
Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
14. A vingança dos bancos com direitos de nome de estádio (2ª parte).
Por David Dayen
, 2 de março de 2018

A confusão dos bancos comunitários
O S.2155 é conhecido em Washington como o projeto lei Crapo, assim chamado pelo nome do Presidente do Comité sobre a banca no Senado, o republicano de Idaho Mike Crapo. Mas é pelo menos igualmente da autoria da democrata de Dakota do Norte, Heidi Heitkamp, com forte contribuição de Jon Tester, democrata de Montana, Joe Donnelly, democrata de Indiana e Mark Warner, democrata de Virginia.
Warner, conhecido ultimamente pelo seu papel no Intelligence Committee do Senado, é um democrata convencional moderado ou mesmo conservador dos anos 90, que acredita na capacidade de auto-regulação das empresas e é um cético de regras bancárias onerosas, assim como Donnelly. Mas Heitkamp e Tester são pessoas de um recorte mais populista. Ambos desempenharam um papel silencioso, mas poderoso, em 2013, em ligação com os reformadores dos bancos tais como Warren, Sherrod Brown e Jeff Merkley para formarem um muro de democratas do Comité Bancário que bloquearam a nomeação do frio Larry Summers para se tornar presidente da Reserva Federal, apoiando em vez disso Janet Yellen. Apesar da inclinação partidária dos seus respetivos estados, Heitkamp e Tester frequentemente foram aliados fiáveis dos progressistas no Senado.
Enfrentando a reeleição nos estados que o presidente Donald Trump ganhou com facilidade, o benefício de conseguir angariar fundos por apoiar um projeto de reforma bancária não precisa de muita explicação. Mas que um democrata populista pense poder apadrinhar um tal projeto de lei e ver aí vantagens políticas – ou pelo menos não ver nenhum mal nisso – representa um fracasso absoluto da esquerda para enquadrar e definir adequadamente a discussão política em torno dos bancos, de Wall Street, da desigualdade e da economia. Durante anos, os grandes bancos de Wall Street foram nitidamente branqueados através dos bancos comunitários, com democratas entediados e um público entediado indefeso para os desmascarar.
A poucos dias de se iniciar o debate no hemiciclo do Senado, o projeto lei conta com o apoio de 13 democratas, o suficiente para impedir a obstrução ao debate e à votação. Isso é graças aos bancos comunitários, que têm uma excelente reputação no Capitol Hill. Tal como os concessionários de automóveis, eles têm uma forte presença local em todos os distritos. Enquanto os grandes bancos dão o nome a grandes estádios, os nomes dos bancos comunitários podem ser encontrados em camisolas usadas por equipas de futebol juvenil. Os caixas dos bancos sabem os nomes dos seus clientes porque eles andaram no liceu com eles. Num mundo ideal, eles concedem empréstimos seguros, mas importantes às famílias e às empresas locais e proporcionam um contraste perfeito com a ganância e a imprudência de Wall Street. Então, quando os bancos comunitários e os seus lobistas gritaram contra a floresta de regulamentos da lei Dodd-Frank acusando-a de prejudicar as suas capacidades de competirem com rivais de mais peso e de terem de gastar muito dinheiro para se colocarem em conformidade com a lei, dinheiro esse que poderia ser utilizado para empréstimos, o Congresso prestou-lhes atenção. “Entre as pessoas que mais me convenceram a apoiar a legislação estão, acreditem ou não, as cooperativas de crédito e bancos comunitários”, disse o senador Tom Carper, democrata de Delaware, um co-patrocinador da nova legislação.
Pouco importa que os bancos comunitários realmente estejam a ir muito bem. No terceiro trimestre de 2017, a Federal Deposit Insurance Corporation informou que 96% dos 5.294 bancos comunitários do país eram rentáveis, quando eram apenas 70% nas profundezas da crise em 2009. E esses lucros são maiores do que nunca, com maior crescimento na concessão de empréstimos do que os grandes bancos. As administrações dos bancos comunitários argumentariam que a consolidação e as falhas bancárias eliminaram aqueles que não podem competir, mas as falências foram quase inexistentes e a consolidação está em linha com os padrões históricos. Na verdade, quase todos os bancos comunitários mais pequenos estão a crescer em número e em ativos. Além disso, quase todas as regras mais importantes do Dodd-Frank já estão adaptadas para isentar ou para reduzir os custos nos bancos mais pequenos.
