Populismo e Democracia: o populismo é o “grito de dor” da moderna democracia representativa. Ouçam-no! – 5. O populismo como fronteira extrema da democracia representativa. Resposta a McCormick e a Del Savio e Mameli (2ª parte). Por Nadia Urbinati

maquiavel

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

5. O populismo como fronteira extrema da democracia representativa. Resposta a McCormick e a Del Savio e Mameli (2ª parte)

Por Nadia Urbinati (*)  urbinati

Publicado por MicroMega Il Rasoio di Occam, em 16 de maio de 2014

5 O populismo como fronteira extrema da democracia representativa

(continuação)

O populismo nasceu no âmbito da democracia constitucional, uma arena política fundada sobre eleições, multipartidarismo e regra da maioria (ou seja, a liberdade de cada um defender as suas ideias sem arriscar a sua segurança e para obter consensos). O populismo só pode surgir neste quadro de liberdades políticas e civis, e não onde não há democracia (a menos que se queira considerar como populista tudo o que acontece no universo político, inclusivamente os movimentos de revolta, as revoluções e as rebeliões).

Exatamente para evitar o risco omnívoro que um termo impreciso contém, o que se deveria tentar fazer é compreender:

a) se, uma vez conquistado o poder de tomar decisões, a maioria populista vai respeitar as regras que lhe permitiram ganhar, isto é, se aceitará também o risco de perder;

b) se se absterá de utilizar o sistema estatal a favor do seu partido contra a oposição derrotada de modo a criar as condições para uma reeleição garantida;

c) se não irá gerir as nomeações para cargos estatais favorecendo apenas o seu partido;

d) se não reescreverá a Constituição, a fim de permanecer no poder por mais tempo;

e) se utilizará o poder fora das regras e contra os limites fixados pela Constituição. Dado que o populismo é crítico da democracia constitucional e representativa, considerar que poderia operar de modo não legítimo é, no mínimo, uma hipótese bem possível.

Por conseguinte das duas uma: ou o governo íntegro de uma maioria populista não vai operar contra as regras constitucionais e então isto não será outra coisa senão um novo governo, um caso de normalidade ou de política normal; ou o governo populista muda o carácter do regime constitucional, dando lugar a uma ditadura ou a uma forma autocrática de regime. Neste segundo caso, chamar ao regime populismo seria inadequado, porque tratar-se-ia de uma ditadura ou de uma autocracia. A utilização das regras por parte de um partido populista que conquistou a maioria é realmente um elemento de apreciação muito importante precisamente porque o populismo (de direita ou de esquerda, gerador de solidariedades ou de exclusão) se afirma criticando a estrutura do sistema político representativo e constitucional. Como escreveu Benjamin Arditi, isso é a periferia extrema do regime democrático, para lá do qual estaremos perante um outro regime como, por exemplo, um regime ditatorial. Aí está, por conseguinte, um importante elemento de interpretação: o populismo é um possível modo de ser da política praticada numa democracia representativa, um modo de interpretar o “povo”, de unificar as diversas exigências internas de um povo plural em torno de um tema comum: isto é, a ação de um movimento populista que funciona e continua a funcionar dentro das regras democráticas.

Mas se esta interpretação faz sentido, então não é de todo claro como podemos distinguir este processo político normal de outros processos e movimentos peculiares da normal dialética política democrática. Um exemplo: até mesmo os partidos socialistas e comunistas ocidentais depois da segunda guerra conduziram uma política de unificação dos vários interesses existentes no povo para uni-lo em torno de um interesse comum: esta política foi, por exemplo, a política da Aliança Nacional lançada por Palmiro Togliatti (e que inspirou Laclau na sua teoria da construção populista hegemónica); no entanto, seria errado afirmar que o Partido Comunista era um partido populista. Obviamente, este processo político de unificação das pessoas não é suficiente para o considerar populismo, a menos que toda e qualquer política democrática seja concebida como populista (esta é a identificação que propõe Laclau, para o qual o populismo, a política e a democracia se tornaram uma e a mesma coisa). Mas esta equivalência dos termos é falaciosa precisamente porque elimina as diferenças, quanto tem a pretensão de as explicar. Então, identificar o populismo com a normalidade da luta ideológica numa democracia não acrescenta nada ao nosso conhecimento e nós nem sequer saberemos dizer o que é populismo.

