Uma tentativa de golpe de Estado moderno sob a égide da União Europeia na Itália a 4 de Dezembro de 2016 – O desastre Italiano por Perry Anderson III

Selecção de Júlio Marques Mota

Uma tentativa de golpe de Estado moderno sob a égide da União Europeia na Itália a 4 de Dezembro de 2016

O desastre Italiano

Perry Anderson at the Frontiers of Thought conference, Porto Alegre, Brazil, 2013
Perry Anderson

Perry Anderson, The Italian Disaster, London Review of Books

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(continuação)

Pouco tempo depois, Napolitano tornou-se ministro do Interior no governo de centro-esquerda, em 1996. Foi a primeira vez que alguém da esquerda se tinha tornado o responsável por este ministério. O envolvimento da polícia italiana e o aparato dos serviços secretos na chamada estratégia da tensão – uma série de atentados à bomba desde o massacre de Piazza Fontana em Milão em 1969 até ao da estação de comboios de Bolonha, em 1980 – tinham sido certificados mas nunca investigados. Qualquer que tenha sido o nervosismo que possa ter sido causado por um comunista ter ocupado este ministério pela primeira vez, desde logo se dissipou. Napolitano assegurou aos seus subordinados que não estava “à procura de esqueletos no armário”. Nem as revelações a despropósito perturbaram o seu ministério. Foi nomeado senador vitalício em 2005. Tornou-se presidente da República um ano mais tarde, e nessa função lamentou publicamente que Craxi – que morreu no exílio na Tunísia, depois de ter sido condenado à revelia a 27 anos de prisão por uma monumental corrupção – tenha sido tratado de modo muito injusto, ao mesmo tempo que elogiava o seu papel construtivo como um homem de Estado.

Napolitano não teve a mesma consideração para com Berlusconi, vendo-o com uma benigna condescendência– e também alguma justiça – como não sendo de modo nenhum um verdadeiro político, no sentido do que tinham sido as principais figuras da primeira República. Os dois homens de qualquer forma não poderiam ter estado em mais clara oposição em termos de estilo, uma vez que o decoro cerimonioso do Napolitano era um contraste estudado relativamente ao comportamento e ar afectado de Berlusconi. Mas eles partilharam um fundo comum no conjunto das simpatias e das ligações criadas à volta de Craxi em Milão, e um interesse comum em estabilizar o que cada um via como sendo os ganhos potenciais da Segunda República: um sistema político bipolar ao longo de linhas anglo-saxónicas, confinado entre um centro-direita e um centro-esquerda, limpo de hostilidade para com o mercado e para com o seu guardião transatlântico. Pelas suas próprias razões, cada um deles também temia a persistência dos seus adversários em desenterrarem acusações contra o líder mais popular do país, e o ressentimento das minorias irresponsáveis em insistirem nelas.

Para Berlusconi estas eram, claro, ameaças existenciais. Para Napolitano eram simplesmente acusações divisionistas, tal como o tinha sido o moralismo do Berlinguer, que com a sua insatisfação fazia baloiçar o barco do consenso moderado que o país exigia. Napolitano estava mais que disposto a ajudar Berlusconi a proteger-se de tais problemas, assinando em lei e sem hesitação o Lodo Alfano de 2008 garantindo a imunidade a Berlusconi como primeiro-ministro e a ele próprio como Presidente; e quando isto foi considerado inconstitucional, ratificou-se com igual rapidez a lei substituta aprovada em 2010, legitimo impedimento a permitir aos ministros evitarem julgamentos, invocando as obrigações prementes como ministros servidores da Res pública e que foi considerada, por sua vez, inconstitucional em 2011. Napolitano foi publicamente criticado pela sua inconveniente aprovação da primeira por Ciampi, seu antecessor na Presidência e não tinha nenhuma obrigação de andar ao sabor das ondas, antes pelo contrário, como se mostra com os resultados jurídicos sobre cada uma das suas aprovações. As acções do Napolitano, no entanto, estavam de acordo com as expectativas de Berlusconi relativamente ao modus vivendi entre eles, na base do qual este o tinha apoiado para ser Presidente. Uma expressão ainda mais pronunciada desse entendimento deu-se quando a deserção de Fini privou o governo de Berlusconi de uma maioria na Câmara, e a oposição apresentou um voto de censura com os votos na mão para derrubar o governo. Em 2008, Prodi tinha estado numa situação semelhante depois de Berlusconi ter comprado votos suficientes no Senado para o derrubar, um episódio relativamente ao qual está actualmente indiciado de ter pago a um senador € 3 milhões para virar de casaca, um suborno que o destinatário já confessou. Então, Napolitano perdeu pouco tempo – menos de uma quinzena – para utilizar a sua prerrogativa presidencial para dissolver o Parlamento e exigir novas eleições, o que foi uma avalanche para Berlusconi. Agora, no entanto, Napolitano persuadiu Fini a manter-se por mais de um mês, até que fosse aprovada uma lei orçamental, permitindo que Berlusconi ganhasse tempo para comprar o punhado de deputados necessário para restaurar a sua maioria.

