflexo de discussões muito intensas e sem dúvida tensas entre os partidários “da linha dura” e a do pragmatismo. Mas entre o realismo económico e a sua própria sobrevivência como instituição, a Comissão finalmente escolheu a segunda opção. Para acalmar Berlim e os países do Norte, optou pela firmeza, considerando que Portugal e a Espanha não tinham tomado suficientemente medidas para corrigir a sua trajetória orçamental.

Esta decisão é essencial: é o primeiro passo para iniciar sanções contra os dois países que podem chegar aos 0,2% do PIB. Certamente, não há no imediato a questão de sanções. O Conselho de Ministros das Finanças (ECOFIN) deve confirmar a apreciação da Comissão para lançar oficialmente o procedimento. Será pedido de seguida aos dois países “novos esforços”. Mas, em suma, no quadro das diretivas TwoPack e Six -Pack, a Comissão pode pedir sanções e será necessário “uma maioria invertida” para bloquear esta decisão ou, por outras palavras, será necessário que dois terços das vozes ponderados do conselho europeu votem contra as sanções de modo a que estas sejam abandonadas. Sobretudo, trata-se efetivamente de uma mensagem enviada a Madrid e Lisboa: corrijam as vossas trajetórias ou será aprovada a aplicação de sanções. Está por conseguinte efetivamente colocado em cima da mesa um convite à austeridade.

Aqueles que, em Maio, quando a Comissão tinha adiado a sua decisão por dois meses, após as eleições espanholas do 26 de junho, tinham proclamado “a morte do pacto de estabilidade e de crescimento”, por conseguinte, enganaram-se. Bruxelas vem confirmar frontalmente que a zona euro dispõe de uma política económica fundada sobre a austeridade e a obediência cega a regras “metafísicas” tomadas fora de qualquer realidade económica concreta. Esta obediência às regras é uma das estruturas fundadoras do pensamento ordoliberal alemão que registou neste 7 de julho uma vitória importante.

Urgência em bater?

Certamente, no final de 2015, os défices portugueses e espanhóis eram de 4,4% e 5,1% do PIB, ou seja acima dos 3% do PIB respetivamente autorizados, mas é necessário recordar que a zona euro luta ao mesmo tempo contra um crescimento e uma inflação fraca e que o seu défice público acumulado é de 2,4% do PIB, enquanto que afixa um excedente na balança corrente de 3% do PIB. Não há por conseguinte nenhum problema “global” de défice: “os desvios” português e espanhol não põem em perigo a estabilidade da zona euro. Estes verificam-se numa altura em que os dois países têm sido as vítimas de violentas políticas de austeridade que provocaram recessões importantes. Por fim, o ajustamento unilateral das finanças públicas não permitiu que se reduzisse os défices e a dívida. É uma estratégia que falhou. E em que a Comissão se obstina em continuar. A sua decisão deste 7 de julho poderá contudo ser um erro enormíssimo cheio de consequências, e por várias razões.

Resposta inadaptada

Primeiro, porque coloca os dois países em situações económicas difíceis. A Espanha teve, seguramente, desde 2013 um crescimento vigoroso, mas este último explica-se em grande parte pelo fim da austeridade e pela baixa do preço da energia. O ciclo desta última está quase a acabar. Se o país tiver de se lançar num ajustamento orçamental de grande amplitude como quer a Comissão, o crescimento poderia ressentir-se muito fortemente. Em Portugal, a austeridade não permitiu fazer retornar um crescimento forte, e o crescimento tem sido inferior a 2% desde 2013. Os dois países viram a emigração acelerar, as desigualdades explodir e têm taxas de inflação muito baixas. A cura que propõe a Comissão não poderá tratar destes mal causados em grande parte pela mesma medicamentação. Ela ameaça enfraquecer o crescimento e aumentar ainda a dívida e os défices.

Acrescentar o risco deflacionista ao risco deflacionista

Do resto, atingindo de forma extremamente dura os orçamentos espanhóis e portugueses, a Comissão envia uma mensagem ao resto da zona euro: o respeito das regras é a única “agulha na sua bússola”. Esta coloca-se no sentido inverso ao do BCE. Sem dúvida, um tal rigor teria sentido se fosse acompanhado de uma solidariedade europeia real que permitisse apoiar a atividade destes dois países. Mas como esta solidariedade é reduzida ao nível do fantasmagórico do plano Juncker, o efeito arrisca-se a ser muito negativo: a Comissão exige com efeito uma política deflacionista  quando o BCE tenta reavivar a inflação à custa de centenas de milhares de milhões de euros colocados nos mercados. Bruxelas faz por conseguinte tudo o que lhe é possível para isolar ainda mais o BCE e tornar a sua política inoperante.

Ter-se-ia podido imaginar que a Comissão tomasse conhecimento da recusa de Berlim de fazer funcionar as suas margens de manobra orçamentais deixando os países em défice ir no seu comboio tendo em conta as taxas de inflação fracas que complicam ainda mais as suas tarefas. Mas não, a Comissão continua  em não pensar senão em termos de ajustamento unilateral. Portanto, não são somente os Portugueses ou os Espanhóis que são visados: os franceses, italianos ou belgas devem ter também que apertar um pouco mais os parafusos da austeridade. A consequência desta decisão é por conseguinte incentivar os agentes económicos à prudência e a poupança. Exatamente o que não se deve agora de modo nenhum incentivar enquanto as tensões reaparecem na sequência do Brexit. Pierre Moscovici, o Comissário para os Assuntos Económicos, pode pretender que só aplica “regras inteligentes”, esta decisão é uma inépcia económica na situação atual.