Independentemente disso, os democratas progressistas e moderados passaram anos a tentar aliviar a alegada carga para os bancos comunitários para estarem em conformidade com a lei Dodd-Frank. Uma série de disposições menores foram praticamente aprovadas por unanimidade. Mas sempre que os democratas sugeriram uma revisão mais ampla, os republicanos rejeitaram‑na, a menos que incluíssem mudanças que favorecessem os bancos maiores. Em 2015, o então presidente do Comité Bancário, Richard Shelby, republicano do Alabama, produziu uma proposta de lei sobre os bancos comunitários que foi caracterizada como uma “extensa lista de desejos ” para Wall Street.
Isso era por pura conceção política, argumenta Barney Frank. Os democratas queriam abordar as preocupações dos bancos comunitários não apenas por razões de ordem política, mas também para retirar uma potente força do campo de batalha de Wall Street. Por essa mesma razão política, os republicanos resistiram a esses esforços. Frank escreveu:
Embora a lei fosse e ainda seja em geral popular, os bancos comunitários, situados como estão em cada distrito, e desfrutando de uma reputação muito mais favorável do que as suas instituições irmãs muito mais poderosas, geraram a única crítica da reforma financeira que inquietava legitimamente os membros da Câmara dos Representantes, particularmente, claro está, aqueles que votaram a favor da lei Dodd-Franck.
Se aqueles que apoiávamos a reforma ainda controlassem o Congresso, poderíamos ter adotado essas duas mudanças, fortalecendo assim bastante a poção política tanto do projeto de lei como dos membros que as defendiam, particularmente dos distritos marginais, que votaram a favor. Mas precisamente por essa razão, os zelosos inimigos ideológicos da regulamentação que controlavam o Comité dos Serviços Financeiros da Câmara estavam determinados a não permitir tal alívio da pressão que a lei exercia sobre os pequenos bancos. Para eles, o que vimos como falhas que poderiam ser corrigidas sem nenhum custo para os nossos objetivos eram armas a serem empunhadas contra esses objetivos.
Quando Crapo substituiu Shelby como presidente em 2017, o membro democrata Sherrod Brown, do Ohio, tentou trabalhar com ele, solicitando ideias aos membros do comité para se encontrar uma solução. Mas depois de meses de negociações, Brown afastou-se das conversações. “Houve algum acordo em que devíamos ajudar os bancos comunitários”, disse Brown numa entrevista. “Mas isto começa com a mudança das regras para os bancos pequenos e depois é-se forçado a fazer a mesma coisa para os grandes bancos”.
A partida do senador democrata mais importante no Senado em vez de concluir e encerrar o processo, imediatamente a seguir à sua saída, no dia seguinte, democratas moderados no Comité Bancário assumiram o seu lugar. Dirigidos por Heitkamp e Tester, eles negociaram diretamente com Crapo e, no espaço de algumas semanas, chegaram a um acordo que representava uma reviravolta no S.2155: o ” Economic Growth, Regulatory Relief and Consumer Protection Act ” (os grupos pro-regulação passaram a chamá-lo de “Bank Lobbyist Act”). Em poucas semanas, o projeto de lei foi aprovado rapidamente pelo Comité Bancário com 16 votos a favor e 7 contra. com os republicanos e um bloco de quatro democratas – Heitkamp, Tester, Donnelly e Warner – a votarem contra todas as propostas de modificação do projeto lei S 2155.
Heitkamp, Tester e Donnelly estão todos em corrida para serem reeleitos em novembro, nos estados em que Trump ganhou por uma larga margem. Os assessores democratas pensam que eles desejam mostrar uma certa distância face ao partido nacional, seja qual for o tema. “Eles querem poder dizer ‘bipartidário’ aos seus eleitores”, disse um assessor. “Sobre o quê? Isso não importa”.
Ora, isto importa mesmo, mas os republicanos não estão a oferecer muitas opções. No entanto, fazer da desregulamentação bancária o “sobre o quê”, como foi colocado por um dos assessores dos democratas, não é atrativo para quem quer ser reeleito em 2018 num estado em que Trump ganhou por larga margem: Sherrod Brown. “Com os cortes de impostos a indústria de serviços financeiros fez muito melhor do que qualquer outra, e eles apenas querem mais”, disse ele. “Eu não ouço nenhum clamor que diga, seja nos Apalaches ou no centro de Toledo, sejam bipartidários e dêem um monte de coisas aos grandes bancos.” Na verdade, as sondagens recentes mostram um amplo apoio a regulamentos mais rigorosos no setor bancário.
