Selecção de Júlio Marques Mota
Uma tentativa de golpe de Estado moderno sob a égide da União Europeia na Itália a 4 de Dezembro de 2016
O desastre Italiano

Perry Anderson, The Italian Disaster, London Review of Books
(continuação)
Isto nem sempre funcionou bem. Típico das operações de Renzi foram dois peditórios para obter fundos destinados a apoiar os artistas da cidade. Por debaixo de um dos frescos de Vasari no Palazzo Vecchio, Renzi assegurou ao mundo, ainda leigo sobre a batalha de Anghiari de Leonardo, que com tecnologia moderna este painel iria ser recuperado, se pudessem ser encontrados financiadores dispostos a financiar a investigação necessária, para o que – numa campanha publicitária às custas do município – viajou várias vezes para a América.
Apêndice- Renzi e Leonardo da Vinci
Renzi e o mural de Leonardo da Vinci (?)
Um mistério de longa data, um trabalho de Leonardo da Vinci — o destino de uma obra-prima perdida, conhecida como a batalha de Anghiari – continuará por resolver.
O projecto ambicioso de encontrar o trabalho artístico perdido desde há muito tempo foi deixado para um tempo indeterminado e as estruturas maciças que foram criadas para o descobrir começarão a ser desmontadas no final do mês.
As estruturas permaneceram durante 10 meses em frente a um fresco numa parede no Palazzo Vecchio, no imponente hall da Câmara Municipal de Florença no século XIV, em e Florença. Esta era uma sala construída no fim do século XV para aí se fazerem as reuniões de Florentine Council.
A direita, por detrás de uma pintura mural conhecida como a “batalha de Marciano,” encontrar-se-ia a obra-prima de Leonardo da Vinci, de acordo com o perito em diagnóstico sobre arte, Maurizio Seracini, que é director do Center of Interdisciplinary Science for Art, Architecture and Archaeology at the University of California, San Diego.
Criado pelo famoso pintor, arquitecto e escritor do século XV, Giorgio Vasari (1511-1574), o mural tem estado bno centro da investigação de Seracini desde os anos de 1970.
Saudado pelos contemporâneos de Leonardo como o seu trabalho mais fino, a “batalha de Anghiari” sobrevive agora em diversos desenhos e esboços preparatórios feitos pelo próprio mestre e num desenho de Rubens que se terá inspirado numa cópia anónima do fresco.
Fim do apêndice.
Depois de meses de atenção dados pelos media , isto não deu em nada. Num bluff mais que vazio ainda, Renzi anunciou planos para cobrir a Basílica de San Lorenzo, com a fachada em mármore que Michelangelo tinha projectado para este local, mas que nunca tinha sido feita. Isso também valia metros de cobertura na imprensa e muitas imagens na televisão , antes de ter sido posta a ridículo pelos historiadores de arte e desapareceu então de vista.
Legenda das imagens acima: Matteo Renzi on the cover of ‘Vanity Fair’, November 2013, and in Parliament before a vote of confidence, February 2014.
A partir desta altura, como figura política máxima na província, Renzi tinha vindo a construir uma rede de ligações com algumas empresas locais. O seu principal apoiante e financiador, era um patrão da construção local, Marco Carrai, cujos interesses se estendiam para lá do Atlântico e com ligações alargadas à Opus Dei. Uma vez Renzi colocado no Palazzo Vecchio, Carrai foi encarregado de construir o lucrativo complexo de estacionamento da cidade e do aeroporto, enquanto Renzi se instalou sem pagar nenhuma renda num apartamento que lhe foi colocado à disposição por Carrai – um arranjo actualmente sob investigação judicial. Três anos mais tarde concorria para ser o líder do PD, com a sua campanha a ser financiada até à quantia de €600.000 pela Fundação Big Bang e com muitos dos doadores a permaneceram secretos, e Renzi não se poupou a despesas. Uma das maiores contribuições veio do director de um hedge fund, Davide Serra, cujo Algebris Investments inclui um esconderijo nas Ilhas Cayman. Residente em Londres, Serra tornou-se um ponto de ligação entre Renzi e o mais amplo mundo da finança, onde um banquete em honra do candidato reuniu a elite financeira de Milão durante a campanha. Em Florença, o Instituto municipal de poupança tem – sem dúvida, por pura coincidência – investido nos títulos Algebris. Entretanto, a noiva de Carrai, uma graduada em filosofia de 26 anos, tornou-se uma das responsáveis pela exposição principal deste ano em Florença, um golpe de publicidade a promover as fictícias ligações entre Michelangelo e Jackson Pollock com um custo de €375.000. Um dos slogans mais populares do Renzi é a sua expressão reclamando um país onde “ se arranje emprego pelo que se conhece e não por causa de quem se conhece”.