Este foi, no entanto, o último favor que Napolitano concederia. Ele estava a preparar-se para tomar o assunto nas suas próprias mãos. Na Primavera de 2011, o governo anunciou que não se estava a juntar ao ataque americano sobre a Líbia, sobre o qual a Liga do Norte se tinha categoricamente afirmado contra, ameaçando derrubá-lo se o fizesse. Napolitano sabia melhor: as expectativas sobre Washington eram mais importantes do que as subtilezas da Constituição. Sem qualquer votação no Parlamento, ou mesmo sem nenhum debate sobre o assunto, lançou a Itália na guerra tendo obtido o apoio dos ex-comunistas para o envio de uma expedição da sua força aérea para bombardear um vizinho com o qual tinha assinado um Tratado de Amizade, Cooperação e Aliança Militar, ratificada por uma maioria esmagadora na Câmara – incluindo os ex-comunistas – apenas dois anos antes.

No Verão, encorajado pelo aumento da bajulação sobre ele próprio nos media como sendo a rocha onde se apoia a República e com o apoio de Berlim, Bruxelas e Frankfurt, Napolitano decidiu então correr com Berlusconi. A chave para o fazer e sem problemas foi encontrar um substituto que fosse aceite pelos parceiros citados e pelo mundo dos negócios de Itália. Felizmente, a figura ideal para todos eles estava ali mesmo à mão: Mario Monti, ex-comissário da UE, membro do Grupo Bilderberg e da Comissão Trilateral, um assessor de Goldman Sachs e agora presidente da Universidade Bocconi. Monti estava ansioso desde há algum tempo pela situação que se acabava de lhe ser apresentada. “O governo italiano pode tomar decisões difíceis”, confidenciou a The Economist em 2005,” se estiverem reunidas duas condições: deve haver uma clara situação de emergência e uma forte pressão do exterior. Nessa altura, lamentou assim ,” um tal momento de verdade está a faltar.” Esse momento chegou.

Logo em Junho ou Julho, em completo sigilo, Napolitano preparou Monti para assumir o governo. No mesmo período, encomendou à direcção do maior grupo bancário do Itália, Corrado Passera, a elaboração de um plano económico confidencial para o país. Passera foi um ex-assessor de Berlusconi, um arqui-inimigo político e rival de negócios de Carlo De Benedetti, proprietário do La Repubblica e L’Espresso, que estava a par dos movimentos de Napolitano. Em itálico premente, o documento de 196 páginas de Passera propôs uma terapia de choque: € 100 mil milhões como sendo o valor das privatizações a alcançar, impostos sobre a habitação, impostos, sobre o capital, um aumento do IVA. Napolitano, telefonou a Merkel e, sem dúvida, a Draghi, tinha agora o homem e o plano para colocar Berlusconi na rua. Monti nunca tinha sido proposto em nenhuma eleição, e embora um lugar no Parlamento não fosse necessário para a investidura como primeiro-ministro, ter um assento poderia ajudá-lo.