É por isso que os 13 membros da bancada democrática que apoiam o S 2155 -que incluem Angus King independente do Maine -reflexivamente afirmam que estão simplesmente a garantir a redução do peso da regulação para os santificados bancos comunitários. “Há uma pequena variedade de alterações na lei Dodd-Frank, que ganharam apoio bipartidário que irá resolver alguns dos problemas criados pela Dodd-Frank em termos de acesso ao crédito para os bancos comunitários”, disse Coons. Um memorando “facto versus ficção”, distribuído pelos quatro partidários democratas do Comité bancário, insiste que o S. 2155 tem como objetivo defender os bancos comunitários, acrescentando dispositivos de proteção ao consumidor e não tem nenhuma consequência para qualquer outro jogador no sistema financeiro.
O título II do projeto de lei visa os bancos com menos de $10 mil milhões de total dos seus ativos. Estes bancos seriam dispensados de respeitar vários requisitos em matéria de relatórios a apresentar à regulação, as restrições impostas pela norma Volcker sobre a negociação de mercado com os seus próprios depósitos, e numerosas normas sobre capital próprio, desde que mantenham uma relação de alavancagem simples entre 8 e 10 por cento. Para os bancos mais pequenos, os controles seriam menos frequentes.
Mas algumas destas regras podem beneficiar os bancos comunitários à custa dos consumidores. A secção 101 permite que os bancos comunitários emitam empréstimos de alto risco, como as hipotecas de taxa de juro ajustáveis, sem as regras de divulgação e sem as regras relativas à capacidade de pagamento em vigor em toda a indústria, desde que os mantenham na sua carteira de empréstimos. A teoria é que os pequenos bancos com “a pele em jogo” não vão assumir riscos imprudentemente. “Já tivemos uma crise S&L [n.t. savings and loan crisis dos anos 1980 e 1990 nos EUA] que me diz exatamente o contrário”, escreveu o professor de direito de Georgetown e antigo conselheiro do CFPB [Consumer Financial Protection Bureau], Adam Levitin, num texto publicado no seu blog. Ele pensa que a disposição legal irá incentivar os bancos comunitários a encherem-se de empréstimos tóxicos e de altos custos, levando-os a correr fortes riscos de falência se as condições económicas mudarem.
Mais, quer receba a sua hipoteca de Wells Fargo ou do pequeno banqueiro local, se não prestar atenção ao que está a subscrever e ficar prisoneiro de um mau empréstimo, ficará igualmente em apuros. Outras mudanças às regras das hipotecas no S. 2155, como a não exigência de avaliações em áreas rurais ou a eliminação de exigência de conta caucionada, todas estas mudanças partilham de uma linha comum. “Poder-se-á dizer que estas mudanças não são correções técnicas, porque todas elas funcionam contra os consumidores”, disse Mike Konczal do Instituto Roosevelt.
Talvez a pior destas “prendas” aos bancos mais pequenos é a seção 104, que poderia permitir empréstimos discriminatórios. Um estudo recente do Center for Investigative Reporting mostrou que os afro-americanos ainda encontram ser muito mais difícil conseguirem obter um empréstimo hipotecário para compra de casa do que os brancos, mesmo se estes afro-americanos têm um rendimento e um património maior. Os empréstimos para pessoas de cor também são frequentemente carregados com taxas de juro e comissões mais elevadas.
Mas o S.2155 impediria os reguladores de processar os credores sobre tais práticas. A lei Dodd-Frank aumentou os requisitos de dados de acordo com a lei Home Mortgage Disclosure Act, ou HMDA, com os credores a terem de entrar em linha de conta com a pontuação de crédito, com os rácios de dívida / rendimento, com os rácios de empréstimo face ao valor do bem subjacente ao empréstimo e outras informações. Mas a Seção 104 isenta os bancos e as cooperativas de crédito de reportar esses dados se tiverem feito menos de 500 empréstimos por ano. Isso inclui 85% de todos os bancos e cooperativas de crédito.