Os negócios podem dar origem a que se desfrute de uma troca de favores a nível municipal, mas é sobretudo a um nível mais geral que a mensagem ideológica de Renzi lhe fez ganhar os apoios da gente de muito dinheiro. Reclamando que a gente mais velha da classe política pertencente ao PD fosse atirada para o armazém da sucata política funcionou bem com a imprensa e com a população, por esta estar fortemente desiludida com a classe política. Para os banqueiros e industriais, o seu apelo foi incisivamente mais económico. O enorme mal-estar da Itália provinha de um estado perdulário e das obstruções corporativistas feitas sobre os mercados, nomeadamente – se não exclusivamente – pelo comportamento altamente egoísta dos sindicatos. Os sindicatos tinham então que ser desmantelados. Liberismo – livre comércio sobre as commodities, incluindo terra e trabalho – era uma doutrina não de direita, mas de uma esquerda esclarecida, como a de Renzi. A palavra de ordem desta esquerda deve ser inovação, mais do que igualdade e se este último termo é, no entanto, digno de representar e de ser um ideal, só o pode ser, se devidamente compreendido como expressando uma carreira aberta ao talento e acima de tudo, empreendedor. Blair foi o líder que melhor compreendeu tudo isto , estabelecendo o exemplo inspirador do tipo de política de que a Itália tinha urgentemente necessidade.
O culto de Renzi por Blair reflecte, em certo sentido, as limitações provinciais da sua cultura: Renzi claramente desconhece que o objecto de sua admiração mal ousa mostrar a cara em público no país que governou. Mas, por outro lado, serviu como um cartão de visita para o maior amigo de Blair na Itália. Contactos informais com o centro-direita já existiam desde o início da subida do Renzi em Florença, onde a sua vitória sobre um candidato bem mais conhecido nas eleições primárias do PD em que não se exigia nenhum registo no partido é muitas vezes atribuída a votos daí resultantes. À volta deste período, estava em boas relações com um banqueiro florentino, Denis Verdini, cujo Crédito Cooperativo Fiorentino entraria em colapso no meio de acusações de crime formuladas contra ele, mas em que, como uma figura de liderança na organização de Berlusconi na Toscana, poderia oportunamente tornar-se um interlocutor fundamental do centro-direita. Enquanto Renzi era o prefeito, viajou para a villa de Berlusconi em Arcore, para com ele discretamente jantar, uma peregrinação tabu na altura para o PD e que só mais tarde foi revelada. Não apenas um gosto em comum com Blair e a apreciação do valor do empresário terão, no entanto, juntado Renzi e Berlusconi. Este último, frequentemente explicou que vê em Renzi uma versão mais jovem de si mesmo: o mesmo talento, a mesma audácia e o mesmo encanto com o qual ele tinha cativado a nação, vinte anos antes. Claramente, quanto ao estilo político os dois homens na verdade têm muito em comum. Primeiro que tudo, uma intocável autoconfiança na sua capacidade única em conduzir o país. A personalização de Berlusconi na política é lendária. A projecção de Renzi de si mesmo é dada num registo diferente, mas combina com o anterior. Colocado em cartazes ao longo da rota da sua viagem pela Itália, o slogan da sua campanha para ganhar o comando do seu partido dispensa qualquer agenda para isso, para além da sua própria pessoa. Nestes cartazes, simplesmente lia-se: ‘Matteo Renzi agora!’ Como com o Silvio, isto foi suficiente.
Tal auto-confiança coloca qualquer um acima de quaisquer dúvidas ou escrúpulos dos seus pares. As suas formas de crueldade são tacticamente diferentes. Mas os políticos partilham uma qualidade, a de não hesitarem perante nada, stop-at-nothing, cuja justificação vem de duas convicções: que somente se pode realizar o que em cada momento se exige e que eles somente gozam de um bom relacionamento com os eleitores – não com todos os italianos, mas os melhores deles, os que formam a maioria da nação – o que confere ao que eles fazem uma legitimidade incontestável. Ambos também, é claro, se tornam proeminentes em conjunturas de crise, prometendo ao país um novo começo, uma vez que a ordem política tenha caído em descrédito generalizado.
