Selecção e tradução de Júlio Marques Mota
A utilização de pessoal diplomático como espiões
George Friedman, The Uses of Embassy Spies
Geopolitical Futures, 28 de Março de 2018
O Reino Unido alega, e evidentemente mais de 25 países concordam, que a Rússia ordenou e executou um ataque de agente neurotóxico em solo britânico este mês numa tentativa contra a vida de um ex-espião russo. Se for verdade, esse ato descarado justifica uma resposta severa. Essa resposta veio no início desta semana, dada por mais de duas dezenas de países, principalmente europeus, mas incluindo os EUA, Canadá e Austrália, em que foi dito que iriam expulsar diversos diplomatas russas de embaixadas e consulados nos seus territórios. A Rússia negou as acusações e prometeu replicar. A hipótese considerada é que a expulsão de diplomatas é um assunto sério, aproximadamente ao nível de tentar assassinar alguém em solo estrangeiro.
Mas é este realmente o caso? É difícil saber o impacto necessário das expulsões, mas qualquer análise destas deve começar pelo facto de se saber que as pessoas que foram expulsas eram tidas pelos seus governos anfitriões como pessoal dos serviços secretos russos e que foram expulsos por essa razão. E se eles eram conhecidos como pessoal dos serviços secretos, então as suas possibilidades de serem espiões eficazes eram bem limitadas. Um espião que é conhecido como tal provavelmente estará sob vigilância, impedindo-o enormemente de poder ser espião de facto.
Os países anfitriões suspeitam que todos os diplomatas sejam funcionários dos serviços secretos porque muitos deles o são, de facto. Um assistente do adido cultural que nunca ouviu falar de Mozart ou é sobrinho do presidente ou está a utilizar o seu cargo como cobertura para as suas operações de espionagem. O problema com a inserção de agentes de espionagem por esta via em qualquer pais, seja ele um país amigo ou um país hostil, é que o oficial, independentemente do gosto musical, provavelmente será posto sob vigilância pelos serviços de contrainformação. Monitorizar todos ou a maioria dos funcionários de uma embaixada é uma solução cara, mas quanto mais conflituosa for a relação com o pais tido como não amigo mais recursos são dedicados à tarefa. No caso das relações entre a Inglaterra e a Rússia, podemos considerar que quase todo o pessoal das suas embaixadas estava sob vigilância, com os seus telefones sobre escuta e que estes eram regularmente abordados por pessoas atraentes mas solitárias.
Por essa razão, os países são cuidadosos quanto à forma como conduzem o seu trabalho de espionagem sobre assuntos sensíveis. Mais precisamente, as operações mais sensíveis são mantidas longe do pessoal da embaixada. Os britânicos sabiam que qualquer pessoa contatada por um oficial russo poderia ser um espião russo em atividade. Se os russos tivessem alguém dentro do Ministério da Defesa britânico, por exemplo, a última coisa que os serviços secretos russos desejariam seria que esse alguém tivesse algo a ver com o que poderia ser considerado como um contato com um alto funcionário da embaixada russa. A existência da fonte seria mantida guardada longe do pessoal da embaixada, salvo possivelmente pelo manipulador russo que controla essa fonte de informações. Um recurso valioso para os serviços secretos – ou um assassinato – não seria executado a partir da embaixada, mas sim por uma equipa invisível para a embaixada, porque a hipótese é de que todos na embaixada estão a ser vigiados.
Funções
Existem quatro funções que os agentes dos serviços secretos afetos às embaixadas podem ter. A primeira é de coordenar as ligações com os serviços secretos do país anfitrião. A segunda é mergulhar nas intrigas e nos rumores do país, a partir dos quais os pedaços interessantes podem ser reunidos. A terceira é coletar as vastas quantidades de material de código aberto que se difundem no país. Isso pode ser muito valioso e não classificado, mas pode ser difícil de encontrar. A quarta é a inteligência técnica operacional, intercetando as comunicações através da tecnologia. Não estão incluídas operações secretas genuínas. Vamos considerar cada função separadamente.