Não havia tempo a perder: em 9 de Novembro, abandona Bocconi, e Napolitano nomeia Monti como senador vitalício, com o aplauso da imprensa do mundo financeiro. Sob a ameaça de destruição pelos mercados obrigacionistas caso resistisse, Berlusconi capitulou e no espaço de uma semana Monti foi empossado como o novo governante do país, à frente de um gabinete não eleito composto por banqueiros, empresários e tecnocratas. A operação que tinha sido realizada é bem uma ilustração expressiva do que os procedimentos ditos “democráticos” e do Estado de direito podem significar na Europa de hoje. Isto foi totalmente inconstitucional. O presidente italiano é suposto ser o guardião imparcial de uma ordem parlamentar, que não interfere com as suas decisões de a salvar quando se está perante uma violação da constituição – situação em que ele claramente falhou. Ele não tem poderes para conspirar, por detrás das costas de um primeiro-ministro eleito, com indivíduos da sua escolha, nem mesmo no Parlamento, para formar um governo a seu gosto. A corrupção dos negócios, a burocracia e a política na Itália é agora agravada pela corrupção da Constituição.

No momento, o que se terá passado nesse Verão por debaixo da protecção presidencial permaneceu no segredo dos Deuses. Isto veio somente à luz do dia este ano e pela boca do próprio Mario Monti, um naif em tais assuntos, com os desmentidos agressivos de Napolitano. Entretanto, a reacção do establishment para com o novo governo variou entre o alívio e a euforia. Aqui, finalmente – na opinião generalizada de comentadores nacionais e estrangeiros – foi uma segunda chance para a Itália virar a página que teria sido perdida depois da queda da primeira República. Finalmente, um governo honesto e competente está ao leme do país, não apenas empenhado em sérias reformas do muito do que está errado na Itália – rigidez dos mercados de trabalho, pensões exorbitantes, nepotismo das Universidades , restrições corporativas sobre os serviços, a falta de concorrência industrial, insuficiente privatização de empresas e serviços, um bloqueio da justiça, a evasão fiscal – mas capaz de dominar as tempestades financeiras que agora nos estão a atingir. Uma nova segunda República, o que é importante, poderia agora surgir depois de vinte anos de andarmos a assistir a um baile de máscaras. Profundos cortes nas despesas públicas, duras medidas fiscais e o início de mudanças na legislação laboral desastrosa da década de 1970 seriam as primeiras etapas bem-vindas para restaurar a confiança no país.

Visto de outro ângulo, havia de facto semelhanças entre a conjuntura do início dos anos 1990, quando Ciampi, então governador do Banco de Itália, foi convocado para ser um primeiro-ministro forte no auge da crise Tangentopoli. Mas estas semelhanças não são tranquilizadoras. A administração Monti assemelhava-se na composição e na intenção à de Ciampi. Mas muito tinha mudado neste intervalo de tempo, sobretudo sobre o meio de que as novas figuras eminentes da nova ordem – Monti e o seu fiador em Frankfurt, Draghi – vieram, [ou seja, vieram da Goldman Sachs]. Em 1994, Berlusconi apresentou-se como um inovador vindo de uma base empresarial cuja vitória poderia levar a que fosse enterrada a corrupção e a desordem da classe política da Primeira República, quando na realidade ele devia a sua fortuna esmagadoramente a isso mesmo. Em 2011, a crise que aflige a Itália e a zona euro tinha sido desencadeada por uma enorme onda de especulação financeira e pela manipulação sobre os mercados de derivados nos dois lados do Atlântico. Não há nenhum operador que tenha sido tão notoriamente importante nessa deriva financeira como a própria empresa em cuja folha de pagamento tinham figurado ambos, Monti e Draghi. A Goldman Sachs, claramente merecedora do alcunha que lhe foi dado além-Atlântico “de lula-vampiro“, tinha organizado a falsificação das contas públicas gregas, e foi acusada de fraude pela Securities and Exchange Commission, pagando meio milhar de milhões para resolver o caso fora dos tribunais. Esperar por uma ruptura com o passado nos seus funcionários teria sido apenas um pouco mais realista do que acreditar que o patrocínio de Craxi não iria deixar nenhuma marca em Berlusconi.