Estes são pois os paralelos óbvios. Existem também diferenças óbvias. Destas, são quatro as mais significativas. Berlusconi entrou para a política, já à frente de um império de negócios, utilizando a sua vasta fortuna para ganhar um poder com o qual poderia proteger os seus interesses. Ele estava a aproximar-se dos sessenta quando ele assim o fez. O seu principal instrumento para ganhar e reter o poder era o controle da televisão como um meio para esse efeito. As suas capacidades em comunicação eram as de um verdadeiro profissional do pequeno ecrã que conhece muito bem os seus rituais e os recursos e quando como comerciante e proprietário dos canais se dirigia à Nação, aparecia sempre numa forma cuidadosamente encenada.
Renzi, pelo contrário, é uma criatura da pura política. A sua ascensão pode ter deixado uma fraca lufada de fedor atrás dele – pecunia non olet dificilmente se aplica aqui. Mas fundos, duvidosos ou acima da lei, foi só um meio para a sua ambição: a riqueza não é um fim. O objectivo é o poder. A posse do poder – esta é a segunda maior diferença – foi alcançada por um indivíduo, na casa dos quarenta, não dos sessenta: uma geração mais jovem. Berlusconi baseou muito da sua atracção inicial na pretensão, não só de que ele era um estranho ao sistema político, mas também um homem que demonstrou as suas capacidades na criação de riqueza como um gestor e um empreendedor: ele podia fazer andar a Itália como o tinha feito, e muito bem, com as suas estações de televisão e o seu clube de futebol. A atracção de Renzi está na idade, não na experiência. Em si-mesmo, jeunisme é um cartão banal, jogado crescentemente pelos políticos em todos os lugares nas sociedades pós-modernas. Mas Renzi fez da sua juventude algo muito mais do que um simples atributo individual: fez dela a espada emblemática de um rejuvenescimento colectivo em curso, cortando através das disfunções geriátricas do sistema político e dos seus detritos na vida económica e social em geral. Este tipo de promessa não tem as credenciais tangíveis de sucesso material que Berlusconi reivindicava, mas ligando-se directamente com as frustrações de duas gerações de italianos sufocados pela imobilidade e pela decadência da Segunda República, é verdadeiramente potente como apelo.
Juntamente com o contraste na mensagem, há uma variação pelo meio. Renzi chamou primeiramente à atenção do público ao ser o vencedor de um show popular e nunca perdeu o seu entusiasmo por aparições de todos os géneros na televisão, onde a sua bonita e gordinha aparência e a sua forma arrogante fizeram dele uma natural atracção assim que entrou na política. Mas em tempos, o seu verdadeiro forte foi a WEB. Com o Facebook para projectar a sua imagem e cultivar os seus apoios de maneira bem mais contínua do que lhe poderia oferecer um estúdio de televisão e sob o seu controle muito mais completo (mesmo que assim ele se exponha a uma ou outra gaffe ocasional, como o ter colocado uma imagem de si-mesmo ao lado da cama de Mandela no hospital, uma fracção de segundo após o aparecimento da notícia da morte de Mandela); o Twitter para fornecer um fluxo contínuo das suas frases consideradas emblemáticas e os seus pareceres sobre assuntos do momento. Berlusconi, que gosta de contar piadas de bares de hotel em contextos informais, tendia a ser bombástico nos seus discursos políticos supostamente informais mas na verdade preparados e que eram ditos também nos grandes salões entre gente de casaco assertoado em Arcore. Renzi, pelo contrário, é ostensivamente casual no vestir e no falar. Ao tomar o poder, Renzi dirigiu-se ao Senado com as mãos nos bolsos. Isso não foi bem recebido. Mas em geral ele é muito superior a Berlusconi como um comunicador, muito mais rápido nas suas tiradas políticas, com um dom excepcional para responder on-line e com um bom reportório de piadas. Em comparação, os seus modelos de referência, Blair e Obama, são pessoas muito pesadas nos discursos escritos. Renzi é muito mais rápido na resposta verbal. Como a sua melhor retratista tem observado, diferentemente de todos os outros líderes actuais do Ocidente, ele não precisa de conselheiros. Sem esforço, dispensa os conselheiros. O seu perigo reside numa arrogância demasiado visível, convidando à zombaria. Pelo caminho, ele sabe como transformar paródias de si mesmo numa alegre auto-ironia. Se isso irá continuar assim, agora que está no topo, onde também há muitas das suas descartáveis farpas e o risco de algumas humilhações incómodas, é o que se está para ver.
(continua)