“Os dados da HMDA são uma ferramenta crucial para garantir que todos os americanos tenham acesso às oportunidades de crédito”, disse Katie Porter, uma candidata do Congresso da Califórnia e especialista na indústria de hipotecas. “A discriminação nos empréstimos tem uma história muito feia nos EUA. Isto tornaria os dados não fiáveis.” E os dados são os elementos estruturais de qualquer caso de discriminação de empréstimos; ninguém pode garantir e impor leis justas de habitação sem os factos.
O gabinete de Tester, o senador democrata de Montana, disse que o projeto de lei “não faz nada que leve a mudar as proteções sob a HMDA que estavam em vigor antes da crise financeira”. Mas os empréstimos discriminatórios foram desenfreados antes da crise; os corretores de Wells Fargo em Baltimore referiram-se aos mutuários negros como “pessoas de lama” e as hipotecas que eles deram a esses mutuários eram como “empréstimos de gueto”. A lei Dodd-Frank aumentou a necessidade de detalhada informação porque os legisladores determinaram que ela era necessária. Apesar das reivindicações contra os “custos substanciais” para estarem em conformidade com a lei, os bancos já reúnem esses dados para os seus próprios arquivos; eles não querem partilhá-los porque os exporia a litígios. O aumento de lacunas críticas nas estatísticas também tornaria inutilizável os dados necessários para policiar qualquer discriminação sobre empréstimos, e não apenas para os bancos que fazem menos de 500 empréstimos.
Assim, em nome da redução dos encargos regulatórios para os bancos pequenos, o S.2155 permitir-lhes-ia sobrecarregar as pessoas negras e latinas ou negar-lhes até o financiamento hipotecário. E um dos democratas que apoiam o projeto de lei é Tim Kaine, o ex-candidato a vice-presidente que iniciou a sua carreira como procurador no combate à discriminação racial na habitação. O projeto de lei que ele defende agora facilitaria exatamente isso.
O senador Carper do Delaware, tal como Coons, co-patrocinou o projeto de lei com algum atraso, citando adicionais mecanismos de proteção dos consumidores para ganhar o seu apoio. Algumas das suas preocupações foram atenuadas, contou ele a The Intercept, quando soube que o próprio Barney Frank estava por detrás do projeto lei. “Uma das preocupações de que ouvi falar tem a ver, de uma forma ou de outra, com a ideia de que esta nova legislação vai destruir a lei Dodd-Frank, mas disseram-me que isso não passa de um boato, disseram-me igualmente que Barney Frank foi citado como tendo afirmado que na sua maior parte a nova legislação deixa a lei Dodd-Frank intocada. “
Frank disse que o senador Carper estava mal informado. “Claro que a nova legislação muda a lei Dodd-Frank. O que eu disse é que isso não muda 90 por cento da lei Dodd-Frank, ” disse Frank ao The Intercept.
Na quinta-feira, Frank levou a que a página da CNBC informasse: “Se eu ainda fosse um membro do Congresso, eu votaria não a este pacote legislativo”, escreveu ele, citando o relaxamento das regras relativas à antidiscriminação e ao risco que os bancos ditos de estádio desregulados poderiam causar ao sistema financeiro.
“Embora eu partilhe a opinião de muitos dos democratas do Senado pró-reforma que aceitaram este pacote para procurar responder às preocupações dos bancos pequenos e médios com argumentos tanto substantivo como políticos a seu favor mas penso, porém, que o preço exigido pelos colegas republicanos é um preço demasiado alto.”
(continua)
Kate Aronoff, Aída Chávez, Lee Fang, e Ryan Grim contribuiram para este artigo.
Texto original em https://theintercept.com/2018/03/02/crapo-instead-of-taking-on-gun-control-democrats-are-teaming-with-republicans-for-a-stealth-attack-on-wall-street-reform/
David Dayen: jornalista que escreve sobre economia e finanças. Autor de Chain of Title: How Three Ordinary Americans Uncovered Wall Street’s Great Foreclosure Fraud, vencedor do prémio Ida e Studs Terkel. Colabora com Salon.com e com The Intercept, e escreve semanalmente em The New Republic e em The Fiscal Times. Outros locais onde publica incluem Vice, The American Prospect, Naked Capitalism, In These Times e outros.