O populismo tem que ser algo de diferente da política democrática e da democracia (ou seja, diferente da prática ideológica normal de unificação dos interesses de um povo) e, assim, diferente na construção de consenso político com vista a conquistar uma maioria. A menos que utilizemos a palavra populismo para descrever a realidade atual, mas neste caso tudo pode estar aqui incluído: populismo de direita ou de esquerda, identitário ou gerador de solidariedades, e assim por diante. Se nos quisermos elevar acima do discurso ideológico e tentar compreender um fenómeno político, então temos de tentar, tanto quanto possível, extrair das várias experiências aquelas particularidades e constantes que nos permitam dar um sentido à categoria “populismo”. Partindo desta premissa procurei, noutros textos, distinguir entre movimento popular e populismo, e para isso procurei identificar algumas coordenadas de orientação (em relação ao populismo como poder, ou que aspira ao Estado): unificação de um povo sob a orientação de um líder; transformação ideológica do conflito em polarização e, consequentemente, simplificação da pluralidade de interesses em oposição binária (“nós”/”eles”); e depois, quando e se o partido populista se torna o partido no poder, se este utiliza os recursos do Estado para beneficiar o seu partido e prejudicar a oposição, violando assim a separação de poderes (pondo em risco a independência do poder judicial) e os direitos de liberdade.

Portanto, pode-se argumentar que o populismo vai além do “potencial democrático” do movimento político. Todos os movimentos podem ou não ter potencial democrático e, nesse sentido, o conceito de “potencial” é muito frouxo. Igualmente insatisfatório é apelar à famosa expressão que Durkheim utilizou para o socialismo, a saber, o populismo como “grito de dor” das sociedades democráticas representativas. Enquanto “grito de dor” o populismo nada nos diz sobre qual a razão da dor nem nos dá nenhum diagnóstico, por isso não nos diz qual deve ser o movimento para corrigir essa dor. O “grito” é uma indicação de sofrimento, nada mais. Na verdade, há uma componente de dor (como a insatisfação e o descontentamento) no movimento socialista assim como no populista, mas seria incorreto dizer que o socialismo e populismo são iguais enquanto gritos de dor. Quem é que é responsável pelo diagnóstico e pelo tratamento? Diagnóstico e tratamento põem em movimento competências e ações que são externas ao “grito de dor” e a respeito das quais as pessoas desempenham o papel não de ator, mas do paciente que permite que os líderes façam o diagnóstico e estabeleçam o tratamento para a cura do paciente. Então, porquê estar a criticar a democracia eleitoral de expropriar as pessoas da sua voz, se o mesmo apelo ao povo feito pelo populismo deixa uma tão grande latitude de delegação no líder ou nos técnicos da ideologia sobre o diagnóstico e o tratamento? Se o povo grita, isso necessita, contudo, alguém que interprete os seus gritos. Por isso, fica a dúvida que a diferença entre os diferentes populismos não seja senão uma diferença entre líderes e as suas respetivas ideologias. É o próprio McCormick que alimenta essa dúvida quando ele nos lembra com bons argumentos que a história das democracias registou demagogos amigos do povo e demagogos tiranos: assim, a diferença entre o bom populismo e o mau populismo está na liderança, no líder que representa o que é o “grito de dor” do povo paciente.

Acrescentámos assim uma peça importante para o nosso conhecimento do fenómeno populista: a necessidade de um líder que unifique ou dê o sentido ideológico daquilo que une as pessoas. Sem essa liderança, sem o ápice cesarista (o que eu noutro texto designei de correção mono-arcaica da democracia), o movimento populista permanece um movimento popular como existem, e justamente, muitos num regime democrático: Occupy Wall Street ou o movimento dos “Indignados” são casos de movimentos populares de denúncia e protesto, mas não são movimentos populistas. Occupy Wall Street recusou, de facto, qualquer representação através de um líder e quis ser apenas uma expressão de crítica pública em nome de um valor, o da igualdade, que as sociedades democráticas pretendem incorporar. Chamar a este tipo de movimentos “populistas” é errado pela simples razão de que, nesse caso, tudo seria populista em democracia. E assim que sentido teria estar a utilizar o termo populista? O facto é que o populismo não presume só e simplesmente a existência de uma massa de pobres ou de desempregados; não basta o “grito de dor” para o identificar; este pressupõe um líder, e uma máquina que produza uma ideologia que dê àquele grito uma unidade representativa que visa um objetivo: a conquista de consenso para alcançar o governo e tomar decisões.