Outras lembranças do passado não terão sido menos impressionantes. No Verão de 2012, verificou-se que Napolitano interveio para bloquear um possível interrogatório de Nicola Mancino, Ministro democrata cristão do interior em 1992, quando o magistrado Palermo Paolo Borsellino foi assassinado pela máfia. Mancino foi um dos quatro ministros do interior – Scalfaro tinha sido um outro – a receber mensalmente dinheiro enlameado dado pelos serviços secretos, SISDE. Mancino negou que tinha recentemente encontrado Borsellino, um pouco antes da sua morte, apesar de evidências em contrário, negação esta que nunca tinha sido esclarecida. Um novo inquérito oficial sobre as ligações entre o Estado e a máfia estava em andamento em que Mancino estava sob a ameaça de ser confrontado com dois outros Ministros do período em que assenta a sua mentira . Em grande agitação, ele telefonou para o Quirinale e suplicou ao braço direito de Napolitano em assuntos jurídicos, Loris D’Ambrosio, a sua protecção. Longe de ser rejeitada, foi-lhe dito que o presidente estava muito preocupado com o assunto. Em tempo útil, Napolitano telefonou a Mancino, sem saber que o seu telefone estava sob escuta como parte da investigação.

Quando as transcrições dos telefonemas entre Mancino e D’Ambrosio foram publicadas na imprensa, juntamente com a notícia de que as fitas da conversa do próprio Presidente com Mancino estavam na posse do juiz de instrução, Napolitano invocou a total imunidade para o seu gabinete e, ao estilo de Nixon, exigia que as fitas fossem destruídas. O irmão do Borsellino, Salvatore, apelou ao seu impeachment; uma vez que estava em causa uma obstrução à Justiça, nos Estados Unidos teria havido motivos para isso. Na Itália, esse resultado era impensável. A classe política e os media cerraram fileiras imediatamente em torno do Presidente, como haviam feito quando Scalfaro utilizou o seu mordomo para abafar o escândalo do SISDE. O assessor de Napolitano, o Ehrlichman do caso, morreu vítima de um ataque cardíaco na altura do escândalo. Como tantas outras vezes, Marco Travaglio, indiscutivelmente um dos maiores jornalistas da Europa, foi o único a ligar os factos pelos nomes; no seu livro Viva il Re!, publicado no ano passado, em que elaborou um extenso registo acusatório do registo de Napolitano no poder, através de seiscentas páginas de documentação altamente condenatórias. Noutros lugares, em face do perigo de sua posição, o coro de bajulação em torno do Presidente – cujo volume tinha desde há algum tempo aumentado – atingiu um crescendo quase histérico.

Enquanto isso, Monti – saudado com entusiasmo desde o início, o Financial Times até o apelidou de ‘Super Mario’ – estava a mostrar ser uma decepção. Instalado no poder com o consentimento relutante do centro-direita e igualmente do centro-esquerda, o seu espaço de iniciativa era limitado, dado que nenhum bloco explicitamente o apoiava e a base de cada um deles estava inquieta com a solução encontrada – a nomeação de Monti. Mas logo ficou claro que os remédios aplicados não trariam nenhuma retoma económica. Sob o que um crítico italiano teria apelidado de regime ‘austeritariano’: tratava-se de uma combinação de impostos mais altos de Monti e de um mais baixo valor da despesa pública para poder reduzir o défice e reduzir drasticamente os spreads entre a dívida pública alemã e italiana, mas o que daqui resultou foi a intensificação da recessão. O consumo caiu, o desemprego entre a juventude aumentou. As reformas estruturais, como a Comissão Europeia e BCE as entendem, foram um fiasco total. Em 2012, o PIB diminuiu em 2.4 por cento. Politicamente, havia pouco a ganhar em continuar a sustentar o que se tinha tornado um governo completamente impopular. No final do ano o centro-direita retirou o apoio e Napolitano foi relutantemente forçado a dissolver o Parlamento, mantendo Monti em funções de gestão até que as eleições foram realizadas.

(continua)

Uma tentativa de golpe de Estado moderno sob a égide da União Europeia na Itália a 4 de Dezembro de 2016  – O desastre Italiano por Perry Anderson II

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