A função de ligação provavelmente seria realizada através da embaixada. Os russos e os americanos cooperam em alguns aspetos do contraterrorismo, e presumo que os britânicos e russos também o façam. Grande parte da coordenação provavelmente ocorre na embaixada, envolvendo alguns dos que controlam o que nos Estados Unidos se chama “Cobertura oficial”. Porque é que isso é feito através de embaixadas, e não de forma aberta? Frequentemente, isto tem mais a ver com a rivalidade interinstitucional existente entre as diversas agências do que com a necessidade de cobertura oficial. Eu diria que a CIA, o FBI e o Departamento de Estado são responsáveis pela tarefa de ligação e passam muito tempo a competirem uns com os outros. O mesmo vale para os serviços secretos estrangeiros como os russos (o SVR) e os serviços de informações militares. Além disso, as agências de informações às vezes conversam umas com as outras sobre assuntos que os seus governos não querem falar. Assim, pode verificar-se uma conversa contínua entre os agentes de inteligência a fingirem ser adidos culturais, embora ambos os participantes saibam perfeitamente o que o outro é.
As intrigas e os rumores não são uma fonte trivial de informação. Não é precisa estar bêbado para revelar a data de uma invasão. O simples processo de interação humana pode revelar coisas úteis para alguém que ouve com atenção e conecta os pontos. As festas das embaixadas, um dos grandes fardos da civilização, podem não apenas produzir fugas de informação mas também podem permitir que se criem amizades genuínas que ao longo de uma carreira podem ser alimentadas e exploradas. O universo das intrigas e dos rumores é mais antigo e mais subtil que a internet e, para isso, o pessoal da embaixada – mesmo os que são conhecidos como sendo membros dos serviços de informação – é extremamente útil. É claro que as intrigas e os rumores também são um vetor de mentiras cuidadosamente empacotadas e desenhadas com o objetivo de confundir.
Reunir material indefinido de código aberto também é valioso. Lembro-me de uma história de um estudioso medieval soviético que passava os seus dias no Instituto de Tecnologia da Califórnia com uma pilha de moedas e uma copiadora, uma técnica antiga mas eficaz. O pessoal da Embaixada pode ser encontrado em feiras técnicas, simpósios universitários e afins, coletando documentos perfeitamente legais que podem informar um analista treinado sobre a estratégia técnica de outra nação. Mais importante, a participação pode levar a amizades com cientistas e outros que parecem meramente pessoais, mas fazem parte de uma tentativa sistemática de exploração.
Talvez o uso mais importante de uma embaixada seja a coleta de informações técnicas. Não há ainda muito tempo atrás, os telhados das embaixadas estavam cobertos de antenas, enquanto o prédio do outro lado da rua lançava radiação de microondas para bloquear as antenas. Hoje, a ênfase está em penetrar fisicamente nas redes subterrâneas que levam a internet. A embaixada é um excelente meio para gerir as interceções e analisar o tráfego de informações.
Vítimas
A expulsão de diplomatas é um meio de demonstrar descontentamento sem interferir na atual coleta de informações de um país. O trabalho de recolha de informações mais sensíveis não é feito na embaixada e, mais importante, os países envolvidos nessa ronda de expulsões não querem reduzir drasticamente a capacidade operacional dos serviços de informação russos. Uns serviços secretos russos cegos só aumenta o risco. Numa situação de relacionamento tenso, é importante certificar-se de que o outro lado esteja razoavelmente ciente das intenções dos outras e, em sentido amplo, das suas capacidades. O desequilíbrio nos serviços de informações pode gerar erros de apreciação o que pode ser mau para todas as partes envolvidas.
São os indivíduos que sofrerão a punição real. Os russos que fizeram as suas carreiras por serem especialistas no Reino Unido, por exemplo, deixam de ter carreiras quando são expulsos e ficam para sempre proibidos de voltarem. O mesmo pode ser dito de um americano que é especialista na Rússia, mas que agora está impedido de voltar para a Rússia. Esta é uma estranha baixa de tensão internacional, mas não de grande preocupação.
A questão central é que, embora essas expulsões sejam declarações públicas boas e talvez necessárias, mutilar os serviços de informações de cada país fora do contexto da guerra total pode ter resultados indesejados. As conversas tranquilas entre oficiais de serviços secretos que parecem ser adidos culturais, mas são conhecidas pelos dois lados como fantasmas da embaixada, servem uma função necessária. São as ligações que podem explicar, por exemplo, que os exercícios militares russos fora da Bielorrússia são apenas para mostrar. Mas as embaixadas são casas muito pobres para operações verdadeiramente secretas. Essas operações continuarão a ser feitas.
George Friedman, THE USES OF EMBASSY SPIES / GEOPOLITICAL FUTURES. Texto disponível em:
http://gonzaloraffoinfonews.blogspot.pt/2018_04_08_archive.html