Risco para Portugal

Tanto quanto ela coloca um grave perigo sobre Portugal, em especial. A dívida deste país é mantida na flexibilidade quantitativa (“QE”) do BCE, o seu programa de resgate de títulos públicos, e isto devido apenas ao facto de que a agência de notação canadiana DBRS lhe atribuiu ainda uma notação “de investimento”. Com esta decisão da Comissão, a agência estará sob pressão para baixar a nota portuguesa. Ora, se o fizer, Portugal imediatamente será excluído do QE. A taxa da sua dívida arrisca-se a  explodir. Ainda tanto mais quanto nestes tempos estamos numa situação “de fuga para a qualidade”. O QE do BCE age como uma espécie de seguro para os investidores. Se ele desaparecer, Portugal arrisca-se a ter que enfrentar uma nova crise da dívida. Deverá então aceitar um novo “programa de ajustamento” para beneficiar quer do QE com uma derrogação, ou então do programa OMT de resgates ilimitados de uma dívida soberana pelo BCE. O país arrisca-se então a afundar-se numa nova recessão. A decisão da Comissão é grave porque em plena tormenta pós Brexit, corre o risco de criar uma nova crise financeira.

Decisão política

O governo português, dirigido pelo PS com o apoio de dois partidos de esquerda radical, não poderia sobreviver a uma tal crise. O presidente da República conservador pode não perder a ocasião de dissolver a Assembleia para trazer a direita ao poder. A decisão da Comissão, imposta por Berlim, é eminentemente política, mas é extremamente perigosa, porque pode alimentar a corrente eurocética. O Bloco de Esquerda e o Partido Comunista português não deixarão então de fazer campanha contra a UE. Terão ainda mais argumentos que, este 7 de julho, a Comissão sancionou a ação do governo conservador precedente sem estar a deixar nenhuma possibilidade ao atual governo, em exercício desde o fim de Novembro de 2015…

Na Espanha, a Comissão impõe ao próximo governo cortes nas despesas na mesma altura em que o PP de Mariano Rajoy tem dificuldade em alcançar uma coligação e que, ele mesmo, prometeu não ir recorrer a novas baixas de despesas, prometendo mesmo baixas de impostos. Com esta decisão, Mariano Rajoy arrisca-se a ter ainda mais dificuldade em  construir uma maioria: quem aceitará governar para restabelecer a austeridade? Além disso, estas medidas arriscam-se a atingir duramente as comunidades autónomas (regiões) espanholas, entre as quais a Catalunha. Tudo isto será mais uma razão para os Independentistas desta região, que se dividem precisamente sobre a questão orçamental, reencontrarem  a sua unidade contra um Estado espanhol que mina as bases do Estado providência. A decisão da Comissão é tanto politicamente como economicamente um verdadeiro absurdo.

Resposta inadaptada ao Brexit

É-o tanto mais inadaptada quanto parece estar a fechar a discussão sobre o futuro da zona euro depois da terrível bofetada do voto britânico sobre o Brexit. Dois dias depois desta votação, os ministros franceses e alemães dos Negócios estrangeiros, Jean-Marc Ayrault e Frank-Walter Steinmeier tinham proposto terminar com “os ajustamentos unilaterais”, julgando-os “politicamente perigosos”. A lição não foi retida pela Comissão que procura claramente doravante assemelhar-se à “instância independente” encarregada aplicar as regras sem mais considerações com que tanto sonha Wolfgang Schäuble. Seguindo esta via, Bruxelas terá efetivamente dificuldade, amanhã, em vir defender  mais solidariedade na zona euro. A proposta Ayrault/Steinmeier parece já morta e enterrada. Não há necessidade de esperar pela cimeira de Bratislava do mês de setembro para o saber: não haverá “salto qualitativo” da zona euro com mais solidariedade.

Este 7 de Julho de 2016 marca a vitória de Wolfgang Schäuble na zona euro. As regras são seguramente respeitadas mas os que acreditam que este respeito irá salvar a zona euro bem podem estar a cometer um grande erro. Porque os défices são apenas o reflexo dos desequilíbrios internos na zona euro. Recusar regular estes desequilíbrios, recusar ver o impacto da inflação fraca sobre as contas públicas, recusar levar em conta os efeitos desastrosos da inflação passada sobre o capital produtivo dos países atingidos e compreender que a zona euro não pode sobreviver com um excedente corrente alemão de 8% do PIB, é recusar querer realmente “reformar” a zona euro. É estar cego sobre uma doutrina que fez já bem a prova dos seus grandes fracassos. É no entanto o comportamento da Comissão. A resposta ao Brexit será por conseguinte fraca e inadaptada. Os eurocéticos de todos os quadrantes podem esfregar-se as mãos: a incapacidade de reforma da UE, hoje, foi provada com um grande estrondo.

 

Romaric Godin, La Tribune,  Pourquoi la fermeté de Bruxelles contre l’Espagne et le Portugal est une erreur majeure.

Texto disponível em: http://www.latribune.fr/economie/union-europeenne/pourquoi-la-fermete-de-bruxelles-contre-l-espagne-et-le-portugal-est-une-erreur-majeure-585162.html

Fonte: La Tribune, Romaric Godin, 07/07/2016

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