Acabamos de perceber, pois, porque é que o populismo é muito mais do que um movimento popular e porque é que faz sentido temê-lo. Para este fim, voltemos ao “grito de dor” de um povo que sofre. McCormick diz: “Durkheim disse uma vez que o socialismo é o grito de dor da sociedade moderna. O populismo é o grito de dor das democracias representativas modernas. O populismo é inevitável em regimes políticos que formalmente aderem aos princípios democráticos, mas na verdade excluem o povo do governo“. Eis, pois: o populismo não tem como ponto fundacional questões de redistribuição económica ou de justiça social, mas questões de gestão do poder político: é, portanto, um desafio radical para a democracia representativa com vista à gestão direta do governo pelo povo. Este, se for economicamente oprimido pela minoria é porque não toma diretamente as decisões, mas sim através daqueles poucos, a minoria, que ele, o povo, elege. Assim: o populismo manifesta-se quando o povo como uma entidade soberana já existe e quer que a sua autoridade seja exercida de forma não indireta. Para McCormick, o populismo é, portanto, identificado com a democracia direta (ou ainda, assembleia aberta a todos os cidadãos; tiragem à sorte para selecionar os juízes, tribunais compostos por cidadãos comuns) num contexto em que isso já não é possível. Assim, porque no nosso tempo esta forma de governo não pode ser implementada como o foi na Atenas clássica, foi adotada a representação que, como Carl Schmitt e, em seguida, Bernard Manin defenderam (ambos seguem Montesquieu), é sinónimo de governo “aristocrático” ou ” oligárquico ” ou de uns poucos, uma vez que assenta em eleições. Essencialmente, diz McCormick, numa democracia representativa é fatal que surja o populismo: o qual “é o outro lado da moeda da normalidade política nas repúblicas eleitorais.” Aqui estamos de volta ao que Laclau também afirmou: o populismo identifica-se com a política e a democracia nos governos representativos. Das duas uma: ou a política é a rotina normal (política de uns poucos com o consentimento de muitos), ou é o oposto, ou seja, populistas (política dos muitos contra os poucos, com ou sem o seu consentimento, dado que os  muitos têm  a maioria de qualquer maneira).

Agora, se a política normal funciona de acordo com as regras formais (que garantem “igualdade política formal”, sem ter que se traduzir em “igualdade socioeconómica”), o sistema não tem de andar aos tombos. Mas quando a questão económica se torna premente (o “grito de dor”), então a igualdade formal (como a democracia representativa que está baseada nela ) mostra os seus limites. Neste ponto, ao povo não resta senão tomar o poder para restaurar o equilíbrio entre a igualdade formal e igualdade substantiva. O que não está claro – e McCormick não ajuda a esclarecer – é como é que podemos alcançar este reequilíbrio sem decisões que restrinjam a igualdade formal, ou seja, sem violar os princípios constitucionais e utilizar meios excecionais para alcançar a implementação da ordem desejada (igualdade substantiva). Mas, neste ponto, a democracia populista seria uma maneira de se sair da democracia constitucional: meios e fins separar-se-iam a fim de alcançar um bom fim (igualdade substantiva) e os meios (violação da lei) acabam por ser assim justificados.

Que seja Marx ou Schmitt o inspirador desta visão, é evidente que o populismo se torna a este nível externo à democracia constitucional; não é uma forma política interna à democracia, mas uma transformação do regime em que os atores políticos tomam decisões com a regra de maioria num sistema que declara ser o governo da maioria contra a minoria (por razões “boas” como a igualdade substancial). A fronteira da democracia é, neste ponto, ultrapassada.

Em conclusão, podemos dizer que ou o populismo não é outra coisa senão um movimento político popular, um sacrossanto movimento de protesto (Del Savio e Mameli), em que não é nada claro porque é que se deve chamar populismo; ou é mais que um movimento (McCormick) e, de facto, significa uma extrema tensão da democracia representativa para uma solução que arrisca uma saída da ordem constitucional.

Texto original em http://ilrasoiodioccam-micromega.blogautore.espresso.repubblica.it/2014/05/16/il-populismo-come-confine-estremo-della-democrazia-rappresentativa-risposta-a-mccormick-e-a-del-savio-e-mameli/

(*) Nadia Urbinati (Doutorada, pelo Instituto Universitário Europeu de Florença, 1989) é uma teórica política especializada em pensamento político contemporâneo e moderno e das tradições democráticas e anti-democráticas. Ensina na Universidade de Columbia Workshop on Politics, Religion and Human Rights e ensinou no seminário Political and Social Thought. É co-editora com Andrew Arato do jornal Constellations: An International Journal of Critical and Democratic Theory. Membro do comité executivo da fundação Reset Dialogues on Civilization-Istanbul Seminars.

Vencedora do prémio de 2008-9 Lenfest/Columbia. Commendatore della Repubblica em 2008 pelo Presidente da República Italiana. Em 2004 o seu livro Mill on Democracy recebeu o prémio David and Elaine Spitz.

Autora de Representative Democracy: Principles and Genealogy, Mill on Democracy: From the Athenian Polis to Representative Government, Le civili libertá: Positivismo e liberalismo nell’Italia unita,  Individualismo democratico; Ai confini della democrazia: opportunità e rischi dell’universalismo democratico. Publicou numerosos artigos em revistas e jornais. Editorialista no jornal La Repubblica e colaboradora no I/ Sole24ore.

http://polisci.columbia.edu/people/profile/114

Leave a Reply