CONTOS & CRÓNICAS – CARLOS REIS – OS ARTIGOS IMPUBLICÁVEIS – VIVA A LIBERDADE

 

 

O que mais irrita na classe média e nas “classes menos favorecidas” é isso, precisamente: serem médias e pouco favorecidas. Sobretudo de um ponto de vista cultural e intelectual. É não perceberem, é não atingirem, mesmo com o libertador 25 de Abril, o bom gosto, o glamour, o apuramento, o charme, a sofisticação. Predicados estes, que não são realmente para todos.

Sim, porque insistirem no arroz de polvo, nas iscas com elas, no peixe grelhado, no cozido ou na carne de porco à portuguesa e nos bacalhaus na brasa ou à Gomes de Sá – é um sinal inequívoco de um conservadorismo total, a roçar mesmo pelo reaccionarismo mais primário. Convenhamos.

Não perceberem que houve quem – compreendendo e interiorizando o espírito de Abril –  evoluísse no sentido de uma sociedade mais justa e mais fraterna, elevando para plataformas de melhor qualidade de vida, a cavala, o choco, a pevide, o arroz, o ouriço do mar. Como, por exemplo, os habitantes de Cascais, histórica e revolucionária vila de pescadores na sua maioria, assim o entenderam.

A classe média e a menos favorecida sabem lá do que se trata, quando falamos de jantares temáticos, de “Polvo da Linha com puré de abacate e lima e uma emulsão de alho negro”.

Ou de espadarte de Sesimbra “levemente cozinhado com água quente deitada por cima”, com ponzu e algas e “a farinha torrada que os pescadores comem” – como se vê, aqui uma corajosa concessão de classe, a demonstrar uma abertura libertária, própria de gente verdadeiramente revolucionária.

Claro que se formos explicar àqueles reaccionários (médios e menos favorecidos) que o choco frito de Setúbal, “separando o choco do frito” (sic) sob a forma de “um crocante de tinta de choco e um merengue a imitar carvão”, é algo de emocionante e incomparável – eles ficam na mesma, pobres de espírito que são, reduzidos à sua condição miserável, perversa e ultra-reaccionária de deglutidores de feijoada com todos.

Sim, porque degustar “massada feita com massa de pevide com lingueirão e espuma de ouriço do mar” ou uma singela raia alhada com lâminas de amêndoa em vez do reles e chungoso alho, e “cavala com molho thaiti e uma folha de arroz com pó de alga” e depois uma sobremesa com “granizado de algas e rochas de chá verde”, a preços módicos entre os 25, 35 e 45 euros (sem bebidas)  –  não é evidentemente para esta gente do antigamente, para estes saudosos da longa noite do fascismo, do arroz de grelos, do pires de caracóis e do peixe frito.

Não é.

Carlos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fugas, Público, 20 de Maio 2017

2 Comments

  1. ……”não é evidentemente para esta gente do antigamente, para estes saudosos da longa noite do fascismo, do arroz de grelos, do pires de caracóis e do peixe frito.

    Não é.

    Carlos

    Modernices toscas …de gente armada à la finesse…Maria

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